DO NÃO-ESTADO DE DIREITO NO BRASIL

Lúcio Alves de Barros

Bacharel e licenciado em ciências sociais pela UFJF, mestre em sociologia e doutor em ciências humanas: sociologia e política pela UFMG. Autor do livro Fordismo: origens e metamorfoses. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 2004 e organizador da obra Polícia em Movimento. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006.

Diante dos acontecimentos recentes no Estado do Rio de Janeiro, no qual vimos a Polícia Federal colocar “fim” em uma quadrilha composta pelos homens da capa preta revelando aos sete, oito, nove ou dez cantos do país o “crime organizado” e a imbricação dele com o jogo do bicho e o famigerado “caça níquel” e, ainda, a prisão recente de um bando de justiceiros no Recife que, provavelmente, matavam pessoas como se estivessem comendo pipocas, é crucial chamar atenção para o que se convencionou denominar Estado Penal.

É bem verdade que os penalistas e os sociólogos metidos a criminólogos vão dizer que o Estado Penal se caracteriza pelo avanço não somente do campo normativo penal na sociedade, pelo aumento dos encarceramentos e pelo “direito mínimo” ou direito do inimigo. Belas palavras e intenções que seguem e possuem o seu valor. Mas o Estado Penal é um Estado no qual prevalece a banalidade do Estado de Direito e, ao invés da ordem sobre a lei, é predominante a lei em detrimento da ordem. É um paradoxo, pois, de uma forma ou de outra são históricas as relações entre o Estado e os “jogos” não oficiais oriundos da sociedade civil organizada. E ponha organizada nisso. E detalhe, ela se caracteriza por organizada justamente porque o Estado, ou os atores que o gerenciam andam fazendo dele a privada cotidiana que é a política e a justiça nesse país.

Mas vamos ser mais claros, falar de Estado Penal em solo brasileiro é um truísmo, para não dizer que seria uma piada de mau gosto. Para os mais atentos, é sabido que o país passou por um duro golpe de conquista e processo colonial, um Império mais do que corrupto e sádico e uma república capenga e violenta que oscilou entre governantes de Minas e de São Paulo durante um longo tempo. Mais que isso, não existe Estado Penal maior que aqueles forjados em regimes de exceção. Os da “terceira idade”, eufemismo da pior espécie para esconder o inexorável processo de envelhecência, devem lembrar da ditadura getulista e do gerenciamento caduco de boa parte dos militares após 64. Nem o retorno à democracia, e é aí que está o paradoxo, parece que vai solucionar o problema. Contudo, a questão é ainda mais complexa quando se percebe a emergência não de um Estado Penal, envolvido no seu doce mundo do campo normativo que, no Brasil, é para poucos. O problema é o Estado Policial, inquisitorial, fascista e covarde que tem como principal freguesia os pobres, jovens e negros. A questão é séria, pois essa é a tendência e a única mensagem que os governos estaduais tendem a passar para a população: mais encarceramentos, mais presídios, “menos” criminosos, gente “preta” na rua, pobres e problemas de toda ordem. A matemática para a esfera policial não é uma boa companheira, haja vista que a contagem sempre é feita a partir de corpos encontrados, armas apreendidas, quantidades de entorpecentes ou detenção da freguesia já histórica da Polícia Militar e da Polícia Civil que depois vão vegetar em um sistema carcerário de péssima qualidade.

A realidade é que a emergência e maturação do “novo” Estado Policial em regime democrático é preocupante e assustador, haja vista a cultura inquisitorial, hierarquizante, machista, malandra e sem escrúpulos das elites e de boa parte da sociedade brasileira. Digo isso porque, na "sociedade excludente" parece lugar comum a sede em criminalizar ou mesmo demonizar o diferente, o "anormal" e o estranho. E é gritante como essa realidade bate à porta e entra em nossa casa pela TV. Mais imbecil ainda é o fato da maioria da população, e coloque maioria nisso, ainda defender a prisão perpétua (75% da população de acordo com a pesquisa do DataSenado/2007) e a maioridade penal (93% da população/2007). O paradoxo é dantesco, os mesmos que defendem a maioridade penal e a pena de morte serão os principais alvos da polícia e do sistema judiciário e, por ressonância, do encarceramento. É uma autofagia da pobreza, ou seja, é literalmente pobre comendo pobre. Um verdadeiro estado sem ordem, próximo ao estado de natureza legitimado e tácito. São poucas as saídas. Por falta de linhas aponto duas.

A primeira, diz respeito ao trabalho dos intelectuais que, ao exercitar a crítica devem mover os alicerces de toda ideologia que se coloca como verdade absoluta. Mas podemos esquecer esse caminho. Tal como anda a educação brasileira, na qual se vê um consenso contra a configuração de oposições é de dar dó a condição dos intelectuais vendidos ao modelo governamental, aos programas de “responsabilidade social” ou ao mercado de trabalho extremamente excludente e, tal como o estado, punitivo e ameaçador. A segunda proposta para a saída do Estado Policial, ou mesmo penal - como querem os donos do poder normativo -, é apostar nos profissionais que atuam no campo do direito. Assim, se reveste de grande importância os advogados, os promotores, os procuradores, os desembargadores, os juízes, os delegados e os policiais. Cabem a estes - principalmente os que ainda não se renderam ao campo da corrupção que cerca esse meio - não o caminho da adesão pura e simples ao Estado como máquina de “vigiar e punir”, e sim a dura tarefa de conter o avanço punitivo e fascista deste. Se a onda de corrupção continuar nesse campo, não esperem resultados nessa esfera. O melhor caminho será a poupança para pagar esses profissionais (muitos corruptos) ou mesmo para comprar ansiolíticos e antidepressivos, pois não será fácil, principalmente para quem possui filhos, superar a ansiedade e o fervor punitivo do Estado Policial que, na procura de culpados, inimigos e suspeitos, pode em qualquer momento bater na sua porta.