Ser humano, quem é você?

SER HUMANO, QUEM É VOCÊ?

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

É muito melhor seres o homem que deves ser que o

homem que queres ser (Goethe)

Existe uma série de perguntas que acompanham o ser humano desde suas origens; Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? Estas questões orientaram as formulações dos filósofos, desde o século V a.C. Vocês, como futuros mestres da filósofia, que vão atuar como profissionais do pensamento, professores e pesquisadores, sabem que as questões sobre a origem do ser acompanham o ser humano, do berço ao túmulo. A axiologia, que perquire os valores, ajuda a discernir as origens humanas, a partir das questões mais simples.

Na civilização judaica, que daria lugar ao cristianismo, essas preocupações começam a aparecer de forma mais insistente após o regresso do exílio da Babilônia (séc. VII a.C.) quando o judaísmo começa a levantar questões de ordem antropológicas, a partir da fé na criação do homem, à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26).

Enquanto a etiologia (o ramo do conhecimento cujo objeto é a pesquisa e a determinação das causas e origens de um determinado fenômeno) busca as primeiras causas nos primeiros princípios, perguntando, o que é o ser?, a prática nos revela que muitos segmentos ainda não conseguiram decifrar a essência da pessoa humana.

A dúvida que animou os debates e as pesquisas sobre as origens do homem se situam no sentido de tentar descobrir aquilo que produz a animação da vida humana, o que nos diferencia dos animais e também qual é a diferença entre um ser vivo e um morto. Ser vivo é ser, enquanto estar morto é não ser. O que para nós (ou para muitos de nós) é compreendido como vida espiritual, diferente da vida material, no princípio não foi compreendido, e se tornou fato gerador de muita controvérsia.

Em resposta a essas questões ontológicas (referentes às origens do ser), Tales († 550 a.C.) talvez o primeiro a preocupar-se com a origem do ser, afirmou que “o ser é água”. Em continuação, Empédocles († 430 a.C.), um pré-socrático, vinculou o ser e o universo aos chamados “quatro elementos”, fogo, água, ar (éter) e terra. O ódio e o amor, segundo o filósofo, causam o processo de mudança naqueles elementos.

No campo das formulações ontológicas sobre a origem do ser, vamos encontrar outras duas definições, que ao invés de ajudar, mais atrapalham o raciocínio. Na primeira, Parmênides († 500 a.C.) fala na mobilidade e indivisibilidade do ser. Na segunda, Pitágoras († 510 a.C.) diz que, pelo fato de o número ser o princípio da organização cósmica, o ser deveria ter nos números sua origem. Parmênides, de Eléia, é o fundador da chamada “escola eleática”...

Parmênides fundou a metafísica ocidental com sua distinção entre o Ser e o Não-Ser. Enquanto Heráclito ensinava que tudo está em perpétua mutação (tudo muda!) e Demócrito († 370) afirmou que o ser é composto de átomos, Parmênides desenvolvia um pensamento completamente antagônico: “Toda a mudança é ilusória”. Em sua filosofia ele vai então afirmar toda a unidade e imobilidade do ser. Fixando sua investigação na pergunta: “o que é o ser”, ele tenta vislumbrar aquilo que está por detrás das aparências e das transformações. Assim, ele dizia:

Vamos e dir-te-ei – e tu escutas e levas as minhas palavras. Os únicos caminhos da investigação em que se pode pensar: um, o caminho que é e não pode não ser, é a via da persuasão, pois acompanha a verdade; o outro, que não é e é forçoso que não seja, esse digo-te, é um caminho totalmente impensável. Pois não poderás conhecer o que não é, nem declará-lo.

Numa interpretação mais aprofundada dos fragmentos de Heráclito e Parmênides, podemos achar um mesmo todo para os dois e esta oposição entre suas visões do todo passa a ser cada vez menor. Parmênides comparava as qualidades umas com as outras e as ordenava em duas classes distintas. Por exemplo, comparou a luz e a escuridão, e para ele essa segunda qualidade nada mais era do que a negação da primeira. Uma idéia primária da dialética.

Diferenciava qualidades positivas e negativas e, esforçava-se em encontrar essa oposição fundamental em toda a natureza. Tomava outros opostos: leve-pesado, ativo-passivo, quente-frio, masculino-feminino, fogo-terra, vida-morte, e aplicava a mesma comparação do modelo luz-escuridão; o que corresponde à luz era a qualidade positiva e o que corresponde à escuridão, a qualidade negativa. O pesado era apenas uma negação do leve. O frio era uma negação do quente. O passivo uma negação ao ativo, o feminino uma negação do masculino e, cada um apenas como negação do outro.

Os filósofos de Mileto (Tales,, Anaximandro, Anaxímenes e outros) haviam percebido o dinamismo das mudanças que ocorrem na physis (natureza) como o nascimento, o crescimento e a morte, mas não chegaram a problematizar a questão.

Como filósofo do devir, Heráclito († 474 a.C.) de Éfeso, chamado de skoteinós (o obscuro, sua filosofia era difícil de compreender), define o ser como uma contínua mudança, ligado ao fluxo perene das coisas (pánta rei = tudo corre = tudo muda). A formulação completa é panta rei, oudén menôo (tudo passa; nada permanece)

O combate entre a vida que corre e a morte que se aproxima, simboliza o ritmo dinâmico que caracteriza a realidade. A vida se explica pela morte e vice-versa. Como filósofo da mudança, o efésio afirmou que não nos banhamos no mesmo rio duas vezes; como a água corre (panta rei) dali a pouco, se entramos naquele rio, a água já será outra. O filósofo criou essa imagem para exemplificar a mudança;

Para os clássicos gregos, a existência do ser era comparada a um caminho (hô hodós). Enquanto os racionalistas modernos querem, pela mão de uma fenomenologia científica, provar que no mundo tudo é fruto do acaso, e que não vale a pena viver, outros, pagãos até, tentaram demonstrar, mais pela lógica do que pela fé, teses da existência de Deus e de uma vida depois da morte ligada a ele.

Com o correr dos tempos, as teorias racionalistas têm demonstrado sua inconsistência. Explicar, por exemplo, o fato da ressurreição à luz da ciência é buscar no científico aquilo que ele não pode dar. Ao negar ao ser a possibilidade do sinal sobrenatural – no caso a ressurreição – o racionalismo decreta sua própria falência. Não é difícil observar que, sozinhas, as ciências, embora um grande esforço de seus mestres ou codificadores, não têm conseguido, séculos afora, estabelecer um raciocínio sobre origem e destinação do ser humano.

Embora existam milhares de teorias e suposições, nenhuma delas dá uma panorâmica satisfatória, capaz de afastar temores e consolidar esperanças. O estudo teológico, embora ainda viva uma busca nesse terreno, vale-se, em alguns casos da fé, para a explicação do que parece inexplicável. Heráclito, inserido no contexto pré-socrártico, parte do princípio de que tudo é movimento, e que nada pode permanecer estático - Panta rei ou "tudo flui", "tudo se move", exceto o próprio movimento. Este fragmento se encontra na obra Peri physios (sobre a natureza).

Mas este é apenas um pressuposto do devir, uma doutrina que vai mais além. O devir é a mudança que acontece em todas as coisas é sempre uma alternância entre contrários: coisas quentes esfriam, coisas frias esquentam; coisas úmidas secam, coisas secas umedecem etc. A realidade acontece, então, não em uma das alternativas, posto que ambas são apenas parte de uma mesma realidade, mas sim na mudança ou, como ele chama, na guerra entre os opostos. Com relação ao inverso, seria oportuno conhecermos a coincidentia oppositorum, de Nicolau de Cusa († 1464).

Esta “guerra dos opostos” é a realidade, aquilo que podemos dizer que é "A doença faz da saúde algo agradável e bom"; ou seja, se não houvesse a doença, não haveria por que valorizar-se a saúde, por exemplo. Ele ainda considera que, nessa harmonia, os opostos coincidem da mesma forma que o princípio e o fim, em um círculo; ou a descida e a subida, em um caminho, pois o mesmo caminho é de descida e de subida; o quente é o mesmo que o frio, pois o frio é o quente quando muda (ou, dito de outra forma, o quente é o frio depois de mudar, e o frio, o quente depois de mudar, como se ambos, quente e frio, fossem "versões" diferentes da mesma coisa).

Panta rei hôs potamós, traduzido como "Tudo flui como um rio" é o célebre aforismo no qual a tradição filosófica subsequente identificou sinteticamente o pensamento de Heráclito com o tema do devir em contraposição à filosofia do ser própria de Parmênides.

Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; por causa da impetuosidade e da velocidade da mutação, esta se dispersa e se recolhe, vem e vai (DK 91)

Pitágoras, de Samos (†497), místico, matemático e filósofo afirmou que a essência, que é o princípio fundamental que forma todas as coisas é o número. Os pitagóricos não distinguem forma, lei, e substância, considerando o número o elo entre estes elementos. Para esta escola existiam quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Assim, Pitágoras e seus seguidores investigaram as relações matemáticas e descobriram vários fundamentos da física e da matemática. O símbolo utilizado pela escola era o pentagrama, de origens egípcias que, como descobriu Pitágoras, possui algumas propriedades interessantes.

Os pitagóricos acreditavam na esfericidade da Terra e dos corpos celestes, e na rotação da Terra, com o que explicavam a alternância de dias e noites. A escola pitagórica era conectada com concepções esotéricas, e sua moral enfatizava o conceito de harmonia, práticas ascéticas e defendia a metempsicose, uma espécie de reencarnação a modo do hinduísmo.

Para Platão († 347), considerado por muitos o mais brilhante dos filósofos gregos, a essência do ser era chamada de idéia (noetós). Ele entendia a filosofia em três estágios: a) a dialética; b) a física; c) a ética. O ser, como idéia, vive no topôs noetós (mundo das idéias) Na concepção platônica a alma está presa ao corpo devido aos prazeres, dores e paixões, que – não ocorrendo a libertação – são levadas junto com a alma após a morte.

O papel da filosofia, segundo Platão, é libertar o homem da prisão corporal, dos sentidos que são ilusórios, e ao mesmo tempo acalmar as paixões da alma libertada para não voltar ao corpo, caso contrário ela não terá descanso nem tranqüilidade no Hades (morada definitiva dos mortos). Por isso, o filósofo não pode ceder aos seus prazeres e desejos, mas concentrar-se e voltar-se para si examinando cada coisa na sua essência através da razão.

Idéias, formas ou essências são expressões com o mesmo significado para Platão, são as verdades das coisas. Ora a alma, segundo a teoria do conhecimento de Platão, possui de maneira inata essas idéias que podemos alcançar desde que saiamos do mundo visível e vivamos num mundo de contemplação. Uma das melhores exemplificações da teoria de Platão está em seu “mito da caverna”.

Esse mito, também chamado de “alegoria da caverna, foi escrito por Platão e se encontra em sua obra “A República” (livro VII). Trata-se da exemplificação de como podemos nos libertar da condição de escuridão que nos aprisiona através da luz da verdade. Na caverna existe uma fresta por onde passa um feixe de luz exterior. No interior da caverna permanecem seres humanos, que nasceram e cresceram ali.

Ficam de costas para a entrada, acorrentados, sem poder locomover-se, forçados a olhar somente a parede do fundo da caverna, onde são projetadas sombras de outros homens que, além do muro, mantêm acesa uma fogueira. Pelas paredes da caverna também ecoam os sons que vem de fora, de modo que os prisioneiros, associando-os, com certa razão, às sombras, pensam ser eles as falas das mesmas. Desse modo, os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a realidade.

Resumindo, segundo o platonismo existem basicamente dois mundos distintos e contrapostos, um superior, de dimensão supra-física do ser, invisível, eterno, imutável das idéias subsistentes, ideal, reino do concreto, definido e medido, da realidade fixa e estável, é a realidade das idéias eternas, perfeitas e imperecíveis. O outro mundo é inferior, é o universo físico visível, inferior, indefinido e mutável, perecível. As ciências fazem parte do mundo das essências, já que são verdades imutáveis e universais, pois elas trabalham com figuras perfeitas, algo que não se encontra no mundo das aparências. As ciências pesquisam o mundo visível e o invisível. O físico e o metafísico,

Entre os gregos, Aristóteles († 322 a.C.) é o que foi mais longe na ontologia, afirmando que o ser é composto de duas partes, o ato, o acidente físico e a potência, a essência espiritual.

Na filosofia moderna, o filósofo norte-americano J. Dewey († 1952), representante da escola do pragmatismo, afirma que “o homem é apenas um espectador da vida”. Segundo o filósofo americano, o conhecimento, é derivado da experiência e deve ser usado para resolver os problemas existenciais da vida humana, adaptando o homem às contingências do meio ambiente onde vive, e também da morte.

A ânsia de viver, o duro golpe da morte sobre o vaidoso desejo humano de perenização, o levou a muitas pesquisas, teorias e formulações. Mesmo sem a crença da vida depois da morte, sucumbidos pelo temor do fracasso, os homens têm tentado equacionar os mistérios da vida e da morte.

Para M. Heidegger († 1976) o ser se insere na fenomenologia e, como tal, precisa estar preso à observação. Para o filósofo alemão, e isto se torna claro em sua obra “Sein und Geist” (O ser e otempo): “O homem está especialmente mediado por seu passado: o ser do homem é um ‘ser-para-a-morte’ e sua relação com o mundo concretiza-se a partir dos conceitos de preocupação, angústia, conhecimento e complexo de culpa. O homem deve tentar saltar, fugindo de sua condição cotidiana para atingir seu verdadeiro ‘eu’”.

No âmbito da filosofia moderna, J.P.Sartre († 1980), um existencialista, a vida do ser humano é uma paixão inócua. Em sua obra “L’être et le néant” (O ser e o nada, 1943) o filósofo afirma que essa inutilidade da vida (o ser) se converte em uma náusea que desemboca em um muro (o nada) numa viela escura.

Percorrendo os textos da filosofia, dos antigos até os contemporâneos, observamos que as grandes concepções do pensamento ocidental não conseguiram responder as questões existenciais a respeito das origens do ser humano. Por conta disto, vamos ingressar no terreno religioso, onde, a partir do judaísmo, é possível começar a buscar a origem do homem dentro do projeto criacional. Aqui a teologia atua como uma alavanca para a antropologia.

Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”. E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher. E Deus os abençoou e lhes disse: “Sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra” (Gn 1, 26ss).

No princípio da Bíblia já temos uma “pista” que nos remete à questão da origem do homem. Diferente das variegadas especulações dos filósofos, a Bíblia aponta para Deus como origem e criador do ser humano. Enquanto a variada pirotecnia da filosofia abre um leque de opções, a antropologia judaica centra a origem do homem na imagem e semelhança de Deus.

Hoje em dia, muita gente, contestando os ensinamentos das religiões tradicionais, especialmente os racionalistas, os artistas de televisão e certos livre-pensadores, costumam afirmar que o ser humano é produto do acaso, da evolução ou oriundo, junto com o mundo, de um big bang que fez surgir tudo. Por conta dessas distorções, por uma forma equivocada de ver as origens e por conta de tantos “achismos”, o homem é coisificado, massificado.

Essas “teorias”, que aparecem amiúde por aí, pela impossibilidade de serem observadas, deixam de ter as características de uma verdadeira ciência. A observação está ligada à verdadeira ciência. As verdades científicas para serem efetivamente eficazes têm que estar embasadas na observação. Existem, então, três verdades científicas que desbancam aquelas teorias que contestam os ensinamentos:

1. A lei da biogênese diz que vida provém de vida; na evolução a vida vem de matéria inanimada. Ao contrário, um Deus vivo fez seres vivos;

2. Na lei da causa e do efeito, nenhum efeito é maior (nem melhor) que a causa; dizer que a matéria inanimada é capaz de gerar seres vivos é uma afirmação falsa. Deus (causa) cria o homem (efeito). Está premissa é verdadeira.

3. A lei de Mendel (1856) tipifica o código genético como característica de casa espécie. Assim, homens produzem ser humanos; macacos geram macacos e árvores produzem sementes que darão origem a novas árvores. Como característica de cada espécie é a produção de seres da mesma espécie. A Bíblia afirma que Deus criou homens, animais e plantas, cada um de acordo com a sua espécie (cf. Gn 1,25).

Para identificarmos a criação do ser humano à imagem e semelhança do seu Criador, é salutar ver as características de Deus (amor, vontade, personalidade e sentimento) presentes no homem. Estas propriedades atribuídas a Deus respondem aos críticos que negam a imagem e semelhança, uma vez que, por ser espírito, e a Bíblia afirmar que “ninguém jamais viu a Deus...” (cf. 1Jo 4,12). Ora, a figura da imagem e semelhança está ligada às virtudes morais e metafísicas (amor, vontade, personalidade e sentimento) do que a aspectos visíveis e materiais. Para dirimir outras dúvidas, é importante lembrar que na imagem de Deus está a criação do ser humano, como homem e mulher, macho e fêmea (v. 27).

Em Gn 1,28 lemos que Deus fez o homem para dominar tudo. É a criatura mais importante para o Criador. Nos textos de Mt 6,26; 10, 29ss Jesus afirma que, para Deus o homem vale mais que os lírios do campo e as aves do céu.

A teoria da evolução, que falei aqui, coisifica de tal forma o homem que hoje eleva os animais, as águas, as matas, no mesmo nível do ser humano. Tem por aí centenas de ONGs que os protegem. E quem protege as crianças, os nascituros abortados, os idosos, os deficientes? Qual a diferença entre o óvulo e você? Ou o tempo e a mutação? Os tratamentos às vezes são bem diversos... É mais crime cortar uma árvore do que abortar.

No salmo 139 Deus revela quem somos:

Javé, tu me sondas e me conheces. Tu conheces o meu sentar e o meu levantar, de longe penetras o meu pensamento. Examinas o meu andar e o meu deitar, meus caminhos todos são familiares a ti. A palavra ainda não me chegou à língua, e tu, Javé, a conheces inteira. Tu me envolves por detrás e pela frente, e sobre mim colocas a tua mão. É um saber maravilhoso que me ultrapassa, é alto demais: não posso atingi-lo! Para onde irei, longe do teu sopro? Para onde fugirei, longe da tua presença? Se subo ao céu, tu aí estás. Se me deito no abismo, aí te encontro. Se levanto vôo para as margens da aurora, se emigro para os confins do mar, aí me alcançará tua esquerda, e tua direita me sustentará. Se eu digo: “Ao menos as trevas me cubram, e a luz se transforme em noite ao meu redor”, mesmo as trevas não são trevas para ti, e a noite é clara como o dia. Sim! Pois tu formaste meus rins, tu me teceste no seio materno. Eu te agradeço por tão grande prodígio, e me maravilho com as tuas maravilhas! Conhecias até o fundo de minha alma, e meus ossos não te eram escondidos. Quando eu era formado, em segredo, tecido na terra mais profunda, teus olhos viam as minhas ações, e eram todas escritas no teu livro. Os meus dias já estavam calculados, antes mesmo que chegasse o primeiro (1-16).

Biblicamente há algumas características atribuídas ao homem que são fundamentais quando se quer estabelecer uma análise antropológica do ser.

1. O homem é pó:

Javé nos conhece e se lembra do pó que somos nós. Os dias do homem são como a relva; ele floresce como a flor do campo, roça-lhe um vento e ele não mais existe (Sl 103, 14ss).

2. É vaidade:

Sim, todo homem não passa de um vazio; todo homem é apenas aparência (Sl 39, 6).

3. É fraqueza:

O homem é fraco por natureza de constituição física e espiritual;

Mostra-me Javé qual a medida dos meus dias, para eu saber quanto sou frágil (Sl 39,5).

4. É soberba;

Javé detesta seis coisas, e a sétima ele abomina: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, corações que maquinam planos perversos, pés que correm para a maldade, testemunha falsa que profere mentiras, e aquele que semeia discórdia entre irmãos (Pv 6,16-19).

Ao contrário, para fugir da ira do Senhor, o apóstolo Paulo adverte:

Quem se orgulhe que se orgulhe no Senhor, pois é aprovado aquele que não faz recomendação de si próprio, mas aquele que Deus recomenda (2Cor 10,17s).

O ser humano nasce com três vazios existenciais:

1. o vazio do pai;

alguém pode suprir...

2. o vazio da mãe;

idem...

3. o vazio de Deus;

só o Absoluto pode suprir.

Por que a pessoa bebe, se droga, é violenta, vive deprimido, usa o sexo de forma irracional? Porque sofre de um grande vazio existencial. À sua vida falta um sentido maior.

Embora tenha em Deus o grande go’el (defensor), o ser humano tem um adversário. Mais que adversário, um inimigo perigoso: o diabo. Por ciúmes da humanidade, o diabo exerce uma obra maligna: ele vem para odiar, matar e destruir. O homem é criação como ele, mas a obra da redenção não contemplou os espíritos malignos. A obra salvífica de Jesus só abrange a humanidade. Ai reside o ciúme e o ódio do diabo. A Igreja, através dos textos da Escritura alerta os homens contra as ciladas do maligno:

Sejam sóbrios e fiquem de prontidão! Pois o diabo, que é o inimigo de vocês, os rodeia como um leão que ruge, procurando a quem devorar (1Pd 5,8).

Não dêem oportunidade ao diabo (Ef 4,27).

Escrevendo aos parthos, São João não titubeia em alertar sobre o perigo que as insídias do demônio representam para a vida humana, ao mesmo tempo aponta Jesus Cristo como aquele que veio para destruir a maldade.

Quem comete o pecado pertence ao Diabo, porque o Diabo é pecador desde o princípio. Foi para isto que o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo (1Jo 3,8).

É prudente que o homem lembre sempre do seu Deus e busque nele o sentido para sua vida.

Por que te deprimes, ó minha alma, gemendo dentro de mim? Espera em Deus, eu ainda o louvarei: “Salvação da minha face e meu Deus!” (Sl 42,6).

Essa consciência na providência do Deus dá um ponderável alento à vida do ser humano que, pela fé, confia naquele que o criou. O homem não é um acaso, mas alguém criado por Deus para ser feliz a partir desta vida.

Nós sabemos que todo aquele que nasceu de Deus não peca; Jesus, que foi gerado por Deus, o guarda, e por isso o Maligno não o pode atingir (1Jo 5,18).

Independente do que afirmem os filósofos, os antropólogos e alguns segmentos da teologia, o ser humano é criatura de Deus. Não existe lógica que refute essa afirmação. O resgate da nossa condição humana nos vem através de Jesus Cristo, por conta do grande amor que Deus tem por nós. Só um Deus que cria e ama é capaz de realizar a salvação.

Pois Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna (Jo 3,16).

Deus demonstra seu amor para conosco porque Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores (Rm 5,8).

Quem quiser saber o que é o ser humano, deve olhar para o coração dele.

O coração é mais enganador que qualquer outra coisa, e dificilmente se cura: quem de nós pode entendê-lo? (Jr 17,9).

Deus nos criou, estabeleceu um projeto para orientar nossa vida, e para orientar nossa caminhada nos deu Jesus Cristo para que ressuscitemos com ele. Para isto, Jesus morreu na cruz para que, unidos em sua morte cheguemos à casa do Pai. O sacrifício do Filho “comprou” o nosso resgate. Ele morreu para que tenhamos vida (cf. Jo 10,10). Quem rejeitar a vida abundante que o Pai nos oferece, está desconsiderando o sacrifício de Jesus. Vamos ter que dar contas do sangue de Jesus derramado na cruz:

Portanto, cada um de nós prestará contas de si mesmo a Deus (Rm 14,12).

Não existe criatura que possa esconder-se de Deus; tudo fica nu e descoberto aos olhos dele; e a ele devemos prestar contas (Hb 4,13).

O ponto alto do capítulo 6 do IV Evangelho é a “multiplicação dos pães e dos peixes! para alimentar cinco mil pessoas. É Jesus zelando pela dignidade do ser humano. A fome atenta contra essa dignidade. Mais adiante, na mesma narrativa, quando o Mestre fala na comunhão com aqueles que “comem da sua carne e bebem do seu sangue” os discípulos se escandalizam, e alguns resolvem ir embora. É quando Jesus pergunta aos mais chegados, se eles também não querem ir embora. A resposta de Pedro, em nome do grupo tipifica a fé da Igreja de todos os tempos:

A quem iremos, Senhor? Só tu tens palavras de vida eterna. Agora nós acreditamos e sabemos que tu és o Santo de Deus (Jo 6,68s).

Pedro intuiu – pela fé – naquele momento que Deus é o Criador, o Espírito é o doador de todos os dons e Jesus aquele que dá sentido à vida humana, preenchendo o vazio existencial. A fé não atua sobre a inteligência, mas sobre o coração. Eliminado o vazio o homem se torna melhor. Todo o ser humano pode “vira-a-ser”: melhor ou pior. A opção é de cada um. É salutar “consertar” nossa vida a partir da Palavra de Deus. Por fim, as respostas às perguntas cruciais que abriram este trabalho:

Quem sou eu?

Sou um ser humano, criatura de Deus, criado por ele para o amor e a

comunhão;

De onde vim?

Vim do coração de Deus! Tenho uma vida espiritual. Nasci para

cumprir o seu plano de amor;

Para onde vou?

Vou voltar para onde vim! Depois de viver neste mundo, com fé, amor, justiça e solidariedade, vou voltar triunfante ao coração de Deus!

Javé, tu me sondas e me conheces (Sl 139,1).

Excerto da “aula inaugural” do mestrado em filosofia, realizada pelo autor em uma universidade no norte do Paraná, em 2008.