O LUGAR DA MULHER NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE: A PROSTITUTA

     O "cantar no feminino" é o aspecto que mais me impressiona e comove na obra de Chico Buarque, pela riqueza de detalhes e o conhecimento profundo da alma feminina, seja caracterizando o lirismo (retratando uma relação amorosa desfeita ou impossível entre duas pessoas), seja enfocando os tipos marginalizados na sociedade, particularmente, as prostitutas, as lésbicas e as mães de delinquentes. Portanto, neste trabalho, verifico a maneira frequente de o poeta lidar com o comportamento e o sentimento da mulher em sua poesia: a mulher como sujeito do discurso (o eu-feminino). Nesta análise, procuro demonstrar (de forma superficial) os principais recursos estilísticos nos níveis lexical, fonético, fonológico morfológico, sintático e semântico utilizados por ele, o que lhe confere o privilégio de ser um dos poucos compositores dentro da MPB a conseguir tamanha expressividade, por ser capaz de empregar em cada verso de suas canções a palavra exata.
Para não me tornar enfadonha, elegi apenas três canções que tratam de mulheres marginalizadas:"Folhetim" ( a prostituta) "Mar e Lua"(a lésbica) e "O meu guri" ( a mãe de um marginalizado), embora já desenvolva um estudo com canções que põem em cena o lirismo.

A mulher marginalizada

1. A prostituta

FOLHETIM


Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema
Um botequim

E se tiveres renda
Aceito uma prenda
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim
E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia-luz
E te farei vaidoso supor
Que és o maior
E que me possuis

Mas na manhã seguinte
Não conte até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada
do meu folhetim.
     Os versos dessa composição apresentam métrica variando entro quatro e nove sílabas, rimas interpoladas, soantes e toante, ricas e pobres, agudas e graves.
     Há, nas duas primeiras estrofes, uma preferência pelos fonemas constritivos fricativos alveolares /s/ e/z/, sugerindo um sussurro ou um segredo em tom confessional, que caracteriza a proposta feita nos três primeiros versos da primeira estrofe, em que o eu-lírico se apresenta como uma mulher leviana, capaz de se entregar a qualquer homem em troca de coisas fúteis: "uma coisa à toa", "uma noitada boa", "um cinema", "um botequim". O emprego do dêitico dessas" em posição catafórica, determinante o sintagma nominal "dessas mulheres" denota um certo desprezo do sujeito pela classe a que pertence.
     O texto pode ser dividido em três movimentos, cada um construído por uma estrofe. O primeiro movimento estabelece uma proposta marcada por: "Se acaso me quiseres"/"Sou dessas mulheres". O segundo movimento é caracterizado pelas trocas: "Se tiveres renda/"Aceito uma prenda [...]" " E eu te farei as vontades/Direi meias-verdades [...]".
     Nessa estrofe, o poeta dobra o número de versos, certamente, enfatizando o tempo gasto por essa mulher para conquistar aquele homem. O terceiro movimento estabelece o fim do clima romântico e consequentemente, a despedida: T"e afasta de mim / És página virada". Percebemos, pelo discurso leviano do eu-lírico que o início e o fim da conquista têm a mesma característica inesperada. Fato comprovado pelo número de versos na primeira e na última estrofes (inferência minha).Na segunda estrofe, essa mulher plena de romantismo, ao invés de pedir ao amante objetos caros que lhe tragam estabilidade financeira, insinua que, se ele tiver renda, aceita uma prenda, dando-lhe opções simples: "uma pedra falsa", "um sonho de valsa", "um corte de cetim". Pela simplicidade dessas prendas, observamos que ela não está preocupada com o valor material das mesmas, mas com o gesto romântico de um homem apaixonado. Esquecendo, assim, por algumas horas, a sua condição de prostituta, permitindo-se como uma adolescente ingênua, o direito de sonhar, de ser coberta de mimos.      Para dar ênfase ao clima romântico, o eu-lírico promete ser, durante aquela noite (espaço das fantasias), a amante que todos os homens desejam: carinhosa e fiel, despertando-lhe a vaidade masculina, a certeza da virilidade -"que és o maior" - e o sentimento de posse - "e que me possuis". Numa linguagem surpreendente essa mulher também promete ao amante dizer-lhe “meias verdades”, sempre a “meia-luz”. Aqui, a expressão “meia-luz” sugere uma fuga da realidade, criando uma situação quase sincera (nem tudo o que ela falar será mentira) provocada pelas circunstâncias em que vive.
     Finalmente, na terceira estrofe ela desfaz todo o clima romântico que criara durante a noite e reassume a sua condição de prostituta, deixa parecer ao amante que ele é “descartável”, invertendo-se os papéis, visto que, nesse contexto, a mulher é sempre “usada” e “descartada” pelo homem. Portanto, finge-se de forte e ordena-o que se afaste dela, sem pensar no que houve, porque ela já o esqueceu. Afinal, já é outro dia (espaço real) e ela precisa voltar à triste realidade: outros homens ocuparão as páginas descartáveis desse folhetim que é o cotidiano de uma prostituta.
     Quanto ao aspecto semântico, destacamos a metonímia: "um sonho de valsa" – um tipo de bombom – conferindo ao verso um tom emotivo. Marcando a temporalidade, os verbos estão no futuro do subjuntivo, caracterizando a incerteza ou a hipótese de realização daquela conquista: "Se acaso me quiseres [...]" "Se tiveres renda [...]" e no presente do indicativo, revelando o cotidiano dessa mulher: “sou”, “dizem”, “aceito”, “vales” “és”.
     No que concerne ao aspecto morfológico, há uma preferência pelos substantivos concretos, reforçando a intenção do eu-lírico: a materialidade da conquista, através de trocas. Quanto ao nível sintático, predomina a parataxe, marcando o caráter afetivo no discurso do eu-lírico. Entretanto, encontramos também construções hipotáticas, em momentos cuja objetividade é necessária ao sujeito: "[...] te farei vaidoso supor / que és o maior [...]"
     Do ponto de vista da língua, o texto é todo trabalhado em linguagem formal, o tratamento é mantido rigorosamente na segunda pessoa, caracterizando o tom formal da fala dessa mulher.

Bibliografia:
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ªed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
BUARQUE, Chico, GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. 22ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1996.
CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque: análise poético-musical. 3ªed. Rio de Janeiro: Codecri, 1984.
CASTAGNINO, Reúl H. Anãlise Literária. 1ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GARCIA, Othon Moacir. Comunicação em prosa moderna. 13ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 1986.
GUIRAUD, Pierre. A estilística. Tradução de Miguel de Mailler. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978.
LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 11ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
MARTINS, Nilce Sant'anna. Introdução à estilística. 3ª ed.São Paulo: T.A. Queiroz, Editor, 2000.
MELO, Gladstone Chaves de. Ensaio de estilística de língua portuguesa. 1ª ed.Rio de Janeiro: Padrão, 1976.
MONTEIRO, José Lemos. A estilística. 1ª ed. São Paulo: Ática, 1991.
PIRES, Orlando. Manual de teoria e técnica literária. 2ª ed. Rio de janeiro: Presença, 1985.
ZAPPA, Regina. Chico Buarque: Perfis do Rio. 4ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.


 
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 20/11/2011
Reeditado em 27/08/2016
Código do texto: T3346277
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