A arca de Noé
Absalão era um homem justo. Ia semanalmente ao templo orar, fazia jejum uma vez por ano, dava esmola e não falava mal de ninguém. Um dia o Senhor apareceu-lhe no meio de um fogo e foi logo falando: “Absalão, Absalão, vou acabar com o mundo! Os homens estão corrompidos, só pensam em lucros, não reverenciam os mais velhos, abandonam as crianças, deita homem com homem e mulher com mulher. Mas você é um homem justo, com objetivos, por isso quero salvá-lo. Daqui há quarenta dias vai chover. Construa um barco para você e sua família”. E puff, desapareceu. Assustado, Absalão reuniu a família para dar início a um empreendimento. Um genro, formado em administração propôs: “É preciso organizar! Vamos criar departamentos, como o Debar (Departamento do barco), o Defin (Departamento de finanças), o Dereh (Departamento de recursos humanos), o Demes (Departamento de meios e serviços), o Deinf (Departamento de informática) e o Deaud (Departamento de auditoria). A filha de Absalão, pós graduada em psicologia, disse: “É imprescindível criar-se uma Coordenadoria de seleção, a Cosel, e mais uma assessoria de aconselhamento vocacional, a Avoca. Um sobrinho, militar reformado, argumentou: “Um empreendimento desse porte precisa de segurança e informações. É preciso criar um Departamento de segurança (o Deseg), nunca se sabe, há muitos subversivos espalhados por aí. E começaram a fazer reuniões. O chefe do Demes veio, alarmado, comunicar à área de recursos humanos que os cortadores de madeira estavam reivindicando periculosidade, e se negavam trabalhar fins-de-semana sem pagamento de horas-extras. Também reclamavam o não-pagamento do “auxílio-alimentação”. A culpa foi atribuída aos Defin que não liberou a verba para comprar as cabras fornecedoras de leite. Absalão cobrou do Debar o atraso da obra. “É que não há gente especializada. Um concurso levaria mais de noventa dias. Vou convidar um vizinho meu, um tal de... Neul, Noah, Noé, sei lá, que dizem ser carpinteiro, para nos dar uma mão”, respondeu o chefe. Uma tarde, Absalão chegou à sala do Deplan e não encontrou ninguém. Perguntado, o ascensorista respondeu que estavam em greve até que fosse aprovado o quadro funcional, com o programa de “cargos e salários”. Quando retorno a seu gabinete, no vigésimo andar, Absalão recebe do chefe do Demes a notícia de que a “comissão de compras” comprou uma madeira barata mas ordinária, que está toda carunchada e só resta pô-la fora. A área financeira exige nova licitação para a compra de madeira. Que fazer, ponderou Absalão? Enquanto assim conjeturava, entra na sala o chefe da Cosel, que informa: “Pesquisei a pasta funcional dessa tal de Noé e constatei que ele foi admitido sem concurso e sem se submeter a exame psicotécnico. Já mandei demiti-lo”. Desgostoso, Noé resolve ir embora rio abaixo. Não agüentava mais a burocracia daqueles tecnocratas imbecis. Apanhou as madeiras bichadas, que o “controle de qualidade” rejeitou e fez um barco tosco, para ir embora com sua família e alguns bichinhos de estimação. Ao ver que tudo ainda estava na estaca zero, Absalão se apavora. Não tinha madeira nem carpinteiro, e estava cercado por um bando de assessores, legítimos aspones (“assessores de porra-nenhuma”) e o prazo se esgotando. Mandou passar um e-mail. De: Absalão. Para: Deus. Assunto: prazo. Texto: “Devido problemas estruturais solicito prorrogação prazo do dilúvio”. A resposta é imediata. De: Deus. Para: Absalão. Assunto: prazo. Texto: “Prorrogação negada!". E começou a chover forte. As pessoas saíram à sua para olhar a água que começava a se formar. Lá adiante vinha um barco deslizando na corrente. À frente, uma singela tabuleta: “Arca de Noé”.
(Esta crônica, premiada com Troféu David Nasser, em 1994, retrata a burocracia da Caixa Econômica Federal, de onde o autor é aposentado)