Buscando Leveza No Meio da Sombra

Buscando Leveza No Meio da Sombra

Hoje eu quero mesmo é assistir um bom filme dos anos 50. Um daqueles onde a temática seja o eterno conflito pais e filhos, ou esportes, ou mesmo uma comédia romântica, ou nem sei que lá, mas um filme com belas locações, digo, ruas arborizadas, nada de lixo no chão, mas sim belas casas, jardins asseados, esse tipo de adereços. De uma coisa você pode ter certeza - neste programa não existe o menor traço de malucos fumando crack e dizendo mother fucker a cada 5 segundos. Ademais, a película em questão está isenta de traficantes, por conseguinte de policiais, e assim estou poupado, ao menos por duas horas, daquele inferno redundante recheado de jaulas, sirenes e distintivos. Ou seja, procuro me distrair nas imagens de, digamos, uma universidade cheia de gramados e moças usando meias soquete, mais aqueles carrões reluzentes, mais aquelas idiotices todas, e então acontece uma certa paz de espírito que fica meio entre parênteses, meio suspensa, querendo dizer alguma coisa que em última análise não tem a menor importância. Pena que nas locadoras esse tipo de filme não seja o que se pode qualificar de abundante. Quanto a “remakes”, nem pensar, exijo produto autêntico, com o colorido e luminosidade da época, dir-se-ia uma certa tara pela história das luzes quando aprisionadas nos 24 quadros por segundo. De resto, podem me servir também Jaques Tatit, Rock Hudson e Dóris Day, I Love Lucy eu adoraria, idem para Oscarito e Zé Trindade, e pensando bem meu leque de opções vai se abrindo a medida que me distancio do invariável prato do dia, sempre regado a cavanhaque e mother fucker. O que será que acontece com o público? Ou a pergunta deveria se estender aos idealizadores do espetáculo? Ou então, talvez a resposta deva ser obtida de um modo diferente, num lugar diferente, e quem sabe até, numa outra época.

Reza a lenda que o compositor Erik Satie, durante um ataque aéreo na Inglaterra, Primeira Guerra Mundial, entrou no abrigo e disse: “vim morrer com os senhores”. Digam-me, não é formidável? Chaplin dizia que o humor preserva a sanidade e aumenta a noção de sobrevivência. Eu não discordo.

Tampouco pode-se restringir o humor como matéria restrita a profissionais. Acredito, isto sim, naquela coisa da inspiração, da sagacidade, aquele lampejo que de fato eleva a espécie humana a uma versão mais bem acabada de si própria. E se por um lado isso se traduz em feitos notáveis, em invenções maravilhosas, por outro também encontra respaldo no corriqueiro da vida, no dia-a-dia, por assim dizer. Você já pensou quantas pessoas, que bem ou mal, temperam nossas existências com tiradas memoráveis? Tem aquela do Einstein, quando já morava na América.

Ele vem caminhando pela rua quando esbarra num sujeito e todos os seus papéis vão para o chão. Ambos se abaixam, o sujeito o ajuda a catar a papelada e na hora de ir embora Einstein o pega pelo braço e indaga - por favor, me diga, de que lado eu vinha? Escandalizado, o sujeito exclama - como, você não sabe?! Muito sereno, o gênio explica - é o seguinte, se eu vinha daquela direção, é porque eu já almoçei, agora, se eu vinha do outro lado, então significa que eu ainda vou almoçar...

De uma coisa posso lhes assegurar, cada vez que me defronto com histórias como esta, termino por sentir uma sensação muito parecida com a do filme B, aquele das ruas limpas e arborizadas. De resto, às vêzes apenas me parece que a inteligência, quando nos seus melhores dias, mostrava-se mais capaz de exprimir-se com certa elegância e ironia, ao passo que, nos dias de hoje, outra coisa não faz senão escoar pelo ralo.

E se você começar a assistir ao noticiário todo dia, além de perder o humor vai acabar pensando em algo como “A história nada mais é do que o relato dos crimes e loucuras da humanidade”. A frase, ótima para um começo de semana, foi confeccionada lá pelos idos de 1780 pelo historiador inglês Edward Gibbon que, em hipótese alguma, assistia ao “Cidade Alerta”.

Assim, em se tratando mais de Brasil e menos de mundo, o que será que anda acontecendo com a nossa aura de coisas leves e arejadas, que durante muitos verões permeou o estado de espírito dos nossos compatriotas? Ou, se se preferir, o que será que anda acontecendo com a nossa leveza? Oh sim, porque uma coisa é plausível – não existe leveza nas páginas do noticiário nacional. Muito pelo contrário.

Em suma, temos centenas de favelas, meia dúzia de noticiários e nenhuma imaginação por parte dos editores. Digam, não é cansativo? Palavra de honra que a televisão me parece convencida a transformar o país num imenso barraco, repleto de uzis. Dá o que pensar.

Lá pelos anos 60 o inimigo público número 1 levava a alcunha de “bandido” da luz vermelha. De fato o homem parece ter sido uma praga, acabou puxando uns 200 anos de cana mas, com toda a franqueza, visto sob a atual perspectiva, sou muito mais ele do que esses demônios da atualidade, que esquartejam pessoas na periferia de São Paulo, que assassinam crianças nos 4 cantos do país, etc.,etc.,etc., e se você quiser saber onde e quando perdemos nossa leveza estou aqui para responder: quando começamos a matar crianças, e a computar as mortes num painel, deixando o dito pelo não dito.

Faço aqui uma pequena citação: “Porque se nós, na América, chegamos ao ponto, na nossa desesperada cultura, de assassinar crianças, não importa por qual razão ou cor, não merecemos sobreviver, e provavelmente não sobreviveremos”. William Faullkner, escritor, durante uma entrevista em 1956.

Gostaria muito de saber, a despeito de todos esses aspectos deploráveis do nosso cotidiano, cadê aquela gente bronzeada (ou não ) que vai mostrar o seu valor. Onde estão os nossos Saties, ainda que sem a mesma erudição mas dotados de similar presença de espírito, que tanto iluminaram nossa terra ensolarada? Você se lembra deles. Necessariamente jamais pertenceram a classe alguma, pareciam até oniscientes, estavam em toda parte, no meio de qualquer profissão, nos bancos das praças,atrás de um balcão ou de escrivaninhas, nos gabinetes, nas repartições...Gostaria de saber para onde foram. Teriam ficado deslocados nesse mundo novo, careca, tatuado, repleto de alfinetes e carrancudo, decorado pelos orificios dos fuzis?

No mais, “eu quero estar no lado claro do mundo”.

Trecho do livro "Parado no Tempo - Leitura para Maiores de 40 Anos"

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 18/02/2008
Reeditado em 09/11/2013
Código do texto: T865149
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