Tchekhóv e a leitura do cotidiano

Edimara Lisboa Aguiar*

Em uma pensão modesta, pessoas comuns têm a paz acomodada na miséria transformada em cotidiano. A fragilidade, a altivez intelectual, a coisificação do homem, são alguns dos valores que ficam suspensos em Aniuta¹. Nesse conto, Tchekhóv coloca questões de uma Rússia cujo sistema de governo czarista decai, transparecendo inquietações não apenas sociais, mas que atingiu a cada indivíduo, particularmente. Fala “sobre vidas frustradas, todas elas contaminadas pelo clima de aceitação da decadência que Tchekhóv via em toda a Rússia” (Heliodora, 2000: 11). E, por trás disso, transparece as características de um escritor singular.

Reflexo dessas características do próprio estilo tchekhoviano, Aniuta é um conto que inicia sem introdução, dado de forma não preparada, lançando o leitor automaticamente para uma cena que parece sem importância para a evolução de uma trama, cena de um cotidiano aparentemente natural que dá a ver personagens envoltas em tarefas que nos parece em nada peculiares à idéia de vida que lhes é moldada. Klotchkov é apresentado como um estudante comum, dedicado de tal forma a seus estudos, que tudo a sua volta parece tão absurdamente natural que não vale à pena ser notado.

Quando a descrição de si chega a tal minúcia de “um suor na testa”, o foco narrativo abre-se para o espaço à sua volta, traça algumas características do local e prende-se em sua companheira de quarto, Aniuta, numa descrição de tal forma difundida naquela que é feita da aparência imunda do quarto, que ela parece fazer parte dele, sendo-lhe um objeto decorativo. Aniuta faz saltar aos olhos a relação muito próxima entre personagem e espaço, parece confundida com o meio em que está e mesmo nesse primeiro momento, fica difícil perceber os limites entre eles, o quarto torna-se um cenário que revela a personagem. São as duas primeiras coisas que temos contato ao ler o conto: Aniuta, que o intitula, e o quarto, que está entre as primeiras palavras do texto. Proximidade essa que não se perde ao longo do conto.

Ao tratar dessas questões que envolvem personagem e espaço na narrativa, Osman Lins diz que “há entre personagem e espaço, um limite vacilante a exigir nosso discernimento” (Lins, 1976: 70). E, com isso, demonstra que esse tipo de espaço somente ganha dimensão no desenrolar do conto se estiver ancorado na personagem, servindo como uma forma de fazê-la conhecer aos olhos do leitor.

Tchekhóv faz questão de nos fazer acompanhar os estudos de Klotchkov, mostrando o quê, da medicina, estava percutindo naquele momento, o que “sublinha a contribuição fundamental da medicina para a concretização de sua obra, contribuição esta que reconheceria sempre, como demonstra uma carta de fins da década de 1890:

"Não tenho dúvidas de que meus estudos de medicina tiveram uma grande influência em minha atividade literária (...) Eles tiveram inclusive uma influência orientadora (...) sempre tentei, quando possível, levar em consideração os dados científicos; quando não era possível, preferia não escrever absolutamente nada"².

Se os dados científicos o orientam, sobretudo quando ele registra o comportamento ou perscruta a mente das personagens, é a percepção do artista que se manifesta na organização da narrativa e na escolha sutil ciência/arte, visto que a convivência entre ambas só pode ser benéfica e profícua” (Angelides, 1995: 32).

A urgência do trabalho de Aniuta mescla-se a compenetração do estudante e a impressão que fica é a de que não pode haver interação entre eles, ambos estão ocupados em afazeres diferentes. Porém, quando Klotchkon percebe que Aniuta dá-lhe um bom objeto de estudos e a convoca para assumir esse papel, o trabalho urgente dela parece imediatamente adiável e, nesse ponto, o tema da submissão surge de forma desconcertante, pois nem mesmo o desconforto físico de Aniuta é percebido pelo rapaz. Tchekhóv também trabalha com essa desconsideração que se faz do outro, a incapacidade de fusão entre os seres, a questão da relevância, em seu conto “Brincadeira” em que o personagem-narrador conclui no término da história:

"Mas os nossos passeios no morro e a voz do vento trazendo-lhe as palavras "eu te amo, Nádenka", não foram esquecidos. Para ela, isto é hoje a mais feliz, a mais comovedora e a mais bela recordação da sua vida... Mas eu, hoje, que estou mais velho, já não compreendo mais, para que dizia aquelas palavras, porque brincava..."³

O fato mais importante da vida de um não passou de uma brincadeira juvenil na visão do outro. Entretanto, nesse momento em que ela não passa de uma ferramenta para Klotchkon, dentro de si, Aniuta se envolve em pensamentos, transpostos para o leitor e, por esse motivo, começa a configurar-se como um ser, pois apesar de falar pouco, pensa, faz críticas em seu interior e mostra-se consciente de seu passado. Essa digressão que é feita através da personagem configura o contexto em que essa cena cotidiana é instaurada, como esse relacionamento com um estudante vem de outros do passado e a forma resignada com que Aniuta tem consciência da iminência do término dessa relação. E, mais uma vez, ela é equiparada ao quarto barato de pensão: como uma casa que é alugada por tempo pré-determinado, sobre a qual não há interesse algum de compra, sendo apenas parte de uma situação provisória de preparação.

Tornada objeto, característica que emana da sua condição de falar pouco. Tchekhóv trabalhou com essas “personagens fracas e embotadas, cuja inação e incapacidade de agir diante de uma rotina monótona e paralisante” traçando um paralelo com “a aspectos da vida coletiva (...): sua inércia social, seu tédio existencial e uma revolta angustiante que sufocava os últimos anos da Rússia czarista” (Arlete e Araújo, 1998: 8) a qual criticava. Quando Klotchkov empresta Aniuta como um utensílio ao pintor, recebe deste uma crítica sobre o lugar em que vive, sobre a qual passa a refletir estando sozinho no apartamento. Apesar de ver fisicamente a sujeira criticada pelo colega, ela está para Klotchkov tão fundida a jovem, que sentimos que para ele livrar-se de Aniuta é livrar-se do quartinho mais barato. Agora é o estudante quem faz uma digressão, mas o que vê é um futuro brilhante, obscurecido por um presente medíocre, e nesse momento faz-se uma associação muito curiosa entre a bacia de água suja e Aniuta:

"e agora, esta bacia de água servida com tocos de cigarro boiando, parecia-lhe incrivelmente nojenta. Aniuta também lhe parecia feia, desleixada, lamentável... E ele decidiu separar-se dela, imediatamente, sem falta".

A personagem e o espaço se equiparam definitivamente nesse trecho do conto, Aniuta é completamente ambientizada, mas na própria visão de Klotchkov, que toma a decisão imediata de deixá-la, como se limpa a casa.

Fica difícil reconhecer onde acaba a personagem e começa o espaço. Já que, como lembra Osman Lins, a separação apresenta dificuldades quando nos ocorre que mesmo a personagem é espaço (Lins, 1976: 69). E o conto faz saltar aos olhos essa relação muito próxima entre personagem e espaço, Aniuta é confundida com o meio em que está, ficando difícil perceber os limites entre eles. Apesar de denotado, o espaço faz ver a personagem. Parece interno a ela. O homem coisificado, despreocupado com o futuro, com si próprio.

Ao voltar para o quarto, Aniuta encontra-se de tal forma cansada do transmutar-se em manequim para o pintor que, a princípio, parece indiferente à decisão do estudante. As ações que toma, de servir açúcar, de chorar disfarçadamente, transparece a sua fragilidade aos olhos do leitor e acaba por fazer reconhecida a sua humanidade por Klotchkov e ao menos, superficialmente, ele parece penetrar no universo dela, sensibilizar-se, adiar. Por tomar essa decisão, Klotchkov mostra-se como “homem supérfluo, sem espaço para a ação, que sucumbe na rede de seus próprios sonhos e cuja abulia nada mais é do que mero desdobramento de uma sociedade absurda e indolente” (Araújo e Carvaliere, 1998: 10). Nesse que seria um momento de diálogo no final do conto, Aniuta não se posiciona e, em alguns momentos, parece que nem mesmo participa como ouvinte da interação, essa inexistência de diálogo lembra o que Antônio Candido destaca sobre um tipo de relação entre personagens: “a dificuldade de descobrir a coerência e a unidade dos seres vem refletida, de maneira por vezes trágica, sob a forma de incomunicabilidade nas relações” (Candido, 1963: 46). Esse não-diálogo, portanto, confirma a incompreensão do outro, presente em todo o conto.

E tão bruscamente, a cena volta àquela inicial, que não percebemos evolução alguma. Tchekhov trabalha em seus contos esse recorte da vida que para ele parece sem conclusão. Perguntas são colocadas, mas com tão pouca interferência do narrador, que ficam sem resolução aparente. Aniuta volta a parecer-nos um objeto e nenhum dos dois parece evoluir, sequer mudar levemente, assim como o enredo não evolui, tende para uma inquietação que paira no ar, que toca o leitor sem definir em que sentido o faz e a não resolução traz um incômodo maior e mais mobilizante que lições bem definidas. Diferentemente da “realidade humana apresentada de forma coesa e completa, e, por isso, mais satisfatória”, que Antônio Candido destaca como característica da obra ficcional, Aniuta convence como um recorte da realidade, porque apesar de coesa, está incompleta, é uma história recordada em um momento sem maior reflexão, a partir de um fato corriqueiro, recorre-se a um desenlace insólito, como Tchekhóv entende a vida humana, o sentido está nas perguntas que coloca e não nas resoluções de tais questões.

Os contos de Tchekhóv têm “finais abertos”, que “refletem a impossibilidade de o herói encontrar uma solução adequada para a sua vida, ou a complexidade dos novos caminhos que se delineiam” (Angelides, 1995: 205).

Como disse Rubens Figueiredo quanto à obra tchekhoviana: “o que ocorre é que, em um ambiente saturado pelo debate ideológico, Tchekhóv fez da indiferença um método crítico, uma estratégia literária para nos pôr em contato com as coisas tais como são: ‘Para um homem de bem, a indiferença pode ser uma religião’, escreveu numa carta. Seus contos não nos deixam esquecer o que há de instável e contingente nas idéias, no conhecimento e nos sentimentos, e com que facilidade procuramos em tudo isso algo que nos engane. Através dessa brecha, as coisas elementares da vida sobressaem e adquirem um peso que desmente sua suposta banalidade” (Figueiredo, 2002: 9).

Ao concluir a narrativa com um desfecho imprevisível e quase sem lógica interna, não estaria aqui Tchekhóv transgredindo a causalidade gradativa do argumento? “Ou, então, não estaria ele acentuando, através da sátira, que os fatos corriqueiros são capazes de atuar no indivíduo de maneira extremamente intensa?” (Angelides, 1995: 191). E essa intensidade se dilui na cena mais casual possível, na sensação da não-mudança que impregna uma forma natural de enxergar as relações entre o homem e com mundo a sua volta.

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¹ TCHEKHOV, A.P. “Aniuta”. In: Contos. Introdução, seleção e tradução do russo de Tatiana Belinky. São Paulo: Cultrix, 1985. p. 85-9.

² Carta de 11 de outubro de 1899, para C.I. Rossolimo, professor de neuropatologia da Universidade de Moscou.

³ TCHEKHOV, A.P. “Brincadeira”. In: Contos. Introdução, seleção e tradução do russo de Tatiana Belinky. São Paulo: Cultrix, 1985.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANGELIDES, Sophia A.P. Tchekhov: Cartas para uma poética. São Paulo: Edusp,1995.

ARAÚJO, Eduardo Tolentino e CAVALIERE, Arlete. “Introdução”. In: TCHEKHOV, A. P. Ivánov. Tradução de Eduardo Tolentino Araújo. Em Cena; 1. São Paulo: Edusp, 1998. p. 7-13.

CANDIDO, Antônio. “A personagem do romance”. In: A personagem de ficção. São Paulo: USP, Boletim nº 284, Teoria Literária e Literatura Comparada, nº 2; 1963. p. 43-66.

FIGUEIREDO, Rubens. “A ficção da indiferença”. In: TCHEKHOV, A. P. O assassino e outras histórias. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 7-11.

HELIODORA, Barbara. “Introdução”. In: TCHEKHOV, A. P. A Gaivota. Tradução de Barbara Heliodora. Em Cena; 4. São Paulo: Edusp, 2000. p. 9-12.

LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.

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*Edimara Lisboa Aguiar é graduanda em Letras pela Universidade de São Paulo.

Edimara Aguiar
Enviado por Edimara Aguiar em 02/02/2010
Reeditado em 04/02/2010
Código do texto: T2064261
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