Ninguém liga pro Daniel Blake (Ken Loach, 2016)
 
O filme começa com palavras num fundo negro: apenas um diálogo. Um homem e uma mulher falam sobre o questionário para obter benefício previdenciário. Muitas frases são ditas antes que as imagens venham à luz. O diretor é um parteiro de imagens sóbrias, realistas, em tons azuis acinzentados e focos originais. O filme tem cortes bem marcados de tempos em tempos, indicando a passagem de períodos: segundos de tela negra e silêncio destacam trechos da obra.

A narrativa mira a burocracia, a frieza, a falta de humanidade, o despreparo programado dos técnicos, que negam benefícios vitais para pessoas mais pobres, numa sociedade claramente desigual. Mira, sobretudo, o estado, a máquina pública e os vilões são os gerentes do instituto de previdência britânico. Daniel Blake, carpinteiro há mais de 40 anos, viúvo, morador de uma cidade média, sofreu um infarto, quase morreu. Sua médica o proibiu de trabalhar. Porém, mesmo com o laudo, o benefício lhe foi negado. Daniel não é um homem paciente, submisso; é um homem ciente dos seus direitos, astuto, tem o dom da ironia, a simpatia de um homem experiente, que convive em harmonia com vizinhos pobres, imigrantes.

A trama pode lembrar “o processo” de Kafka, mas é muito mais realista, embora as exigências e a falta de abertura ao diálogo nos deixem mareados, enjoados, irritados, tensos. Blake tenta, fala, grita e, ao presenciar o absurdo da negativa de atendimento a uma mulher jovem com duas crianças, toma partido, em defesa da mãe desnorteada. Ambos terminam expulsos da unidade, agressivamente. E daí começam uma amizade.

Há cenas que expõem a globalização, quando um vizinho de Daniel recebe pares de tenis da china para revender na cidade, e também com a multietnicidade das personagens, além da conversa por vídeo com o chinês apaixonado por futebol. O filme revela a vida, os impasses, os dramas de Daniel e Katie, que está longe da família e sem dinheiro. O filme é realista e delicado.

A narrativa tem sua poesia, com os dons artísticos do senhor solitário que faz peixinhos de madeira para pendurar no teto, rendendo belas imagens dos bichinhos contra a luz da janela, por onde entra alguma claridade
para aquecer a casa e a vida em crise de pessoas que estão isoladas e sem meios de subsistência. Os peixinhos de madeira me lembraram os de ouro de Aureliano Buendia (Cem anos de Solidão).

E a trama remete também a outra obra de Gabriel Garcia Marquez, a novela “Ninguém escreve ao coronel”, no qual um senhor espera o pagamento de sua aposentadoria pelo correio. O coronel, como Daniel, sofre pela sobrevivência, lutando contra a burocracia. As cartas, as ligações, os questionários, a fome, as amizades, tudo é descrito no livro escrito em 1957, sobre a vida (ou sobrevida) de um senhor numa pequena cidade colombiana.

Blake lembra também a Clara de Aquarius: um homem com dignidade, força, história e uma disposição de lutar, mesmo que o coração já esteja enfraquecido. Nenhum dos dois se submete. Uma das cenas mais marcantes é quando Daniel inscreve seu recurso fora do lugar, numa superfície pública, aberta. O fato de escrever diz muito. A palavra. Mais uma vez. Se o diálogo inaugural tinha o fundo negro, agora a palavra se expõe aberta. Um homem pobre, um homem machucado pela vida, com roupas velhas, bêbado começa a defender Daniel e faz um belo discurso, se identificando também como uma vítima do governo, “dos gordos com suas taxas”.

Em tempos de governantes que apagam arte, pichar pode ser um meio de dizer (qual o lugar da arte?). E qual o lugar do poder econômico? O filme é magnífico, o diretor Ken Loach faz um trabalho excelente, porém penso que a narrativa poderia abordar mais a vinculação do poder privado ao público, as relações econômicas capitalistas que criam e reproduzem a desigualdade, a exploração, a negação da dignidade de forma sistemática. Os vilões do filme, burocratas do estado, só fazem o trabalho sujo para os empresários ricos.

E a palavra, ao final, surge com um discurso deslocado, agora não de superfície mas de personagem, um discurso que vai além. Um recurso/discurso que é escrito e acaba lido fora da repartição, longe do seu lugar, um recurso que lembra a carta não enviada, que segundo Lacan seria para o grande Outro. O filme é como a mensagem, e lá como aqui vemos idosos tendo que trabalhar, mesmo doentes, para sobreviver e todo avanço neoliberal de privatização, redução do estado. Pode ser que amanhã ninguém nos escreva.

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Filme: "Eu, Daniel Blake"
KEN LOACH
Ficção/Fiction
Cor/Color DCP 100'
Reino Unido / França - 2016
Direção/Direction: 
KEN LOACH
Roteiro/Screenplay: 
PAUL LAVERTY