ATEU PERSEGUIDO : ISSO EXISTE?

Antes de mais nada, se você é ateu, fique à vontade para sair antes que sua melindrosa auto-estima venha a ser arranhada por algum preconceito fundamentalista do patriarcado judaico-cristão obscurantista do proto-fascismo em curso nesse país desde que Vocês-sabem-quem assumiu as rédeas da República – sério, não há nada aqui para alguém...do seu tipo, leitor cético.

Não diga que não foi avisado.

Isso posto, minha proposta é desenvolver uma meditação a respeito desse curioso conceito, o de que não-religiosos em geral e particularmente ateus sofram algum tipo de perseguição que assim mereça ser chamada.

1.NA MINHA CRUZADA OU NA SUA?

A ideia de ‘guerra religiosa’ é particularmente cara aos detratores da religião:nas mãos erradas, ou seja, nas do irreligioso, os conflitos engendrados tendo como subterfúgio a religião são excelente mote na discurseira iconoclasta contemporânea – ocorre-me o infame quarteto formado por Dawkins, Hitchens, Sam Harris e Daniel Dennet, as figuras emblemáticas do assim chamado neo-ateísmo, ou ateísmo militante, que à insânia da negação irracional, contumaz em certas vertentes do ceticismo, acrescenta o irresistível pendor pós-humanista de revisionismo histórico temperando as inevitáveis fórmulas do ‘mundo melhor’. Era previsível, sabemos bem, desde Feuerbach e Marx, Freud, Darwin, Nietzsche e Foucault, entre outros, que os miasmas mefíticos do pântano do zeitgeist pós-moderno não se restringiria à esfera acadêmica indefinidamente, logo seus ranços ganhariam os demais espaços da vida em sociedade, mascarados ou às claras, no afã de abarcar tudo ao seu alcance.

Pois bem, segundo certos cacarejos do discurso vitimista em voga, irreligiosos e ateus seriam os oprimidos de uma verdadeira caça às bruxas, ou cruzada, perpetrada por fundamentalistas religiosos (quem mais?), numa nova e desigual versão de guerra santa, uma terrível jihad (o uso desse termo é escabrosamente inapropriado para tal finalidade, mas vá lá, somos todos povão e senso comum...)expressando de forma totalitária o poder de uma maioria que eles, as indefesas supostas vítimas, fazem parecer tão homogênea que a coisa soa absurdamente irreal e delirante desde o início.

Apenas a titulo de comparação superficial, a perseguição real e historicamente documentada a cristãos tem início em Roma e atravessa os séculos até os dias atuais, embora ninguém noticie isso na Globonews, na ÉPOCA, na Veja nem em outros canais de comunicação dessa mesma índole (criminosa, pra usar um termo publicável...). Sobre o tipo de psicopata que normalmente leva adiante tais extermínios, nem Suetônio, injustamente subestimado correntemente, nem a nada cristã Hollywood foram discretos demais, digamos, é uma questão de ler (ver) e checar a veracidade do que é veiculado.

2.PROBLEMA TEU, PROMETEU!

Não que estejamos surpresos, não é mesmo? Esperar coerência de uma visão de mundo que propõe justificativas para o racionalmente inconcebível é ser otimista de um modo patológico e imbecil, numa palavra, demente. “Se Deus não existe, tudo é permitido” deveria soar como um diagnóstico terrível, de implicações contundentes a respeito do que sequer sabemos, de fato e com total propriedade – e no entanto assume o duvidoso brilho da chama roubada aos deuses, a emancipação das percepções intelecto-cognitivas de quaisquer instâncias que se lhe afigurem absolutas ou simplesmente superiores, um estado de coisas inteiramente novo na história do mundo, conforme advertia René Guénon, já em 1926. “Estás mesmo perdido, tu, que nada buscas?” , o matemático, filósofo e poeta Yves Bonnefoy perguntava...a reverberação angustiante e grave revelando mais que qualquer eventual e inadequada resposta, pelo que assume da condição humana em sua duvidosa iluminação. O ônus da rebeldia titânica é traduzido na epifania do verme humano em todos os seus deploráveis aspectos. Ofendido pelo pé mais distraído, encolhe-se por prudência (Nietzsche), pois sabe-se verme e como tal pressente seu fim nada divino, nada elevado ou nobre, “à míngua de esplendores” (Bruno Tolentino) e banal.

3. DE CIENTISTA E DE LOUCO TODO ATEU TEM UM POUCO?

Chama a atenção certo constrangimento no ajuste terminológico : o ateu frequentemente tende a referir a si mesmo como “não-religioso” , o que parece, por um lado, perfeitamente adaptado ao conceito de vítima de certo “preconceito social” , como sabemos. Por outro ângulo, o termo ‘ateu’ soa depreciativo e revelador demais, trazendo exposição indevida e certa vulnerabilidade a quem esteja ciente de sua condição de voz que destoa do coro, num ambiente de maioria “opressora”. A imagem que faz de si mesmo, no entanto, embora confusa e essencialmente incoerente, costuma reivindicar, em sua construção, alusões à Razão e à Ciência, esta necessariamente definida em termos daquela. O assassinato de Deus é, nessa noção enviesada da realidade, a vitória sobre as “vozes da ignorância”, do “atraso” inevitavelmente atrelado à fé, à religião e a praticamente qualquer coisa que não possa ser definido dentro dos parâmetros daquilo que costuma chamar de Ciência. Pois na percepção ateísta pós-moderna, o que a ‘ciência’ não explica simplesmente não existe, e o que não pode ser ‘provado cientificamente’ é apenas um absurdo, um delírio.

A reivindicação que faz para a causa, pois é de militância que se trata o ateísmo contemporâneo, não poupará a própria História de modificações bizarras que deixam bem claro, no entanto, a ruptura da ligação com a realidade em seu caráter mais típico, o das noções que se estabelecem por critérios da vontade, não exatamente da verdade. Quando um cético, num dia não muito feliz, portanto, apresenta Hipátia, Servetus e Giordano Bruno como exemplos do que a terrível perseguição religiosa é capaz, não se dando ao trabalho de tentar entender as circunstâncias e reais motivações em cada infausto evento, fica muito claro o desespero de sua condição, de não saber – de incultura monstruosa, aliás – e de não querer tomar conhecimento de fatos largamente conhecidos e documentados a não ser pela perspectiva dos seus instintos e inseguranças. Hipátia não foi cética, ateia, agnóstica ou “não-religiosa” ; Servetus definitivamente não foi ateu, pelo contrário, sua terrível condenação decorre de seu trabalho justamente em teologia ; e Giordano Bruno, ah...pelo amor de Deus! O homem era mais católico que o Papa, por assim dizer...frade dominicano e ocultista hermético – sugiro umas leituras básicas e introdutórias de Eliphas Levi a todos quantos tenham a curiosidade de saber o que significa exatamente ‘ocultista hermético’. Transformar em ateus tais personagens históricos assassinados em circunstâncias que não se deu ao trabalho de entender quais sejam é má-fé (ops...)

4. EU CONTO OU VOCÊS CONTAM?

Isso tudo é inócuo como argumento, claro : o ateu contemporâneo é opaco à razão, a própria constituição do universo, por exemplo, é para esse tipo uma obra do acaso, pouco importando o quão estatisticamente improvável tal dogma seja. Para o evolucionista neo-darwinista, no entanto, faz todo o sentido a Teoria do Primata Aquático, que em linhas gerais confere à crença em sereias o status de ‘ciência’. Da mesma forma, a noção de Universos Bebês atrai muitos céticos, mesmo depois que o seu autor, Stephen Hawking, veio a público afirmar que tudo não passa de uma grande besteira – teve, no entanto, a dignidade de se desculpar a tempo. Não, não esperamos compreensão daqueles que colocaram a própria definição de verdade sob suspeita em nome de um grande e inabarcável nada reverberando o imenso vazio em suas próprias almas. A rigor, ateísmo não necessariamente define caráter, então não é exatamente o caso de se afirmar que o indivíduo seja intelectualmente desonesto porque é ateu, mas ser ateu é consideravelmente mais confortável quando se é intelectualmente desonesto.

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Israel Rozário
Enviado por Israel Rozário em 18/08/2020
Código do texto: T7039243
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