https://youtu.be/A29H7iQJTYU (Audiolivro)
Após conhecer o fim, não conseguiremos levantar e seguir um caminho. Os caminhos foram apagados, e não é qualquer fim, é o fim do mundo. Do mundo que costumávamos conhecer, o fim das vidas que amávamos conviver, e o fim dos homens que achávamos reconhecer. O monstro desiste da luta, jogando-se nas profundezas do submundo, aguardando também o seu próprio fim.
Os céus repletos de prédios da cor da terra, toda cidade refletindo caos e destruição. A energia luminosa lentamente brinca com a gravidade mundana, enquanto as nuvens cinzas e negras cobrem o céu trevoso.
Pequenas plantas e ramos surgem onde jamais existiu algum verde. Seria impossível sobreviver às condições da tempestade Umbrálica. E lá ele se encontrava, definhando, no fundo da maior cratera, rodeado por pilares fallyrianos, blocos de concreto e tremendas rochas negras.
O lar dos principados engolido pela escuridão, jazia o último abaixo nos calabouços sob os antigos e memoráveis salões de luta da velha corte. Uma prisão, já não podia retornar, e também não fazia a menor questão.
Estilhaçado, esgotado, não se importava, não se movia. Cansado, acabado, jogado sob destroços e beira morte.
Sangue e águas decorrentes das grandes nuvens forravam o chão tocando seus pés imundos. Um com a bota em prata e couro, o outro descalço deformado com pelos e grandes unhas e pêlos de fera.
Retiramos uma vela no castiçal e nos aproximamos solenemente para assistir aquele sofrimento com muita atenção.
"Grande como um urso, bom garoto" disseram-lhe uma vez. Era jovem e alegre, não sabia o que o aguardava, as ferozes iras dos homens se lançariam sobre sua inocência e aprenderá a ser como todos nós, a levar a vida como um sobrevivente nato, um predador.
"Pai, vai mimar o garoto se continuar o chamando assim". Lembrava da imagem e da voz de Peetar, o irmão mais velho. Cabelos curtos sob os ombros, eram castanhos e dourados como os dele. Comportado, dedicado e complacente, o irmão era diferente do padrão de Fallyria, pois eram geralmente viris, dotados de grande presunção. Os nobres dos céus, lembrados por suas armaduras de metal branco magnificentes, possuíam traços azuis e marrons. As do pequeno príncipe eram azuis e avermelhadas.
O memorável dia de caça das famílias principais. Ele tinha de aprender, desde pequeno, e a ver, o sangue dos pequenos animais. O pai o lembrava sempre como um homem deveria ser, parecer e perecer.
"Para mim, ele parece com um ursinho". Continuava o irmão, as palavras cintilavam pelo ar como se tudo estivesse acontecendo novamente. Lembrava até do sutil bocejo de Peetar ainda de costas visando os robôs de caça. E como ele conseguia instigar o fogo naquele pequeno coração, o orgulho do príncipe refletia na imagem. Bravo, determinado e ousado, como gostava de se lembrar.
"Hraww!". O rosnar súbito, agarrava o sobrepeliz do irmão enquanto ele se distraía com os robôs, assustava-o facilmente. Ele gargalhava mas o irmão o perdoaria, perdoaria por tudo, mas não mais, não hoje.
– HRAWWW! Chega de ilusões! – Rugiu ferozmente o homem meio monstro interrompendo os vislumbres.
Devagar, chegamos mais perto.
– Não se aproxime de mim!
Entendemos, mas precisamos, precisamos estar ao seu lado. Estava febril, mas ele nos sentia aproximando devagar.
– Como você se sente, caro amigo? – Perguntamos, sentimos a tristeza também, gostaríamos de tê-la por inteiro.
Não respondia, continuava olhando vagamente para o escuro, sem mesmo se dar ao luxo de se virar e nos aniquilar por completo.
– Longa e vazia
– O que? – Perguntamos – O que? – Insistimos e ele nada – Caro monstro, se agarrar a essa vida significa aceitar a morte..
Gotejava, despencavam destroços e rochas trepidavam, cada vez mais intensas.
– Entendemos o seu coração, o seu exílio, a sua solidão, mas...
– Fique longe de mim! – Ameaçava com seu rosnar e presas de fera.
– Descanse, esqueça essa dor! – Resistimos e o tocamos mais uma vez. O toque reatava as memórias que um dia amou viver.
A imagem da mãe vem em mente, sorrindo como um anjo em um tempo que era pequeno. Ele se apossou da sensação, tomou-a fortemente para lembrar enfim do fim em que as serpes a cravaram ...
– Não! – Ataca ferozmente com a pouca vitalidade que lhe restava, enfincando todos os enormes dentes em nosso pequeno e frágil pescoço. Plumas pálidas caíam ensanguentadas sob o chão.
Fazíamos uma linda jovem nesse momento.
O prazer do sangue na boca não era o bastante. Lágrimas da besta canina começaram sem fim, estava triste, não conseguia enxugar os olhos, nem mesmo os fechar.
E dói tanto, tanto. Não! Não é a ferida, é um aperto no coração.
O abraçamos! Com todo o amor que sempre renegamos.
O calor unido, nos preenchendo, permitindo sentirmos novamente, uma saciedade em equilíbrio.
A música começa, aquela de dias belos, ela sempre cantava para nós no berço da infância. Sorri ao lembrar-se de correr para seus braços. A visão tentava se distorcer, se levar, como sempre para o machucar, mas não permitimos mais.
– Essa dor.. ela é nossa. Estarei com você, para você! – Enxugamos aquelas lágrimas no pelo que deformava aquele rosto gentil.
Havia um feixe final no calabouço em desmanches, como se os céus o clamasse para segurar sua última chance.
Nos afastamos. As lágrimas do homem continuavam e se dispersavam.
– Como ainda vive? – A fera perguntou relutante.
– Você não pode nos matar
Entregamos-lhe a espada.
– Nos tome, caro monstro, aceite-nos enfim.
– Ainda há muito pela frente?
– Por toda a eternidade se assim desejar
Levantava-se viril, segurando a espada, levantando-a ao alto, resistindo às feridas mortais que lhe entregavam ao fim iminente.
Um bloco se mantém nos salvando perante a tragédia, onde fora sua casa, da antiga vida regente. A energia gravitacional finalmente se aquietava.
– A vida...ela é nossa! Eu vejo as ruínas, o sangue de todos aqueles que um dia nos criaram em segredo. Então, chegou a hora de acabar com isso. E assim, estaremos juntos
– Em um só
– Em um só
Crava-a no peito, visualizando todos os pedaços que um dia lhe foram feitos.
Da tempestade, nem lembramos quando fora embora, o tempo ia e vinha, corríamos entrelaçados, alegres onde o verde vivia em sua antiga moradia.
– É você, alma minha?
– Hahahahaha, hahahaha
– Hahahahaha
– Me conte uma história, querida amiga.
– Há muito tempo existia um homem, muito sozinho
– E porque estava sozinho?
– Havia perdido o seu lar, sua família, seus amigos, o amor, os sonhos e tudo o que conhecia!
As imagens continuavam, as ruínas estavam cada vez mais distantes e o céu se renovava vislumbrante.
– Então, ele se dividiu ao meio?
– Prometendo nunca se abandonar novamente, nunca se deixar enfraquecer novamente
– Para que ele sempre tivesse um amigo?
– Para que ele sempre tivesse um amigo
– Hahahahaha
– Hahahahaha
– Há quanto tempo existimos, minha querida?
– O tempo é uma ilusão para aqueles cujos mundos a muito desapareceram. Eu me lembro de todos eles.
– O que faremos com toda essa dor? – Ele encara a espada cintilante.
– Você também não pode se livrar disso.
É claro, o canino brando ao longe esbravejava, cada ciclo mais perto e impaciente, como é insolente! Nos alcançarão, mas serão outros dias, outros ventos, outros eventos. Juntos, todos descobriremos! E como sempre, mais uma vez resistiremos impertinentes.
– Você me ama, caro monstro?
– Eu me amo muito.
– E qual a sensação de viver, caro monstro ?
– Linda, mas pare, eu não sou mais um monstro, apenas o levo comigo.
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