ENTRE O SAGRADO E O PROFANO

por Sérgio Feldmann*

Uma das mais belas e significativas cerimônias judaicas é a Havdalá que separa o Shabat (dia semanal do descanso) e o restante da semana. É celebrado após o pôr-do-sol do sábado, sem rigidez, desde que o Shabat já tenha terminado. Algumas linhas religiosas estendem a duração do Shabat e tardam a celebrar o final do mesmo, com esta cerimônia. Não se trata de uma quebra de regras e normas, mas o simbólico desejo de “seguir” no tempo sagrado por mais alguns minutos e talvez até por algumas horas. Isso só pode ser feito na saída ou final do Shabat, nunca em seu início. O começo do Shabat é regido por normas inflexíveis e por um horário rígido de acendimento de velas e de “interrupção de todo tipo de obras e trabalhos”. O início do tempo sagrado do Shabat é uma repetição do momento da Criação do Mundo: deve ser rigidamente lembrado e demarcado. É a fronteira entre o tempo “profano”, no qual se trabalha e se produz, e o “tempo sagrado”, em que se deve dedicar as atenções para gestos e atitudes diferentes daqueles do cotidiano. O Shabat é o maior símbolo da fronteira entre o sagrado e o profano.

O que seria o sagrado? De onde vem esta expressão? Há muitas explicações e há divergências de opiniões. Escolhemos uma delas. O Radical K D SH (kuf+dalet+shin) que origina a palavra Kadosh (Santo) e compõem inúmeras outras palavras e expressões como Kidush (santificação do vinho no Shabat e nas festas), ou Kedushá (oração inserida na Grande Oração ou Shemone Esre), serve para formar muitas palavras e alguns verbos. Um deles é verbo Leakdish, que eu traduzo livremente como “dedicar”. O que seria dedicar?

Um dos eixos do Judaísmo através dos tempos foi definir os caminhos para aproximar o ser humano de D-us e de sua plena “humanidade”, separando o Homem de gestos e atitudes considerados inadequados sob a ótica judaica. Um dos elementos mais importantes deste distanciamento seria manter a crença monoteísta e a negação da idolatria. Crer num D-us único, criador dos céus e da terra e negar que o(s) ídolo(s) (leia-se matéria ou noutra ótica obra das mãos de algum humano), fosse(m) confundido(s) com D-us. A essa essência juntava-se uma coletânea de leis e normas denominadasmitzvót ou preceitos. São 613 regras e normas de conduta que estão inseridas no texto do Pentateuco (Lei de Moisés ou Torá).

À primeira vista tal legislação e as leis dela derivadas criaram um complexo conjunto de regras e normas que compõe o Judaísmo “normativo”. Ordenações e proibições de coisas que se pode ou se deve praticar ou que não se pode fazer. Alimentos permitidos ou não permitidos de se consumir. Regras rígidas sobre os horários e as maneiras de se fazer orações; minuciosas maneiras de se agir diante de uma gama ampla de fatos do cotidiano. Cerca-se o judeu com uma complexa ‘cerca de regras e normas’ que se denomina Halachá. A Halachá seria o caminho judaico de vida ou a maneira judaica de ser e de agir neste mundo. Um judeu ortodoxo não pode transgredir as regras e se ousar agir fora destas estaria pecando. Um controle social, espiritual e ritual rígido e detalhado.

Para que? Qual seria o objetivo? Uma das possíveis explicações (mas não a única com certeza) seria para que se dedicasse (LEAKDISH=DEDICAR) a fazer as coisas adequadas.

Quais seriam estas coisas que merecem nossa dedicação? Algumas delas estão inseridas no cotidiano do Shabat, a saber:Kedushá (santificação) que na prática significa rezar, ler e estudar a Torá; Menuchá (descanso) tanto o espiritual quanto o físico; e Oneg (de difícil tradução, mas nos permitirmos interpretá-lo como satisfação criativa) que seria fazer tudo aquilo que gostamos e que não redunde em mal ao próximo e nem infrinja os princípios judaicos. Dependendo da linha religiosa isto pode ser visto de maneira diferenciada. Na minha interpretação Oneg seria: passear no parque, sair para jantar com o cônjuge e conversar com filhos e amigos. Ver um bom filme ou praticar um esporte que nos dias “comuns” e profanos não se faz. O segredo seria “diferenciar” o profano (dias da semana), do sagrado (Shabat). Seria DEDICAR o momento mágico e sagrado do Shabat a rezar, a estudar a Torá e também a fazer aquilo que gostamos, mesmo que aparente seja profano, como se fosse um complemento que diferenciaria o dia da semana e o Shabat.

Aos leitores de concepção religiosa ortodoxa isto soa uma heresia e uma teoria não judaica. Receio dizer que mesmo respeitando outras visões e concepção, me permito responder: não há nada mais judaico do que libertar o ser humano dos grilhões e das verdades absolutas. O Judaísmo não tem dogmas e nem possui lideranças e sábios de saber e palavras infalíveis e que “outorgam” a autoridade divina, aos mesmos. A Mishná e a Guemará trazem lado a lado, a opinião da maioria, junto com a opinião dos sábios que foram “voto vencido” nos debates rabínicos e mantém por estas concepções minoritárias e divergentes um imenso respeito, além de permitir que sejam usados em situações diversas. Pensar, discordar e refletir são atitudes tipicamente judaicas.

Assim sendo prosseguimos na reflexão.

Separar o sagrado do profano não significa tornar o profano dotado de um caráter maligno. Não há uma concepção judaica que considere o não sagrado como maligno. O Judaísmo almeja sacralizar o cotidiano e tornar o “profano”, cada vez mais sagrado. Não pretende exorcizá-lo. O sagrado deve aparecer no cotidiano e tornar o profano um pouco mais sagrado.

As regras do cotidiano inseridas nas mitzvót ou 613 preceitos são um mecanismo para controlar o judeu e impedir que se contamine com a idolatria, o politeísmo e tudo que se relaciona com os mesmos. Além disso, almeja civilizar o judeu impelindo-o a amar e ajudar ao próximo, ser honesto e acima de tudo ser justo no mais amplo significado da palavra justiça (que inclui a justiça social). Por isso se torna uma cerca, um emaranhado de restrições e controles que na realidade de nossos dias soa a anacronismo e se assemelha a uma arcaica e pesada armadura que apesar de nos proteger, nos tolhe os movimentos e fragiliza nossa relação com o mundo.

Nossos antepassados souberam sacralizar o cotidiano. A família se reunia em torno da mesa para as refeições e proferia as bênçãos antes de comer e a reza em agradecimento pela comida (Birkat há Mazón). Assim o gesto rotineiro e natural de se alimentar deixava de ser uma simples atitude inserida na cadeia alimentar dos seres vivos, para ser uma ação sagrada. As regras dietéticas judaicas se inserem também nesta concepção: não ingerir certos tipos de alimentos, não utilizar certos tipos de carnes de animais considerados impuros, e tratar seletivamente a separação entre o profano e o sagrado. Os alimentos são assim sacralizados. Comer é um gesto sagrado, uma rotina que não deve se tornar profana.

Até a vida conjugal e a sexualidade conjugal deixam de ser instintos e necessidades carnais para serem “sacralizados”. O noivo abençoa a sua noiva antes de se casar: uma etapa do casamento se denomina kidushin, do mesmo radical deKadosh. O noivo (chatan) e a noiva (calá) passam a se dedicar um ao outro. Cada um dos cônjuges “separa” e santifica sua amada (amado). Toda a cerimônia do casamento está imbuída desta visão. Em todos os ritos e celebrações do cotidiano, no ciclo semanal (Shabat) e no ciclo anual (Festas Judaicas) e até mesmo no ciclo da vida (no rito da circuncisão ou brit milá; no casamento e até na morte), aparece a separação do sagrado e do profano e o gesto deLeakdish, ou seja, dedicar-se.

O caminho para se dedicar e inserir o sagrado em nossa vida pode e deve ser reinterpretado. Necessitamos do Shabat:precisamos do descanso espiritual e físico; preenchemos nosso alma com a espiritualidade e com a Divina Presença através da oração e do estudo de nossa Torá; mas precisamos do Oneg (satisfação criativa) para transcender o cotidiano opressivo de nossa vida cotidiana.

Vivemos sob a pressão da competição, da ameaça do desemprego, da miséria e da violência urbana. Sem reinterpretar os gestos do cotidiano nos tornaríamos robôs. Sacralizar os gestos, imprimir em atitudes cotidianas a marca pessoal e a simbologia judaica renovada.

Não podemos manter as normas das mitzvót inalteradas: seria uma pesada armadura “medieval” que tolheria nossos gestos e impediria uma vida judaica plena e criativa. Mas aboli-las e negá-las de maneira absoluta seria desacralizar nosso mundo e impedir nossa alma judaica de obter a plenitude de sua existência.

A neurose da vida no mundo contemporâneo se insere entre muitas outras razões na falta de vida espiritual e na absoluta dessacralização do cotidiano e dos gestos. Quantas neuroses e quantas depressões deixaríamos de sentir se inseríssemos o sagrado em nosso cotidiano.

A verdade é que os ortodoxos são felizes e se sentem em absoluta plenitude com a vida, com a natureza e com a História. Não dedico a eles estas reflexões, pois lhes parecerá uma absoluta heresia. Dedico este artigo aos que querem ser judeus e não querem ser regidos pelo Judaísmo normativo que coloca a cerca em torno do judeu e evita o diálogo com o mundo profano. Ofereço este texto a meus leitores que querem ser judeus e querem dialogar com o mundo. Inserir o sagrado no profano e não negar o mundo e a realidade circundante. Ver e analisar o mundo como judeu mas não negar o mundo se isolando por trás de uma cerca elevada e rígida.

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*Doutor em História pela UFPR e professor de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória, e ex-professor adjunto de História Antiga do Curso de História da Universidade Tuiuti do Paraná.

(In: http://www.visaojudaica.com.br/Fevereiro2007/artigos/29.html)

Sérgio Feldmann
Enviado por Suely Rocha Haussler Rodrigues em 31/10/2012
Reeditado em 31/10/2012
Código do texto: T3961430
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