A FILÓSOFA SIMONE WEIL

226

A FILÓSOFA SIMONE WEIL

Antônio Mesquita Galvão

Simone Adolphine Weil (1909 – 1943) foi uma escritora, mística e filósofa francesa, que se tornou operária da Renault em Paris para escrever sobre o cotidiano dentro das fábricas. Lutou na Guerra Civil Espanhola, ao lado dos republicanos, e na Resistência Francesa, em Londres; por ser considerada comunista, foi impedida de retornar à França como pretendia; acometida de tuberculose, não teria admitido se alimentar além da ração diária permitida aos soldados, nos campos de batalha, ou aos civis pelos cupons de racionamento.

Revelando precocemente uma inteligência notável e uma personalidade excêntrica (recusava-se freqüentemente a comer por razões ideológicas e estava determinada a permanecer virgem), Simone já falava grego arcaico aos doze anos de idade. Aos quinze, obteve um bacharelado em filosofia e passou três anos preparando-se para o concorrido exame da École Normale Supérieure sob a supervisão do filósofo anarquista “Alain” (que a apelidou – por causa das roupas estranhas que costumava usar – de “Marciana”). Simone foi uma das primeiras mulheres a estudar na instituição. Existem controvérsias se ela teria se formado em primeiro ou segundo lugar (conforme afirmam outras). Todavia, todas as fontes são unânimes em afirmar que ela graduou-se imediatamente à frente de outra Simone – a de Beauvoir.

Em 1931, Simone Weil tornou-se professora numa escola secundária para moças em Le Puy, onde ganhou outro apelido exótico: “Virgem Vermelha”, algo como um misto de freira e anarquista. Compartilhava a prosaica atividade do magistério com períodos exaustivos trabalhando em fazendas e fábricas, método pelo qual encontraria “o tempo como condição e o espaço como objeto” de sua ação, pois segundo seu pensamento, o mundo é o lugar adequado para um intelectual estar, ajudando as pessoas a refinarem seus poderes de observação e capacidade crítica; e que o papel apropriado para a ciência é permanecer integrada com a vida produtiva, sem a qual, torna-se meramente um sistema remoto de sinais vazios.

Depois de dizer para suas alunas que “a família é prostituição legalizada... a esposa é uma amante reduzida à escravidão” foi demitida de escola por uma diretora severa e expulsa da cidade. Em agosto de 1932, Simone viajou a Berlim para conferir de perto a situação na Alemanha onde constatou o impasse do movimento revolucionário, espremido, de um lado, por uma socialdemocracia reformista, cujos líderes, bastante próximos dos governantes da República de Weimar, eram por demais estranhos ao proletariado ativo na produção industrial; do outro, por um partido comunista fragilizado, agrupando desempregados e elegendo os socialdemocratas como seus principais adversários. Ambos deixavam o campo aberto para o avanço de Hitler e do nacional-socialismo. Notou a subordinação, seja da social democracia à burguesia gestora do Estado capitalista, seja da Internacional comunista ou Komintern, à burocracia gestora do Estado soviético. Suas impressões de viagem foram registradas em alguns artigos escritos entre 1932 e 1933.

Em 1933, publicou um artigo considerado herético pelos marxistas ortodoxos “Allons-nous vers la révolution prolétarienne?” (Vamos para a revolução proletária?"), no qual enfatizava: a opressão do proletariado era causada pelas técnicas da produção industrial, presentes tanto no capitalismo quanto no socialismo burocrático vigente na Rússia. Aos materialistas históricos faltara a capacidade de enxergar o real com a lucidez que lhes permitisse tanto compreender a realidade histórica das primeiras décadas do século XX, quanto formular a crítica à infundada expectativa de uma efetiva ou iminente revolução proletária.

À epígrafe desse artigo, que teve o mérito de antever a falência do socialismo real, eram os versos do Ajax de Sófocles: “não tenho senão desprezo pelos mortais que se nutrem de esperanças vãs”. Talvez, como ela observou posteriormente: “não é a religião, mas a revolução que é o ópio do povo”. A sua própria experiência de operária metalúrgica, iniciada alguns meses mais tarde, levou-a a compreender melhor que: em nenhum país onde prevaleciam as técnicas produtivas implantadas a partir do modo de produção capitalista (incluindo os que estavam sob o domínio do nazismo, do fascismo e do stalinismo), o planejamento da produção estava prestes a cair sob o controle operário; assim, os mais generosos ou corajosos militantes revolucionários, na mais trágica hipótese, seriam mártires em busca de sua própria morte.

Simone tornou-se uma filósofa militante. Em 1934, licenciou-se por dois anos do magistério para tentar viver como e entre operários. Todavia, sua resistência física só lhe permitiu levar o projeto até agosto de 1935, quando, trabalhando na linha de montagem de carros da Renault, caiu doente com uma inflamação na pleura. O “journal d'usine” (Diário da fábrica) que ela manteve durante esse período observa que “a exaustão me fez esquecer finalmente as verdadeiras razões pelas quais estou na fábrica; ela faz quase invencível a tentação que esta vida traz consigo: não mais pensar"

Ela ficou tão traumatizada por sua experiência fabril, que abandonou imediatamente quaisquer noções românticas que ainda tivesse sobre o proletariado e sua (ou de quem quer que fosse) habilidade para ajudá-lo. Ela descobriu que a opressão não resulta em rebelião, mas em obediência e apatia - e até mesmo na interiorização dos valores do opressor.

Com base em sua experiência pessoal, ela argumenta no ensaio “Expérience de la vie d'usine” (Vivendo a vida da fábrica), que a automação é uma boa coisa ao eliminar trabalho penoso e servil, mas que a superautomação transforma um trabalhador qualificado em nada mais que um intermediário entre o maquinário e as coisas a serem processadas: “coisas fazem o papel de homens, homens o papel de coisas. Aí jaz a raiz do mal”.

A única solução possível, segundo Simone, não seria um retorno ao modo rude da manufatura - uma noção de nova visão que ela achava grotesca - mas automatizar somente as tarefas mais ingratas, e para todas as outras, empregar a “máquina-instrumento”, a qual combina a precisão da máquina com a assistência habilitada do trabalhador, exigindo do operador, proatividade, iniciativa e uma apreensão inteligente das partes operacionais.

Ao refletir sobre a máquina-instrumento, a qual - diferentemente da máquina automática - requer que seu operador reconheça certos limites físicos do que pode e do que não pode ser feito, Simone começou a avançar o desenvolvimento de sua visão do “equilíbrio do homem consigo mesmo e do homem com a realidade”. Não mais percebemos as dificuldades diretamente, nem conscientemente nos aplicamos à sua solução, ela observou em seu diário. Em vez disso, vemos apenas sintomas, e empregamos apenas “resultados (ou seja, das tentativas anteriores de resolver o problema) cristalizados” em máquinas, “álgebra” (sua abreviatura para ciência divorciada da vida) e dinheiro. Para Simone, a lei da sociedade em desequilíbrio é quantidade tornada possível pela eficiência. O trabalho pela causa da sobrevivência é substituído pela produção pela causa do lucro. Por esta razão, divagava, “em muitas áreas não podemos escapar exceto pela privação”.

Em julho de 1936, com a eclosão da Guerra Civil Espanhola, Simone foi para Madri e juntou-se à causa republicana. Mesmo sendo míope e frágil, recebeu um rifle e foi incorporada a uma unidade de anarquistas. Sem nenhum preparo para a vida militar, ela quase que imediatamente enfiou o pé numa panela de óleo fervente e teve de ser resgatada e mandada para Assis, na Itália, para recuperar-se. Desanimada com as atrocidades que havia visto em seu próprio lado cometer, Simone reafirmou seu pacifismo.

Ela escreveu “Ne recommençons pas la guerre de Troie” (Não vamos recomeçar a guerra de Tróia!) para a revista Nouveaux Cahiers, lamentando que, “embora vivamos entre realidades mutáveis, diversas e determinadas pelo jogo volúvel de necessidades externas, agimos, lutamos, sacrificamos a nós e a outros em nome de abstrações cristalizadas, isoladas” (como nação, capitalismo, comunismo e fascismo). Forçada a parar de lecionar por causa de sua saúde, Simone tornou-se crescentemente obcecada por questões metafísicas. Em acréscimo ao seu conhecimento enciclopédico que ia da poesia de Homero às últimas descobertas em teorias matemáticas, ela começou a estudar os maniqueus, os gnósticos, os filósofos pitagóricos bem como o taoísmo e o budismo.

Nessa busca devorou o Livro dos Mortos egípcio, e ficou tão impressionada com o Bhagavad Gita que começou a aprender sânscrito por conta própria. Posteriormente, ao ouvir um canto gregoriano num mosteiro beneditino enquanto sua enxaqueca estava no auge, ela “experimentou a alegria e amargura da paixão de Cristo como um evento real” – e pela primeira vez começou a pensar em si mesma como uma pessoa religiosa.

Com o início dos conflitos entre França e Alemanha em setembro de 1939, Simone deixou claro em diversos artigos para o Nouveaux Cahiers que apesar do medo e da raiva que os nazistas lhe causavam, era uma irresponsabilidade que políticos e jornalistas franceses os retratassem como bárbaros desumanos, visto que “todo povo que se torna uma nação submetendo-se a um estado centralizado, burocrático e militarizado, subitamente torna-se e permanece um flagelo para seus vizinhos e para o mundo”, ou seja, a França não era diferente deles. Em 1940, quando os alemães entram em Paris, ela foge para Marselha onde passa a colaborar, sob o pseudônimo de Emile Novis (anagrama de Simone Weil), com o jornal Les Cahiers du Sud organizado por um grupo de escritores fugitivos.

É lá também que conhece o padre católico Joseph-Marie Perrin, que fica tão impressionado com os pensamentos dela sobre a cristandade que a convida a batizar-se. Simone, todavia, recusa a oferta afirmando que “não quero ser adotada por um círculo, viver entre pessoas que dizem ‘nós’ e ser parte de uma ‘gente’, descobrir que ‘estou em casa’ em quaisquer cercanias humanas, sejam lá quais forem... sinto que é necessário e ordenado que eu deva permanecer só, uma estranha e uma exilada em relação a qualquer círculo humano, sem exceção”. O padre Perrin a apresenta então a Gustave Thibon, um teólogo leigo que administrava uma colônia agrícola católica. Lá, ela pode praticar o ascetismo do modo como sempre havia desejado: trabalhou nos campos e vinhedos durante a colheita ao lado dos camponeses, dormia num saco de dormir no chão e se alimentava somente de cebolas e tomates. Também escreveu muito. O resultado de sua tentativa de fundir antigas idéias gregas sobre o impessoal e o contemplativo com o catolicismo, é um corpo de pensamento que parece ao mesmo tempo insano e verdadeiro.

Em abril de 1942, ela deixa seus diários com Thibon e emigra para os Estados Unidos, de onde começa a planejar seu retorno à Europa. Escreve para o governo provisório francês exilado em Londres, expressando sua ânsia em pular de pára-quedas sobre a França ocupada numa “missão secreta, preferivelmente perigosa” Também começou a escrever uma nova série de diários, que Albert Camus, a quem chamava de “o único grande espírito do nosso tempo” eventualmente publicou como “Cahiers d'Amerique” (Diários da América) na coleção “La Connaissance Surnaturelle” (O Conhecimento Sobrenatural). Valendo-se dos seus contatos, Simone finalmente conseguiu ser chamada à Londres, onde se viu encarregada de analisar todas as sugestões de como organizar a França depois da guerra. Desapontada com o nacionalismo gaullista, que considerou antiquado, logo renunciou ao cargo, e afirmando que não tinha o direito de comer mais do que seus camaradas na França ocupada, deixou-se passar fome até que teve de ser hospitalizada.

Depois de sua recuperação, ela fez um último esforço para compilar suas idéias sobre a tão sonhada “sociedade sem opressão”. O resultado é L'Enracinement (O Enraizamento", a qual o poeta e crítico Kenneth Rexroth, por exemplo, dispensa como um produto da agonia intelectual e espiritual, espasmódica e moribunda de sua autora. Apesar do tom histérico, Simone reafirma seu posicionamento: antes que a sociedade possa ser regenerada, devemos reconhecer que cada problema social é um sintoma de um profundo desenraizamento (um estado “mais ou menos similar à vida puramente vegetativa”), produzida por – naturalmente – dinheiro, mecanismo, ciência e tecnologia divorciadas da vida e o uso da força. A política deve ser algo mais do que impor uma ideologia sobre a tática particular de um grupo social que queremos levar adiante, conclui Simone. Deveria ser uma reflexão inteligente sobre a realidade, conduzida por pensadores profundos.

Pouco depois de terminar “O Enraizamento”, ela escreveu em seu diário: “dado o dilema geral e permanente da humanidade neste mundo, comer até que se esteja saciado é um abuso (E eu tenho sido culpada muitas vezes.)” Ela alimentava um complexo de culpa de, apesar de ser tão inteligente e preparada intelectualmente, pouco ou nada haver contribuído para o progresso da humanidade.

Aparentemente abraçando o ideal cátaro de morrer antes de sucumbir às tentações da carne e ao desejo de poder, Simone recebeu um diagnóstico de tuberculose em abril de 1943. Enviada para um sanatório no campo, recusou se alimentar, insistindo que suas refeições deveriam ser mandadas para os soldados da França. Morreu de parada cardíaca aos 34 anos de idade no Sanatório Grosvenor, em Ashford, Kent. Uma rua da cidade foi batizada com o seu nome.

Algumas obras de Simone Weil traduzidas para o português

• A condição operária e outros escritos sobre a opressão. Paz e

Terra, 1979.

• A gravidade e a graça. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

• Espera de Deus. São Paulo: ECE, 1987. Edição Portuguesa:

Lisboa: Assírio & Alvim, 2005.

• Pensamentos desordenados acerca do amor de Deus. São Paulo:

ECE, 1991.

• Aulas de Filosofia. Campinas: Papirus, 1991.

• O Enraizamento. São Paulo: EDUSC, 2001.

• Opressão e Liberdade. São Paulo: EDUSC, 2001.

• A fonte grega. Lisboa: Ed. Cotovia, 2006.

• Pela supressão dos partidos políticos. Editora Âyiné. 2016.

Pensamentos de Simone_

A amizade não se busca, não se sonha, não se deseja- ela deve

ser exercida, como uma virtude.

Magoar alguém é transferir para outrem a degradação que existe

em nós.

Nada no mundo pode impedir o homem de se sentir nascido para

a liberdade. Jamais,, aconteça o que acontecer, ele aceite a

servidão, pois é um ser que pensa.

A alegria é a nossa evasão do tempo.

O bem é aquilo que dá maior realidade aos seres e às coisas. O

mal é aquilo que disso os priva.

Eu posso, portanto eu sou...

Deus só pode estar presente na criação sob a forma de ausência.

O inferno é nos darmos conta de que não existimos e nos

conformamos com isso.

O autor é filósofo e escritor.

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 22/05/2017
Código do texto: T6006432
Classificação de conteúdo: seguro