A arte é errante

Manuel bandeira

O Bicho

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Ontem depois do curso, como sempre faço, desci a avenida Ipiranga, do lado do cine Marabá, um rapaz sentado da calçada comia com as mãos um macarrão branco, não branco bistrô, mas branco de não ter sido temperado, branco por não estar pronto, branco por ter sobrado e cabe a alguém de “menos valor” antes que se estrague. Suas mãos estavam sujas, as unhas grandes e irregulares, a pele imunda e os olhos não lembrava um pouso ou uma janela, era mais como um susto, uma dor de quem foi expulso de algum direito. De certa forma, um olhar sujo de tempo, sujo de uma vida miserável e sem dignidade. No entanto, ele comia, comia com as mãos, com volúpia, quem sabe com alegria, chupava os dedos, lambia como quem quisesse perseverar no gozo e, de novo, punha a mão no prato, e engolia quase sem mastigar numa golfada de satisfação. Os lábios ao se mexerem eram prazer e suspensão.

Um rapaz que seria como outro qualquer se não fosse o lugar, o contexto, teria uma namorada, um emprego, quem sabe um irmão mais novo, um melhor amigo, uma dor, seria normal e invisível como toda a gente normal. Como o arqueiro zen, não foi o prato o alvo, mas ele próprio. A comida estava com ele como seu pulmão, sua pele, sua saliva e seus pensamentos. Uma cena precária, porém, de uma unidade que pouco vi na vida. Diante de sua fome, de sua necessidade não havia obstáculos, era passagem e verdade. Tão presente, tão na sua tarefa, apesar do horror das ruas, da vida, apesar do que o mundo fez com ele, apesar dele mesmo e seus erros (deve ter cometido alguns). Não sei dizer se ele é assim jogando baralho, ou limpando para-brisa, ou conversando com alguém. Lembrei depois de Ezra Pound, que também

tinha fome, não de comida, mas de vida e isso o colocava mais perto da arte.

"Não é, Ruaana, que eu soe mais alto

Ou mais doce que os outros. É que eu

Sou um Poeta, e bebo vida

Como os homens menores bebem vinho."