SE FOR CORNO, TEM QUE MATAR A MULHER?

A novela “Gabriela” trouxe a tona um tema que era comum no Brasil até meados da década de 70. Mulheres eram assassinadas “por defesa” da honra do pseudo marido traído; aquele que jamais admitiu ser apontado como “corno manso”. Até meados desta década, centenas de mulheres árabes também eram assassinadas por suas famílias, a cada ano, em nome da "honra". Crimes que não há declarações formais; e que a Lei, que deveria punir o criminoso, mantém-se inerte; portanto, sem penalidade; e também muito difícil obter estatísticas precisas sobre esse fenômeno, que é em grande parte justificado aos olhos de algumas sociedades.

No Líbano, o estudo mais recente sobre os crimes de honra remonta a 1998 e mostra frases emitidas entre 1994 e 1998; em 16 casos de assassinato incluiu uma absolvição, quatro casos com um ano de prisão; quatro sentenças de menos de cinco anos de prisão; três sentenças de menos de 10 anos; e quatro prisões perpétuas.

Todos os assassinatos pesquisados foram oficialmente chamados de "crimes de honra". Os casos escolhidos aleatoriamente em que os homens assassinaram seus parentes do sexo feminino para "lavar uma mancha de vergonha da família"; foram listados em um estudo publicado em 1999, feito por renomados juristas internacionais. Dos 16 casos, sete ocorreram no Bekaa, dois em Beirute e o restante em cidades pequenas do sul do país.

De acordo com pessoas ligadas às estatísticas de segurança, havia 22 casos dos chamados "crimes de honra" cometidos entre 1995 e 1997. Números mais recentes não estavam disponíveis. Um advogado libanês, contrário à prática do crime de honra; recentemente declarou em um documento enviado a ONU que o artigo 562 do Código Penal, deles; na verdade, encorajou os homens a cometer tais crimes. O artigo estipula que "um homem que surpreende sua esposa, filha ou irmã praticar adultério ou relações ilícitas; ou ainda, se estas mulheres mataram ou prejudicaram um dos dois parceiros com premeditação, deve receber uma sentença comutada”. A comutação da pena é a substituição dela por algo brando; uma espécie de docinho diante da iminência de ser preso ou morto legalmente.

Em fevereiro de 1999, este mesmo advogado libanês disse que a lei foi alterada para tornar a ação de um homem punível; e que antes disso, a lei absolvia um homem desse tipo de ação. O advogado ativista ainda acrescentou que a segunda parte do artigo; cancelada em fevereiro de 1999, estipulava que um homem que mata ou fere um parente do sexo feminino, se ele surpreendê-la em uma "situação suspeita", receberia uma sentença comutada, que pode ser, inclusive, prestação de serviços à sociedade. Alguém poderia pensar que, com a segunda seção cancelada, homens e mulheres seriam punidos igualmente em casos de adultério, mas na verdade, não é isso que é praticado, ainda.

O atual Código Penal do Líbano pune a mulher que comete adultério com uma pena de prisão entre três meses e dois anos; e adultério, quando cometido por elas; basta que haja apontamento verbal; não precisa de flagrante! Já o homem que cometer adultério, tem de ser apanhado no ato de sua própria casa ou ser conhecido por outros homens para estar conduzindo um caso ilícito; neste caso, ele pode ser condenado à prisão por um mês a um ano de detenção, com a possibilidade de responder em liberdade.

Ativistas de Direitos Humanos do Líbano e de outros países acreditam que o artigo deve ser imediatamente cancelado; assassinatos são trucidamentos de seres humanos e ponto! Não há o que se discutir quando a pessoa, sem qualquer razão de preservação de sua própria vida, tira a vida de outra pessoa. O grande problema no mundo árabe é que o adultério, nos casos praticados por mulheres; são considerados como um crime que abala a vida do homem; e isso é cultural, secular e faz parte da vida das pessoas.

As pessoas nas famílias tribais ou tradicionais podem não ser dissuadidas por uma sentença leve; e isso os encoraja a enfrentar a punição para limpar a reputação da família. Um olhar mais atento às estatísticas dos países árabes indica que as pessoas se aproveitam da lei. Eu próprio pesquisei sobre o tema e tenho feito isso há mais de 10 anos; em contato com um funcionário do Governo do Líbano, que não pode ser identificado, ele me disse que ainda há muitos crimes desta natureza, os crimes de honra; e que isso tudo está registrado como tal, nos relatórios policiais; e que desta forma, a polícia encaminha estes inquéritos simples para o julgamento judicial.

No código penal libanês não há o rótulo de crime de honra, mas as estatísticas mostram que pelo menos oito casos em um período de três anos e que foram reivindicados por familiares para ser "de honra". Num relato de um juiz libanês, assustou-me quando ele cita que mesmo não havendo o crime de honra no seu código penal, há precedentes justificáveis se ele for “honesto”; então, o que pode ser considerado “honesto” num caso de homicídio? Honestidade é o mesmo que integridade; e mesmo que em casos flagrantes, tanto os homens, quanto as mulheres, não podem ser mortos pela prática do adultério.

Documentos da National Geographic Society mostram que a maioria dos assassinatos de honra ocorre em países onde os conceitos das mulheres são interpretados como “recipientes da reputação da família”; e cuja honra é interpretada unilateralmente para estes tipos de casos. Os relatórios apresentados à Comissão da ONU sobre Direitos Humanos mostram que crimes de honra também ocorrem frequentemente em Bangladesh, na Grã-Bretanha, no Brasil, no Equador, no Egito, na Índia, em Israel, na Itália, na Jordânia, no Paquistão, no Marrocos, na Suécia, na Turquia e em Uganda. Há países que não enviam relatórios para a ONU, e esta prática foi tolerada sob o domínio do governo talibã fundamentalista no Afeganistão, e foi relatado no Iraque e Irã. No entanto, enquanto crimes de honra ter provocado considerável atenção e indignação, ativistas de direitos humanos argumentam que deve ser considerado como parte de um problema muito maior de violência contra as mulheres.

Na Índia, por exemplo, mais de 5.000 noivas morrem anualmente porque seus dotes são considerados insuficientes, de acordo com a ONU. Alguém aqui pode imaginar uma mulher morrendo, porque seu pai NÃO CONSEGUIU O SUFICIENTE PARA PAGAR A FAMILIA DO NOIVO? Crimes passionais, que são tratados como mansos podem ser vistos em todos os lugares do mundo, inclusive aqui na América Latina, mas em países de culturas exóticas, parece que isso é uma coisa ingênua. Estes crimes possuem nomenclaturas diversificadas, mas na verdade, todos, é uma mesma coisa, com um nome diferente; eles são covardias praticadas contra a parte mais frágil de uma relação: a mulher!

Em países onde o islamismo é praticado, eles são chamados crimes de honra, mas mortes por dote e os chamados crimes passionais têm uma dinâmica semelhante em que as mulheres são mortas por membros masculinos da família; todos estes crimes são intuídos como desculpável ou inteligível. Eu ainda acrescento que a prática de crime de honra cruza culturas e penetra em todas as religiões; e que a cumplicidade de outras mulheres na família; e na comunidade, fortalece o conceito de mulheres como propriedade; e a percepção de que a violência contra membros da família não necessita de apreciação judicial equitativa.

O que também pude observar é que as próprias mulheres apoiam tais atitudes contra as outras mulheres de sua família; e obviamente que jamais admitiriam algo contra si própria. Frequentemente se observa depoimentos onde elas próprias admitem serem favoráveis a penas severas contra as outras; e isso ou é uma mentalidade de comunidade ou simplesmente é uma questão de censura familiar. Não há nada no Corão, o livro de base os ensinamentos islâmicos, que permite ou sanciona crimes de honra. No entanto, a visão da mulher como propriedade sem direitos próprios e está profundamente enraizado na cultura islâmica.

Em geral, na cultura islâmica as mulheres são consideradas propriedade dos homens em sua família, independentemente de sua classe, grupo étnico, ou religioso. O dono da propriedade tem o direito de decidir o seu destino. O conceito de propriedade transformou as mulheres em uma mercadoria a ser trocada, comprada ou abusada. Os crimes de honra são feitos para uma ampla gama daquilo que eles chamam de delitos. Infidelidade conjugal, sexo antes do casamento, a paquera, ou até mesmo deixar de servir uma refeição na hora; tudo pode ser percebido como questionamento da honra da família.

A mulher acusada por membros da família, de trazer a desonra para suas famílias, raramente possuem a oportunidade de provar sua inocência. Observa-se claramente e inequivocamente que nestes países onde a prática é tolerada ou pelo menos ignorada, existem poucos abrigos e menos ainda o acastelamento legal. Na Jordânia, se uma mulher tem medo de que sua família queira matá-la, ela até pode ficar sob o ostensório do Estado, mas uma vez nesta condição, raramente consegue readmissão social; e a única pessoa que pode tirá-la de sua prisão particular é um parente do sexo masculino; que frequentemente é a mesma pessoa que representa a ameaça de vida contra ela. Isso é justiça?

Violência contra as mulheres é um tema de debate mundial e é considerada como uma questão de direitos humanos. Em 1994, a Comissão das Nações Unidas sobre Direitos Humanos nomeou um relator especial sobre a violência contra as mulheres, e ambos, UNICEF e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para as Mulheres, têm programas para enfrentar a questão. Infelizmente, a política de direitos das mulheres ainda é complexa e discutida.

Os policiais, promotores e juízes precisam ser convencidos de tratar estes crimes a sério, e os países precisam rever seus códigos penais para a discriminação contra as mulheres; mas alem de rever é preciso praticá-lo de forma correta e conclusiva. Os maus tratos de mulheres se ordenam como algo abjeto e hediondo; já os assassinatos, estes são irrefutáveis e não há como rotulá-los de uma forma menor do que barbarismo e selvageria; algo que não se tolera nem mesmo em tribos primitivas!

Em meu livro “Cem Mulheres Sem Clitóris”; descrevo uma história real, dentro de uma história fantasiosa; quando estive no Marrocos e vi que crianças do sexo feminino têm seus clitóris extirpados com cacos de vidro ou navalhas enferrujadas, somente porque seus pais acreditam que elas jamais podem sentir prazer. O mundo precisa gritar mais; e a ONU deveria punir com rigor os Estados que toleram este e qualquer tipo de violência contra a mulher; mas num planeta onde se gasta bilhões de dólares para invadir um país e nenhum centavo para a preservação da vida, nada podemos esperar; pelo menos a curto e médio prazo!

Eu procuro uma resposta para tanto descaso e para tanta promoção do ódio contra as mulheres; e por mais que eu procure achar uma réplica científica pela ótica da psiquiatria moderna, arrisco em afirmar que elas são maltratadas por causa de sua intrínseca e incontroversa beleza; e que nós homens, somos em maioria, inermes e incultos diante delas! Nós a atormentamos, às vezes as matamos; e depois as procuramos para saciar nossas necessidades sexuais; e em raras ocasiões ainda temos o desplante de dizer: eu te amo!

Carlos Henrique Mascarenhas Pires é jurista penal, membro da Anistia Internacional e membro colaborador da Comissão de Direitos Humanos.

CHaMP Brasil
Enviado por CHaMP Brasil em 07/10/2012
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