As marcas do tempo e do abandono

(O livro das digitais)

Ao Mestre Neco com carinho

Quando a tarde despeja seu mormaço

tudo à volta parece arder em brasa.

Pequiseiros se curvam de cansaço

e um besouro se arrasta sob as asas.

Passa o tempo e com ele também passo

— e o relógio da vida nunca atrasa —

vêm as rugas e as sinto e nada faço,

porque quero e não sei voltar pra casa.

Tudo aqui é gigante — e nada tenho;

tudo é belo e é farto e muito rico:

nada disso me importa... então desdenho;

nada é meu porque não me identifico...

Seguem pés andrajosos na avenida,

titubeio e descanso noutra praça,

ouço vozes que cantam, mas sem vida

e desvio meus olhos de quem passa.

Só a tarde despeja seu mormaço

e meu rosto parece arder em brasa.

Eu me encolho e me curvo de cansaço:

sou aquele besouro, mas sem asas.

Só o tempo passando... e nada faço:

— Ah! saudade implacável que me arrasa...

Pra voltar só preciso dar um passo,

porém como voltar quem não tem casa?

Buritizeiro-MG, 25 de abril de 2007 - 17h25

(Mestre Neco não é só um filósofo, porque poucos filósofos lograriam as notas que ele obteve na Universidade das Ruas; Mestre Neco me deixou ler um de seus livros: eram centenas de páginas sem nada escrito — pelo menos da forma convencional. Nestas páginas, estavam apenas manchas de suas digitais e muitos borrões de lágrimas, gordura e vestígios de molho.

Inspirou-me seu surpreendente sussurrar de agruras e sua suavidade. Mas esse poeminha só foi escrito porque ele me pediu. Talvez por isso eu tenha me esforçado tanto pra não decepcioná-lo. É bem provável que ele nunca saiba que sua vontade tenha se realizado, mas ainda assim me sinto na obrigação de repetir a dedicatória: "Ao Mestre Neco com carinho!")