Em favor da vítima

Lúcio Alves de Barros

Bacharel e licenciado em ciências Sociais pela UFJF, mestre em sociologia e doutor em ciências humanas: sociologia e política pela UFMG. Professor, organizador do livro “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006.

Não consigo identificar onde este fenômeno começou. Faço alguma idéia ou mesmo penso que o fato revela a natureza hipócrita da humanidade. No caso em tela, estou me referindo à questão da vitimização, a qual, no caso dos franceses ganhou até status de ciência: a vitimologia. Não acredito nesta invenção, contudo, mais do que nunca tenho percebido somente seres humanos potentes, ricos, lindos, magros, brancos, maravilhosos, espertos, cheios de felicidades, onipotentes e oniscientes. São homens e mulheres vitaminados na crença ridícula de serem super-homens e mulheres maravilhosas capazes de enfrentar os obstáculos do tempo e do espaço.

Na esteira de ser Deus, tanto os homens como as mulheres esqueceram da humanidade, e, se existe algo que a “sociedade da prontidão” não perdoa é o sujeito vitimizado pelas circunstâncias da vida ou mesmo que se faz de vítima por algum motivo irrelevante. Convenhamos, é de causar náusea tal situação. Qual o problema de ser vítima ou estar no lugar dela? Não podemos mais sofrer? É preciso esconder as faltas e falhas? Os limites? O que os “pastores” do Senhor teimam em chamar de pecado? Creio que poucos têm a coragem de mostrar o lado podre e humano da própria existência. Mas o fato é que - em algum momento da vida - somos vitimizados e, atualmente, “ser vítima” tornou-se “ser problema” em várias esferas do dia-a-dia. Salientarei algumas.

Vejamos a questão da criminalidade e da violência. Se somos assaltados ou violentados e procuramos os nossos direitos não é preciso explicar ao policial, ao delegado, ao advogado, ao médico, etc, que somos a vítima e necessitamos de ser tratados como tais. O recalcitrante, obviamente, não vai se dar ao luxo desse momento, a não ser que seja um cafajeste. O problema é que mesmo na condição de vítima, muitos vão lhe culpar, sacrificar, crucificar, violentar e, por vezes, matar. Afinal, “você não tomou cuidado”, “não percebeu antes”, “quem mandou andar por ali”, “ficar dando oportunidade”. De vítima, paulatinamente, o sujeito transforma-se em culpado. O verdadeiro culpado, por sua vez, passa por uma interessante metamorfose, tornando-se - aos olhos desatentos - em uma pessoa marginal, mas esperta, forte, proprietária da verdade e controladora dos impulsos próprios e alheios (este é um campo fértil de psicopatas) e fica tudo por isso mesmo. Tudo porque a vítima é fraca, burra, velha, negra, mulher e merece é ser roubada ou violentada mesmo. É o fim da compaixão e do cuidado com o outro. E, caso os sociólogos estejam certos, com o aumento da criminalidade e da violência nas grandes metrópoles essas relações tendem a aumentar.

Os casos de vitimização são patentes também nas relações ditas amorosas. A crença no amor burguês tem deixado, na batalha das subjetividades, várias vítimas. O problema é que muitos não percebem, outros não querem ver, outros sabem e não dizem, um bom montante suporta a condição e, poucos, compram a briga. Nesse caso, as conseqüências são abundantes e as adagas são jogadas de todas as partes: “casou! Agora agüente...”, “também, ela gosta é de apanhar”, “quem mandou ser corno”, “andar com más companhias”, “ficar de olho só em dinheiro”, “todo mundo sabia que ia dar nisso”, "ela (e) queria era só o dinheiro”, e "veja, ela (e) vai separar? E as mordomias?" e assim por diante... A pessoa, já vulnerável pelos acontecimentos, além de culpada, ainda é julgada. Nos casos amorosos, os juízes - na busca de satisfazer o sadismo latente - não poupam forças para condenar a vítima e bater palmas para o traidor, principalmente, se este estiver ou tiver boas condições econômicas, aparência ocidental, “ser de família”, cor branca, homem e com poder. São poucos os que ficam por perto, a maioria prefere se afastar ao invés de reconhecer a dor oriunda da traição. Mais que isso, muitos chegam mesmo a criticar posturas, condenar o sofrimento e ainda tentar empurrar goela abaixo o mau-caráter do traidor. A questão é mais séria quando em jogo estão os filhos. Muitas vezes, eles não sabem a quem se apegar. Na maioria, optam pela vítima, mas também não deixam de crucificá-la e maltratá-la nas primeiras oportunidades. Não vou me referir aos parentes que se atrevem a se meter em saber o que estava acontecendo ou o que poderia acontecer. Sugiro que as vítimas deixem os parentes de lado, podem ser as melhores ou as piores companhias nesses momentos. Na dúvida, abra mão deles.

Obviamente, não poderia deixar de lado o caso das vítimas da situação econômica, cultural e política de nosso país. Com o avanço do “liberalismo” contemporâneo, tornou-se lugar comum chamar o pobre, o negro, as mulheres, os jovens, os idosos, os desempregados, os mendigos e, outros, de vítimas sociais. Como é lugar comum não é preciso estar presente. Logo, é perda de tempo freqüentar esse lugar. “Não há nada de importante”. A sociedade excludente não perdoa a diferença. Ao contrário, ela a pune em dobro e não oferece iguais condições - até por natureza - aos desiguais. Creio que temos medo de estar nas situações delineadas. Como não desejamos ser vítima fechamos os olhos para a realidade, nos apegamos ao hedonismo exacerbado e preferimos ver no outro “o vagabundo que não quer trabalhar”, “uma pessoa de cor que não é melhor do que eu, e ainda por cima também é racista”, “a mulher que não é competente naquilo que faz”, “o sujeito que não é de família”, “o idoso que não dá conta do recado” e “o corno que não deu a devida atenção à parceira”. Chega a ser um absurdo tais manifestações. Projetamos no outro o medo e as inseguranças e forjamos um espaço de ilusões capitaneado, principalmente, pelas elites e pelos meios de comunicação. Nesse sentido, não queremos saber de vítimas sociais. Não passam de “suspeitos” e derrotados urbanos, pobres e velhos. Não são “empreendedores” (a palavra e o conceito da moda). Não suportam o mercado, a concorrência, a perda do emprego, do amor ou de um ente querido. São fracos, impotentes, inconseqüentes, sem valor e sem cor.

Na sociedade da prontidão ou na excludente, não vamos encontrar muitos lugares para tais vítimas. Inevitavelmente, elas serão desfiliadas do corpo social e cairão na indigência e na exclusão de toda ordem. É um caos esperado e em pleno desenvolvimento, alicerçado nas injustiças e nas conveniências sociais. Contudo, é preciso saber o lugar e a identificação da vítima. Como dito, nesta situação, homens e mulheres, além de serem culpados levianamente, sentem um enorme sentimento de culpa e se desgastam em dobro, cansando nervos e organizando mecanismos subjetivos e objetivos de defesa. Mas enquanto a situação não bate à porta ficamos quietos, ilesos, conformados e fingimos que tudo está bem e que a desgraça ocorre somente no quintal dos outros.