“Poetas niversitário” e “poeta camponês”: linguagem, dispositivos de poder e educação linguística na escola

A partir da década de 1970 é que se dá alteração significativa no ensino brasileiro em vista da nova realidade política vigente no país, ou seja, a democratização do ensino promove um acesso maior dos alunos de classes não elitizadas à Educação Básica. A conseqüência imediata dessa ascensão de alunos ditos “não cultos” à escola é a reformulação dos parâmetros de ensino das disciplinas curriculares da Educação Básica, isto é, o ensino passa então, a ser tecnicista como forma de garantir uma educação que possibilitasse aos alunos o ingresso ao mercado de trabalho. Razões cíclicas sucedem-se diante desse quadro de mudanças no ensino.

No que tange à Língua Portuguesa, os procedimentos adotados para essa disciplina vão ao encontro desse caráter tecnicista instaurado, isto é, deu-se ênfase ao ensino de Língua Portuguesa como meio de expressão e de comunicação, acarretando um esvaziamento do estudo da Literatura e uma crescente prática de reconhecimento de códigos visuais de linguagem. O espaço destinado ao estudo da gramática justificava-se como descrição da norma para um propósito muito bem definido: o acesso ao ensino superior. Assim, o ensino da gramática manteve o padrão de correção de erros.

A Linguística entra em cena no Brasil, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, e seu impacto primeiro foi o de mostrar que o comportamento linguístico observável nas diversas modalidades de fala no Brasil era distinto do que a gramática normativa exigia. O entendimento das variantes linguísticas é que dá pulsão suficiente aos linguistas para tentar desfazer a preconceituosa ideia de uma língua padrão única. Certamente que temos a norma culta a nos orientar com suas regularidades, porém não se pode encobrir o valor da fala, a qual tem um sistema organizado também, e que é a responsável por fazer evoluir os mecanismos da língua. Contestável é pensar que somente a norma culta padrão é que tem valoração positiva, tratando como inaptos e inexpressivos os que têm pouco domínio da mesma.

Se a língua escrita é apenas um fruto da língua falada, porque se estigmatiza tanto o uso da língua falada? Tem certo fundamento pensar que a língua escrita funcionou e ainda funciona como dispositivo de poder. O livre curso da linguagem exige que todo sujeito utilize das expressões subjetivas particularizadas para comunicar-se e fazer-se compreensível, pois se crê que a linguagem é eminentemente construída pela interação sociocultural. Posto isso, pensa-se que a fala individualizada tem por motivação um bem maior do que a língua escrita padronizada pela educação escolar e que, portanto, devem-se valorizar as expressões linguísticas do sistema escolar em termos de registros de língua e de fala dos educandos. Interessante observar como os sujeitos eliminam, muitas vezes, suas ideologias, ao entrarem em contato com as normas padrões da língua.

Explica-se: por mais que a língua escrita ensine o funcionamento dos mecanismos regulares da norma culta padrão, as possibilidades de envolvimento prático com as comunidades linguísticas acontecem através da fala e pela fala, a qual está carregada de identidade social, cultural e histórica e, por consequência, ideológica. Imposições gramaticais nunca foram suficientes para que pessoas ditas “cultas” deixassem de renegá-las, mesmo na escrita. O poeta Carlos Drummond de Andrade “tinha uma pedra no meio do caminho” e não “havia uma pedra no meio do caminho”.

Cita-se um trecho de um poema de Patativa do Assaré, poeta nordestino semianalfabeto que criava poemas tanto nos moldes clássicos, como, por exemplo, sonetos, assim como poemas de rima e de métrica popular. Mesmo sem ter estudo considerado suficiente para o conhecimento clássico da poesia e para o conhecimento considerado apropriado dos mecanismos da norma padrão da língua, Patativa produziu obras literárias com linguagem poética excepcional. O poema que segue tem por função, nesse texto, não apenas valorar positivamente a obra poética de Patativa do Assaré, mas também, tem por finalidade, por conta de seu conteúdo, questionar instrumentos e/ou ferramentas de poder e de subjugação através da linguagem:

“Poetas niversitário,

Poetas de Cademia,

De rico vocabularo

Cheio de mitologia;

Se a gente canta o que pensa,

Eu quero pedir licença,

Pois mesmo sem português

Neste livrinho apresento

O prazê e o sofrimento

De um poeta camponês...”