Poema Negro (Augusto dos Anjos)

Publicado por: Ariadne Cavalcante
Data: 30/09/2015
Classificação de conteúdo: seguro

Créditos

Texto: Poema Negro Autor: Augusto dos Anjos Voz: Ariadne Música: Asturias Violão: John Williams Composição: Isaac Albeniz
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.

Poema Negro (Augusto dos Anjos)

Poema negro

A Santos Neto

Para iludir minha desgraça, estudo.

Intimamente sei que não me iludo.

Para onde vou (o mundo inteiro o nota)

Nos meus olhares fúnebres, carrego

A indiferença estúpida de um cego

E o ar indolente de um chinês idiota!

A passagem dos séculos me assombra.

Para onde irá correndo minha sombra

Nesse cavalo de eletricidade?!

Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:

— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?

E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!

Dos brados meus ouvindo apenas o eco,

Eu torço os braços numa angústia douda

E muita vez, à meia-noite, rio

Sinistramente, vendo o verme frio

Que há de comer a minha carne toda!

É a Morte — esta carnívora assanhada —

Serpente má de língua envenenada

Que tudo que acha no caminho, come...

— Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,

Sai para assassinar o mundo inteiro,

E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria análise das cousas,

Corro. Arranco os cadáveres das lousas

E as suas partes podres examino. . .

Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,

Na podridão daquele embrulho hediondo

Reconheço assombrado o meu Destino!

Surpreendo-me, sozinho, numa cova.

Então meu desvario se renova...

Como que, abrindo todos os jazigos,

A Morte, em trajos pretos e amarelos,

Levanta contra mim grandes cutelos

E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquilo vinha vindo

Eu fui caindo como um sol caindo

De declínio em declínio; e de declínio

Em declínio, como a gula de uma fera,

Quis ver o que era, e quando vi o que era,

Vi que era pó, vi que era esterquilínio!

Chegou a tua vez, oh! Natureza!

Eu desafio agora essa grandeza,

Perante a qual meus olhos se extasiam.

Eu desafio, desta cova escura,

No histerismo danado da tortura

Todos os monstros que os teus peitos criam.

Tu não és minha mãe, velha nefasta!

Com o teu chicote frio de madrasta

Tu me açoitaste vinte e duas vezes...

Por tua causa apodreci nas cruzes,

Em que pregas os filhos que produzes

Durante os desgraçados nove meses!

Semeadora terrível de defuntos,

Contra a agressão dos teus contrastes juntos

A besta, que em mim dorme, acorda em berros

Acorda, e após gritar a última injúria,

Chocalha os dentes com medonha fúria

Como se fosse o atrito de dois ferros!

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.

Tu mataste o meu tempo de criança

E de segunda-feira até domingo,

Amarrado no horror de tua rede,

Deste-me fogo quando eu tinha sede...

Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!

Súbito outra visão negra me espanta!

Estou em Roma. É Sexta-feira Santa.

A treva invade o obscuro orbe terrestre.

No Vaticano, em grupos prosternados,

Com as longas fardas rubras, os soldados

Guardam o corpo do Divino Mestre.

Como as estalactites da caverna,

Cai no silêncio da Cidade Eterna

A água da chuva em largos fios grossos...

De Jesus Cristo resta unicamente

Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente

Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!

Não há ninguém na estrada da Ripetta.

Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,

As luzes funerais arquejam fracas...

O vento entoa cânticos de morte.

Roma estremece! Além, num rumor forte,

Recomeça o barulho das matracas.

A desagregação da minha idéia

Aumenta. Como as chagas da morféia

O medo, o desalento e o desconforto

Paralisam-se os círculos motores.

Na Eternidade, os ventos gemedores

Estão dizendo que Jesus é morto!

Não! Jesus não morreu! Vive na serra

Da Borborema, no ar de minha terra,

Na molécula e no átomo... Resume

A espiritualidade da matéria

E ele é que embala o corpo da miséria

E faz da cloaca uma urna de perfume.

Na agonia de tantos pesadelos

Uma dor bruta puxa-me os cabelos,

Desperto. É tão vazia a minha vida!

No pensamento desconexo e falho

Trago as cartas confusas de um baralho

E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.

Eu, somente eu, com a minha dor enorme

Os olhos ensanguento na vigília!

E observo, enquanto o horror me corta a fala,

O aspecto sepulcral da austera sala

E a impassibilidade da mobília.

Meu coração, como um cristal, se quebre

O termômetro negue minha febre,

Torne-se gelo o sangue que me abrasa,

E eu me converta na cegonha triste

Que das ruínas duma casa assiste

Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema

Onde vazei a minha dor suprema

Tenho os olhos em lágrimas imersos...

Rola-me na cabeça o cérebro oco.

Por ventura, meu Deus, estarei louco?!

Daqui por diante não farei mais versos.

Augusto dos Anjos ANJOS, A. Eu e Outras Poesias.

Augusto dos Anjos
Enviado por Ariadne Cavalcante em 30/09/2015
Código do texto: T5399929
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