- Professora Sílvia M. L. Mota -
Tema de grande saliência na atualidade, pois se trata de um dos itens essenciais da bagagem intelectiva dos cientistas, é o "mito da neutralidade científica", em muitos contextos, tratada sinonimamente pela expressão "a ciência é livre de valores".
A priori, para o âmbito deste trabalho, a expressão "mito da neutralidade científica" diz respeito à noção dominante de que a ciência deve ser neutra (ou pura) e de que cabe ao cientista assumir uma postura nula diante dos seus pré-conceitos e condicionamentos históricos, para fins de alcançar o mais amplo conhecimento possível.
De contornos polêmicos, tentarei em poucas palavras, expor a matéria em epígrafe.
O que é um mito? – A palavra mito vem do grego - mythos - e deriva de dois verbos: do verbo mythyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Sendo assim, para além da poética definição de Joseph Campbell (1990, p. 52): “Os mitos são sonhos públicos; os sonhos são mitos privados”, pode-se afirmar um mito como narrativa de significação simbólica, que encerra uma verdade cuja memória se perdeu no tempo. É irreal. É fábula. É uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada a partir de perspectivas múltiplas e complementares. Poderá ser aplicável ao contexto científico?
E neutralidade? - Significa imparcialidade. Um posicionamento neutro dissocia-se da esfera dos valores, daquilo que tem importância para a pessoa humana considerada em sua individualidade ou em sua vida social.
O que é Ciência? - Nada mais do que um conjunto de atividades racionais dirigidas ao conhecimento da verdade. De acordo com Japiassu (1975, p. 9), trata-se de “[...] um conjunto de conhecimentos ‘puros’ ou ‘aplicados’, produzidos por métodos rigorosos, comprovados e objetivos, fazendo-nos captar a realidade de um modo distinto da maneira como a filosofia, a arte, a política ou a mística a percebem." Pela assertiva do autor, essa definição é uma concepção do senso comum sobre o que seja Ciência. A Ciência é autônoma, quando as decisões que motivam o seu jeito de ser e de se desenvolver são assumidas pela própria comunidade científica alicerçada em seus valores internos – o valor intrínseco e basilar do conhecimento como um fim em si mesmo e os valores apurados na escolha entre teorias. Esse caminho traz à baila o aspecto fundamental da relação entre a autonomia e a neutralidade da Ciência.
Aceitas essas colocações, depreende-se que a neutralidade implícita na tese de que a ciência é ou não é neutra, salienta uma neutralidade em relação a valores, haja vista que em muitos contextos, em lugar de “a ciência é neutra” diz-se “a ciência é livre de valores”. Os valores colocados em relevo são os valores sociais, compreendidos como aqueles que podem variar de cultura para cultura ou de época para época, ao longo da história de cada cultura e pelos valores demarcados de grupo social para grupo social, nas sociedades assinaladas por contrassensos internos. Pergunto, portanto: entender a questão da neutralidade da Ciência como um mito, não seria proibir as abordagens questionadoras, e, dessa forma, abrir fendas à aceitação de aplicações antissociais como o uso não-humano e desumano da Ciência, que poderá levar à degradação da espécie humana? Deverá, a esse respeito, ser reelaborado o conceito de mito? É a Ciência um saber neutro e desinteressado, à margem dos questionamentos sociais e políticos acerca dos fins da sua pesquisa? Pode a atuação do cientista ser considerada neutra? A determinação do objeto a ser pesquisado envolve escolha, e, em decorrência, um juízo de valor? Os resultados das pesquisas científicas e as consequências advindas, dizem respeito à propalada responsabilidade social do cientista?
Eis os busíles.
É necessário, antes de tudo, assumir que o conjunto de invocações de ideias concernentes à neutralidade científica, transformando-a em mito, parece avolumar-se nos presentes dias, principalmente, no que se refere à aplicação da biotecnologia à vida humana.
A resposta há de ser extraída de um duplo enfoque que se tem do mundo: um a ser realizado pelo homem comum e o outro científico. Mas, seriam mesmo distintas essas duas atitudes? É preciso delimitar que o homem comum faz descobertas casuais, espontâneas, baseadas no bom senso, desvinculando-se da obrigatoriedade de comprovação. O cientista, por sua vez, ao detectar um problema, formula hipóteses na tentativa de solucioná-lo, ainda que transitoriamente; no momento seguinte investiga e escava o conhecimento, no afã de comprovar aquelas hipóteses. Nesse percalço, o cientista compara teorias, com vistas ao progresso do bem-estar humano, e, às vezes, no seu labor, atinge terceiros. Quando isso ocorre, impõe-se saber sobre a validade dos fins a que se destinam essas pesquisas e os meios empregados para a sua realização.
Posso afirmar que a Ciência de outrora era neutra e amoral; o seu domínio era o conhecimento objetivo desinteressado e neutro com relação às suas aplicações e livre quanto às finalidades da ação. Porém, torna-se falso e ilusório pensar o mesmo da Ciência atual, que, entrelaçada à sociedade, é vista não apenas como um instrumento nas mãos dos membros dos poderes econômicos e políticos, mas, também, como a cobertura ideológica de todo o sistema do capitalismo global (MARX, 1978, p. 325-326). Em consequência, o trabalho científico realizado pelo pesquisador, não é neutro, porque não se realiza apenas na procura indiscriminada do saber. A pesquisa, como responsabilidade social, assume um papel político. Nesse campo existem as escolhas subjetivas do cientista, que exprimem os seus sentimentos e as opiniões dos grupos aos quais se afilia.
As veredas por onde transita a Ciência são criadas por normas historicamente condicionadas, e, por assim o serem, evoluem e se alteram. Sustentar a neutralidade da Ciência é negar o seu caráter cultural, porque se produz em determinadas condições culturais e é marcada pela existência de valores. Por tal motivo, não pode ser concebida como uma atividade solitária, sem raízes e transcendente à História. Nas palavras de Japiassu (Entrevista...), o exemplo da física nuclear é ilustrativo: "No início, seu conhecimento dito fundamental ou teórico não tinha finalidades práticas. No entanto, o que aprendemos sobre o núcleo do átomo serve para construir centrais nucleares e produzir energia com a qual nos iluminamos e aquecemos. Mas eis que, como sabemos, a energia nuclear serviu também para fabricar armas de morte. Aliás, foi para isso que serviu em primeiro lugar: fabricação de bombas atômicas. Durante a Segunda Guerra mundial, infelizmente, elas foram lançadas no Japão e mataram milhares de pessoas inocentes. Por isso, creio não ser mais possível livrar a ciência de toda responsabilidade como se pudéssemos considerá-la pura e neutra em relação ao processo político, pois ela é portadora de um projeto, podendo ser considerada a realização da metafísica ocidental." O autor relembra o físico Openheimer, quando este afirmou que a partir de Hiroshima "[...] a ciência conheceu seu pecado original." Portanto, em matéria de Ciência: "[...] não há objetividade absoluta. Também o cientista jamais pode dizer-se neutro, a não ser por ingenuidade ou por uma concepção mítica do que seja a ciência." (JAPIASSU, 1975, p. 10-11).
Embora comprometido com a sua escolha, ouso afirmar que o cientista não é responsável, entretanto, pelos usos que fazem outros homens das suas descobertas. Ao trabalhar em prol da sociedade, trará ao mundo real criações que poderão ser de grande utilidade social, mas, que também poderão destruir o mundo. Pelo que se sabe, o cientista avança em direção ao que jamais será alcançado e explora o objeto da sua curiosidade, sem, no entanto, esgotá-lo ou modificar-lhe o caráter de natureza imutável. É por isso que o ritmo natural do amanhecer e do entardecer não se modificará intimidado pela observação e cálculos objetivos daquele que o provoca com as suas preocupações.
A partir do exposto, utilize a sociedade as descobertas científicas para benefício ou malefício da humanidade, o cientista jamais poderá ser responsabilizado pelas consequências danosas, da mesma forma, que, não será culpado aquele que forjou a espada, pela morte que causou com ela um outro indivíduo. Além disso, muitos pesquisadores trabalham para projetos bélicos sem sequer sabê-lo, visto que os seus trabalhos são usados para fins clandestinos. É o que aconteceu, por exemplo, no caso do desfolhante agente Orange utilizado largamente pelas tropas norte-americanas na guerra do Vietnã e que contaminou peixes e crustáceos dos rios vietnamitas, o que representou um perigo muito grave para os seres humanos, em razão das altas dosagens de dioxin, uma das substâncias do herbicida, que causa graves anomalias genéticas (DESFOLHANTE... 1973, p. 2).
Como se percebe, parece urgente um amplo debate sobre os limites éticos a serem colocados à Ciência. Entretanto, não cabe apenas aos cientistas ou aos políticos estabelecerem as normas orientadoras da prática científica, mas, a todos os indivíduos que coexistirão com o produto das novas descobertas. Nesse sentido, conclui Hilton Japiassu (1975, p. 185) ao discorrer sobre o mito da neutralidade científica: "O impacto do trabalho científico sobre a sociedade constitui objeto de estudos cada vez mais críticos. A contestação não é mais um fenômeno esporádico, oriundo de causas locais ou fortuitas, como se poderia pensar, mas o resultado de exigências de maior lucidez e responsabilidade, tentando conjugar ciência, moral e política."
As novas descobertas esquadrinham arriscada vereda, onde licitude e ilicitude colocam-se frente a uma difusa e fronteiriça zona. Não existem paradigmas ao que seja eticamente aceitável ou condenável, mas, resta-nos apelar para a responsabilidade das pessoas envolvidas na tomada das decisões.
Os palcos da Ciência exibem inúmeros benefícios. Ao desvendar segredos até então guardados a sete chaves pela guardiã Natureza, o cientista dota a humanidade de conhecimentos e informações nunca imagináveis, que poderão se colocar a serviço da vida e do bem-estar da Humanidade. Profícuas esperanças são oferecidas pela Ciência, mas, inapropriado relegar ao esquecimento, que as produções científicas são, muitas vezes, como a espada da Justiça: uma arma com duplo fio. Isso significa, que, se o desenvolvimento científico poderá ser usado para o bem de todos os seres humanos, também poderá sê-lo em direção ao mal da vida humana, ocasionando irreversíveis danos quando da sua aplicação.
Referências
DESFOLHANTE mata peixe dos rios vietnamitas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXXII, n. 347, 7 abr. 1973, p. 2. 1° Caderno. Internacional.
JAPIASSÚ, Hilton. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975.
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
JAPIASSU, Hilton. Entrevista. Entrevistador: Nicolau Kietzmann Goldemberg. DGNK Assessoria de Imprensa. Publicada em: 24 mar. 2011. Editora Ideias & Letras, São Paulo. Disponível em: https://editoraideiaseletras.wordpress.com/2011/03/24/entrevista-com-hilton-japiassu-autor-do-livro-ciencias-questoes-impertinentes. Acesso em: 8 jul. 2016.
TRAGTENBERG, Maurício. Sobre educação, política e sindicalismo. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Unesp, 2004. 216 p.
Revisado e ampliado em 20 de agosto de 2018 – 5h29
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