Julio Cortázar: o fantástico político.

O escritor e intelectual argentino, Julio Cortázar, é considerado um dos autores mais inovador e visionário de seu tempo. Era contemporâneo de Borges, contudo, era contrário a ele, por simpatizar com a ideologia marxista. Em seus romance e contos, cria uma nova realidade, criando uma nova técnica romanesca. Mestre do conto, da prosa poética e da narrativa curta, a sua obra é comparável a nomes como os de Edgar Allan Poe, Tchekhov ou Jorge Luis Borges. Deixou romances como Rayuela, que inauguraram uma nova forma de fazer literatura na América Latina, rompendo com o modelo clássico, mediante uma narrativa que escapa à linearidade temporal e onde as personagens adquirem uma autonomia e uma profundidade psicológica raramente vistas. Sua obra questiona o convencional, procurando um conhecimento que dispense o auxílio da lógica, assim, em seus romances, o fantástico tem origem no cotidiano.

Suas obras estão enquadradas dentro do realismo fantástico, contudo, é um fantástico que não é fantástico. É um simbolismo, que não é simbólico. Durante as ditaduras na América Latina, os escritores, atitude muito admirada e repetida por escritores norte-americanos, passaram a usar esta forma de escrita: simbolizar tudo. Fantasiar, escrever obras fantásticas. Uma tentativa de “despistar” as suspeitas de criticas sociais ou políticas. Logo, podemos dizer que as ditaduras latino-americanas contribuíram – note uma pequena ironia – para o surgimento de uma nova forma de escrever: um fantástico, um simbólico que não os é, mas sim, político. E esta característica está presente nas obras de Cortázar.

Como, auto-exilado em Paris, um observador da sociedade argentina, em particular, e da latino-americana, em geral, Cortázar desenvolveu um meio próprio de escrever: politicamente. Desde a primeira publicação de seus contos, no livro Bestiário (1951), já demonstrava fortes influências da literatura fantástica. Extravasava, pela escrita, sua visão do mundo, ao mesmo tempo em que declarava suas posições esquerdistas. Sem fazer política panfletária, pelo menos em textos ficcionais, o argentino, nascido em Bruxelas, conseguia denunciar, ao resto do mundo, as desigualdades e atrocidades acontecidas na América Latina, mas também anunciava as esperanças revolucionárias que surgiam.

Auto-exilado em Paris desde os 37 anos, por não concordar com o regime peronista na Argentina, Cortázar trabalhou como tradutor da UNESCO em carreira paralela a seus trabalhos de escritor. Mesmo distante, no entanto, não deixou de criticar a situação de exceção em que se encontravam vários países do continente americano. Afirmava que “a luta pelo socialismo na América Latina deve enfrentar o horror cotidiano guardando, de maneira preciosa e zelosa, aquela capacidade de viver que desejamos para esse futuro, com tudo aquilo que isso supõe de amor, de jogo e de alegria”. Mesmo em um tempo de poucas esperanças, Cortázar insistia em enxergar o que havia entre as coisas – melhor dizendo, no “vácuo entre as coisas”, como dizia ele – onde a imaginação confundia-se com a realidade. Para ele, sempre foi assim: o fantástico e o real estavam em um mesmo nível. A política convivia com a literatura: sem que uma fosse considerada mais ou menos verdadeira que a outra. Lutar contra o horror da repressão e da imposição de um poder autoritarista foi motivo suficiente para que o escritor considerasse o uso de sua maior arma: a criatividade literária.

Na Argentina, Perón governou após uma ditadura militar e durante nove anos sob um modelo fortemente nacionalista e paternalista. Assim como Getúlio Vargas no Brasil, Perón tem até hoje defensores aguerridos, cujos argumentos orbitam em trono dos avanços trabalhistas e do crescimento industrial, e detratores também exaltados, que reclamavam de sua política ditatorial e de base fascista. Em 1955, o presidente foi deposto por novo golpe militar, que fechou o Congresso, baniu o partido peronista (Justicialista), fuzilou opositores e interveio em todos os sindicatos. A constituição elaborada por Perón foi substituída pela Constituição de 1853. Em 1958, eleições parciais foram realizadas, mas em 1962 o civil José María Guido conseguiu induzir militares a aceitá-lo como novo ditador. Seu governo durou até o golpe de 1966, quando três generais sucederam-se no poder através de um estatuto que substituiu a Constituição. Por pressão popular, uma eleição se deu em 1973 e, ainda que Perón continuasse banido de seus poderes políticos, o candidato Cámpora, de seu partido, foi eleito para a presidência. Cámpora renunciou para que Perón pudesse ser eleito, mas o governo do general populista duraria pouco, por sua morte de ataque cardíaco.

Cortázar acompanhava de Paris os acontecimentos, e se ressentiu de ser acusado de acomodação no exílio. Escreveu: manifestos e contos, emitiu protestos a órgãos internacionais, denunciando as arbitrariedades e a barbárie em seu país, mas não podia voltar e se arriscar a ser preso e torturado ou, provavelmente, morto pela ditadura. No Chile, o escritor apoiou Allende, que pretendia construir uma via chilena para o socialismo. Eleito em 1970, o presidente chileno foi deposto por militares três anos depois. Antes disso, Cortázar já apoiava a resistência criada para defender o presidente, já que os atentados e as tentativas de golpe se tornavam, cada vez mais, constantes. Após o golpe, ostensivamente apoiado pelos Estados Unidos e produtor de uma das mais sanguinárias ditaduras latino-americanas, Cortázar participou do Segundo Tribunal Russel, para investigar os abusos e violações aos direitos humanos cometidos em seu continente de origem.

Ainda em 1973, o escritor lançou O livro de Manuel, novela que a esquerda considerou frívolo pelo seu tom muitas vezes lúdico ou mesmo brincalhão, como previsto pelo autor. A história é construída por dialogismos, dividida entre o enredo formado pelos componentes de um grupo revolucionário (“Roda”) e os recortes de jornais sobre golpes militares, torturas e abusos de poder que eles constroem como um manual, que será oferecido a Manuel, uma criança de três anos de idade. Cortázar ganhou o prêmio Medicis por essa novela, esteticamente inovadora e uma importante denúncia política, e doou o dinheiro do prêmio à luta revolucionária contra os militares no Chile. É criticado por uma posição cômoda de apoio à luta socialista. Reconhece que sua literatura procura estar engajada às lutas da América Latina, responde às críticas com o argumento de que luta através da literatura, como intelectual. E critica a esquerda: “No campo revolucionário, você também encontra os bons e os maus, e no campo dos bons, os que podem ter razão e os que não têm... etc. etc. etc. quase ao infinito”.

Ainda assim, Cortázar continua a favor de um caminho socialista para seus conterrâneos latinos. Desde que visitou Cuba, em 1963, o escritor tornara-se um admirador da Revolução Cubana. No conto “Reunião”, publicado em 1966 no livro Todos los fuegos el fuego, um narrador asmático que narra uma guerrilha pode ser facilmente identificado como Ernesto “Che” Guevara, embora nunca explicitamente mencionado. O livro é composto de oito contos, extremamente, politizados: La autopista del sur, La salud de los enfermos, Reunión, Señorita Cora, La islã a mediodía, Instrucciones para John Howell e El otro cielo.

Mesmo que, em 1971, Fidel Castro tenha condenado a atitude de Cortázar por indagar sobre desaparecimentos em Cuba, o escritor seguiu no apoio ao socialismo como resposta ao futuro da América Latina, embora de maneira mais independente e fugindo de ideologias sedimentadas. Em 1979, apoiou a tomada de poder da Frente Sandinista na Nicarágua e em 1984 lançou dois livros de crônicas abertamente de esquerda: Nicaragua tan violentamente Dulce e Argentina: años de alambradas culturales. Ainda durante o Tribunal Russel, o argentino escreveu uma nova colagem, entremeada de textos e quadrinhos originais do personagem Fantomas com seus diálogos adulterados: Fantomas contra os vampiros multinacionais é uma alegoria política contra os regimes de direita latino-americanos em que o próprio Cortázar e outros colegas escritores são personagens que lutam pelo direito de escrever e contra o “atentado à inteligência” que eram as ditaduras ocorrentes.

O auto-exílio de Cortázar foi alvo de críticas severas, mas serviu para que o escritor pudesse desenvolver ainda mais seu olhar fantástico – o olhar em que realidade e fantasia têm o mesmo peso, porque têm a mesma influência no observador. Sonhar com a liberdade e escrever sobre esse sonho tem o mesmo peso de denunciar a violência da arbitrariedade. São faces da mesma moeda, e Cortázar as descreveu de forma precisa, ainda que alegórica. A arte pode servir a uma ideologia, mas nunca estar presa a ela. Cortázar mostrou que sua posição política não ofuscou sua visão de artista.

Le Vay
Enviado por Le Vay em 22/11/2010
Reeditado em 21/01/2012
Código do texto: T2630093
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