VLS - O lançador de satélites brasileiro
1- Prelúdios:
Os primeiros trabalhos relativos ao projeto e construção de foguetes modernos no Brasil começaram logo após a segunda guerra mundial, sob os auspícios do exército brasileiro em instituições como o IME (Instituto Militar de Engenharia) e o IPD (Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento). Os primeiros foguetes, ainda impulsionados por pólvora, surgiram em 1950, e em 1957 já se lançavam foguetes de dois estágios utilizando combustível de base dupla e com alcances de até 30 Km. Estes programas de desenvolvimento continuaram ao longo das duas décadas seguintes, tendo sido estudados até 1960 foguetes de sondagem com capacidade de atingir 100 Km de altitude, e desenvolvidos grandes foguetes de artilharia já usando combustível composto à partir de 1972. Estes esforços, que tinham como objetivo básico a produção de armamentos, culminaram com o repasse da tecnologia de foguetes para a empresa privada Avibrás, que a utilizou para colocar em produção o sistema de artilharia Astros-II em 1981.
Paralelamente a tudo isso o governo brasileiro, impressionado com os sucessos dos primeiros lançamentos de satélites russos e americanos, decidiu iniciar em nosso país uma série de atividades relacionadas à pesquisa espacial, criando basicamente dois grupos de trabalho. O primeiro, a Comissão Nacional de Atividades Espaciais (CNAE), criada em 1961 e desde o início fortemente ligada à Força Aérea embora estivesse oficialmente subordinada Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), ficaria responsável pela execução das atividades espaciais propriamente ditas, como o monitoramento de satélites, o lançamentos de foguetes de sondagem, os estudos de comunicações e sensoriamento remoto. O outro grupo, chamado Grupo de Trabalho de Estudos de Projetos Espaciais (GTEPE) ligado diretamente ao Centro Tecnológico da Aeronáutica, assumiria a responsabilidade de construir um centro de lançamentos e desenvolver os foguetes propriamente ditos.
As atividade do GTEPE se iniciaram com a construção do Centro de Lançamentos de Foguetes da Barreira do Inferno (CLFBI), próximo à cidade de Natal – RN. O primeiro foguete, de construção americana, foi lançado no final de 1965. Durante os anos seguintes uma grande quantidade de lançamentos foi efetuada em vários programas de pesquisa, em parte patrocinados por órgãos estrangeiros como a NASA, entre outros. Enquanto isso, uma equipe do GTEPE no CTA iniciou os estudos para o desenvolvimento dos primeiros foguetes brasileiros especificamente desenvolvidos para a pesquisa espacial. O primeiro deles teve seu desenvolvimento iniciado também em 1965, em parceria com a Avibrás, e seu desenho foi baseado no foguete americano ARCAS. Chamado Sonda-I este foguete tinha dois estágios e a capacidade de levar uma pequena carga útil até 65 Km de altitude. Mais de 200 lançamentos foram efetuados, embora ele nunca tivesse atingido o status de 100% operacional.
O passo seguinte foi o desenvolvimento de um foguete maior, baseado no modelo canadense Black Brand III utilizado em alguns lançamentos feitos à partir do CLBI em programas de parceria com a NASA. Com porte muito similar ao do X-40 do exército, o Sonda-II pode levar uma carga típica de 40 Kg até uma altitude de 100 km. Seu primeiro lançamento ocorreu em 1969, e ele está disponível para lançamento até os dias de hoje.
2 – Voando mais alto:
No início da década de 70 o governo e a FAB decidiram que o momento era adequado para que fosse dominada no país a capacidade de projeto e construção de foguetes de maior porte, que eventualmente poderiam ser empregados como mísseis militares de uso estratégico, em contraposição às aplicações táticas que o exército já fazia de seus foguetes. Isto exigiria o domínio de tecnologias muito além do que já havia sido desenvolvido no Brasil até aquela data, e para economizar tempo e custos de desenvolvimento foi decidido procurar no exterior especialistas que tivessem conhecimentos mais avançados nesta área e que se dispusessem a vir trabalhar no Brasil. Um dos especialistas contratados foi Jaime Boscov, um brasileiro que já atuava em programas de foguetes e mísseis na França. Ele foi contratado com a tarefa de criar em nosso país uma base tecnológica que permitisse o desenvolvimento de foguetes bem maiores que os que até então haviam podido ser construídos, e recebeu toda a liberdade para desenvolver o programa da forma que achasse mais conveniente.
Sob a orientação de Boscov foram definidas as diretrizes futuras do programa espacial brasileiro, e por indicação dos militares algumas decisões básicas foram tomadas desde o início, como a utilização apenas de combustíveis sólidos, mais adequados à utilização em mísseis militares. Esta foi na época uma decisão acertada, pois motores-foguete de combustível sólido são muito mais práticos para uso militar devido à capacidade que possuem de ser estocados prontos para lançamento por longos períodos de tempo e lançados praticamente sem preparação prévia. Além disso, até um determinado tamanho (algumas toneladas) os foguetes de combustível sólido são de projeto e construção mais simples que os de combustível líquido. Se o objetivo era construir os mísseis mais eficientes com o menor custo possível e nos menores prazos, o uso de combustível sólido era a escolha mais adequada.
Também no inicio da década de setenta os institutos envolvidos com as atividades espaciais no Brasil foram re-estruturados e receberam as denominações pelas quais são conhecidos hoje: A CNAE tornou-se o Instituto Nacional de Atividades Espaciais (INPE) e o GTEPE tornou-se o Instituto de Atividades Espaciais (IAE). A forma de trabalho dos engenheiros ligados ao projeto assumiu o formato acadêmico típico de centros de pesquisa científica, com cursos de pós-graduação e a publicação e apresentação de trabalhos em congressos da área. Sob a nova estrutura do IAE, agora chefiada por Jaime Boscov, o modelo seguinte de foguete da família Sonda foi desenvolvido. Segundo várias fontes Boscov já trouxe em sua mala, quando de sua vinda para o Brasil, o projeto deste foguete, o Sonda-III. Com dois estágios e a capacidade de transportar cargas entre 50 e 150 Kg até 600 Km de altitude, ele permitiu o aprendizado de diversas tecnologias, como a telemetria dos dados de vôo, a estabilização da carga útil e a instalação de um sistema de auto-destruição. Seu primeiro vôo foi em 1976, e mais de 30 lançamentos foram realizados.
O passo seguinte, iniciado em 1974 e já visando o desenvolvimento de mísseis estratégicos e de lançadores de satélites, foi o foguete Sonda-IV. Este foguete seria bem maior e mais complexo que o Sonda-III, e incluiria a capacidade de controle de atitude (posição e direção de vôo), imprescindível para as aplicações imaginadas. No entanto, é importante ficar claro que ele ainda era visto apenas como um desenvolvimento tecnológico, e não como um “produto” a ser empregado para cumprir qualquer missão específica, fosse civil ou militar. Assim sendo, durante sua concepção não houve nenhuma preocupação com relação a cargas ou alcances máximos que deveriam ser atingidos, e suas dimensões e capacidades foram escolhidas livremente, levando ao seu diâmetro exato de 1 metro. Seu desenvolvimento foi efetuado ao longo dos dez anos seguintes, e o primeiro lançamento foi efetuado com sucesso em 1984.
Pela época em que começavam os trabalhos no Sonda-IV surgiu uma interessante possibilidade de parceria internacional entre o Brasil e a França para trabalhos na área espacial. Os franceses estavam desenvolvendo seu lançador Ariane e construindo a base de lançamentos de Kourou, na Guiana francesa, e tinham interesse em que as instalações do CLFBI fossem utilizadas para o rastreio de seus lançamentos. Em troca, eles ofereceram ao Brasil o desenvolvimento conjunto de um veículo lançador de satélites de porte menor empregando o mesmo motor Viking do próprio Ariane (que usava 4 destes motores), e cujo projeto recebeu o nome de BR-1.
Este projeto, no entanto, não agradou ao pessoal das forças armadas brasileiras, por preconizar o emprego de propulsão líquida, menos adequada ao uso em mísseis militares. No lugar dele foi definido o desenvolvimento de um foguete baseado no motor do Sonda-IV, que além de poder ser utilizado em mísseis de médio alcance poderia também ser empregado em um lançador de satélites de pequeno porte. Assim, durante algum tempo dois projetos de foguetes concorrentes foram apreciados pelos responsáveis pela área espacial no Brasil, um apoiado pelo IAE e que seria desenvolvido em parceria com a França utilizando combustíveis líquidos e um motor importado, e outro apoiado pelo INPE, totalmente nacional e empregando apenas combustíveis sólidos. Observando-se hoje em retrospecto pode-se dizer que a melhor solução teria sido avançar com ambos os projetos, o que daria ao país o total conhecimento sobre todas as tecnologias de propulsão empregadas em foguetes. Foi o que fez a Índia na mesma época, também em parceria com a França para a área da propulsão líquida. No entanto, em meados da década de 70 o Brasil já sentia os efeitos da crise econômica que afetaria nossa economia pelas décadas seguintes, e todos os envolvidos estavam perfeitamente cientes de que não haveria verba disponível para tocar ambos os programas ao mesmo tempo e que apenas um deles teria que ser escolhido.
Em uma tentativa de agradar aos militares brasileiros e após muitas negociações junto aos franceses foi desenvolvida uma nova versão do projeto conjunto, chamada BR-2, na qual os estágios superiores utilizariam combustíveis sólidos. A França, contudo, insistiu em que o primeiro estágio continuasse sendo baseado em combustíveis líquidos, tanto para manter a aparência “civil” do programa quanto pelo fato de que, por não dispor de capacidade para produzir os motores de combustível líquido, o Brasil continuaria adquirindo-os na França ainda por um bom tempo. Embora este novo projeto contemplasse os interesses de ambos os lados e fosse mais poderoso, podendo lançar satélites com mais de 250 Kg de peso contra os planejados 150 da versão totalmente nacional, ele custaria também bem mais caro para ser desenvolvido e nos colocaria na dependência de um parceiro internacional. Por estes motivos (e também por pressão dos EUA sobre a França) o projeto BR-2 foi abandonado, e no início da década de oitenta tomou-se a decisão de levar em frente o projeto totalmente nacional que viria a ser o VLS.
3 – O Foguete VLS:
Desde o início o conceito do primeiro lançador de satélite brasileiro se baseou na utilização do mesmo motor já desenvolvido para o Sonda-IV. Considerando-se outros foguetes já lançados em outros países, esta era uma decisão bastante coerente. O primeiro satélite japonês, por exemplo, foi lançado com um foguete Lambda 4-S cujo primeiro estágio tinha cerca de 70 cm de diâmetro e não era sequer guiado. O primeiro lançador indiano, que estava sendo desenvolvido na mesma época, também usava um motor com exatamente o mesmo diâmetro do VLS, com um comprimento apenas ligeiramente maior. E o mesmo ocorria com o lançador americano Scout, que voara pela primeira vez em 1960. Assim, o motor do VLS parecia perfeitamente adequado para servir como base para os motores principais a serem empregados no primeiro lançador de satélites nacional.
Isto em princípio poderia ter levado ao desenvolvimento de um lançador de 3 ou 4 estágios, com peso de lançamento entre 16 e 22 toneladas e capacidade para colocar satélites na faixa dos 100-150 kg em órbita. Era esta a concepção imaginada para o VLS durante a década de 70. Contudo, talvez por imposição das comparações entre o VLS e o projeto BR-2, ou devido a um certo ufanismo ainda presente no Brasil à época, decidiu-se que o primeiro lançador nacional deveria ter uma capacidade de carga bem maior, na faixa dos 300 Kg, o que exigiria um desenvolvimento muito mais complexo e arriscado. Ao invés de apenas um motor do Sonda-IV no primeiro estágio o foguete precisaria utilizar vários, e após algum tempo de estudos optou-se por adotar um “cluster” de 4 motores iguais, fixados ao redor de um quinto motor do mesmo tipo que comporia o segundo estágio. Dois outros motores menores, ainda a serem desenvolvidos, completariam o lançador. Assim nascia a configuração que conhecemos hoje do VLS.
Embora existam opiniões de que esta configuração foi adotada por ter sido copiada de um projeto proposto (embora nunca tornado operacional) para a família de foguetes Black Brand da empresa Bristol Aerospace, cujos foguetes haviam sido muito empregados nos lançamentos a partir do CLFBI e com a qual os técnicos do GTEPE teriam tido contato através de folhetos e manuais, não há muitas razões para se acreditar que exista alguma ligação entre os dois projetos. A configuração em “cluster” de motores iguais já era conhecida desde o início da era espacial, pois o foguete Lançador-A que colocou em órbita o primeiro Sputnik já a empregava. Ela é uma solução comumente adotada quando se deseja obter a máxima capacidade de carga de um sistema de foguetes utilizando apenas motores (ou conjuntos de motores) de um tamanho pré-definido, e ainda hoje é empregada em lançadores como o Delta–IV americano e o Angara russo, este último ainda em desenvolvimento. Contudo, com exceção do próprio Lançador-A, a configuração em “cluster” é sempre considerada como a última a ser desenvolvida, por ser mais complexa, pesada e cara do que a solução de um motor único. Apesar disso, no Brasil decidiu-se partir diretamente para esta configuração, pulando-se etapas de desenvolvimento que na maioria dos outros países foram seguidas com muito mais cautela. Apenas alguns modelos sem guiagem e em escala bastante reduzida, utilizando motores semelhantes ao do Sonda-II e chamados VLSR, foram utilizados para avaliar a viabilidade da configuração escolhida. As poucas informações disponíveis sobre estes foguetes indicam que seu primeiro teste teria falhado parcialmente em 1985, e o segundo teria atingido o objetivo em 1989.
A decisão de utilizar esta configuração em “cluster” obviamente acabou levando a um grande aumento na complexidade e no custo não apenas do foguete em si, mas também de toda a infra-estrutura necessária para o seu lançamento. O tamanho do foguete foi mais que duplicado com relação ao que se imaginava inicialmente, e devido ao fato de utilizar apenas combustíveis sólidos ele não poderia ter seus quatro motores do primeiro estágio integrados na horizontal como o Lançador-A, que utilizava combustíveis líquidos e por isso era bem mais leve antes de ser abastecido. Isto complicava a infra-estrutura e as operações de lançamento, que passavam a exigir uma torre de integração vertical. Dado também o crescimento da cidade de Natal e das atividades em seu entorno o CLFBI já estava, na década de oitenta, no limite de segurança para o lançamento de foguetes na faixa de tamanho do Sonda-IV. Embora ele talvez pudesse ainda receber um lançador de satélites derivado deste foguete e com um primeiro estágio único, a operação de um foguete muito maior e mais complexo como o agora proposto não seria possível mantendo-se o nível de segurança adequado. Por isso teve que ser construída uma nova base em um ponto mais isolado, e que veio a ser o Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA), localizado no estado do Maranhão. Somando tudo isso o montante de investimentos no programa VLS subiu a níveis bem mais altos do que inicialmente imaginado, e isso justamente quando a crise econômica brasileira chegava ao seu auge e o governo militar ao seu final.
Com o fim do regime militar o programa espacial brasileiro passou a ser considerado cada vez menos prioritário pelos governantes civis que sucederam os generais. Além disso, com o país imerso em uma crise econômica aparentemente insolúvel as verbas para a pesquisa científica e tecnológica em geral e para o desenvolvimento de foguetes em particular foram reduzidas de ano para ano, levando a atrasos sistemáticos no programa do foguete em si, à evasão do pessoal técnico especializado e ao abandono do desenvolvimento de alguns dos sistemas acessórios que eram fundamentais para o sua consecução, como as plataformas inerciais de orientação. A entrada em vigor do Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (cuja sigla em inglês é MTCR) em 1987 tornou muito mais difícil o acesso brasileiro a componentes e sistemas de aplicação espacial fabricados em outros países, implicando em dificuldades ainda maiores para o programa. Por tudo isso o primeiro lançamento do VLS, previsto inicialmente para o final da década de oitenta, só pôde ser tentado em 1997, com quase 10 anos de atraso. Dados os problemas que apareceram ao longo do desenvolvimento do VLS uma decisão gerencial por voltar pelo menos temporariamente à concepção do lançador menor e mais simples (conhecido agora como VLM ou Veículo Lançador Mínimo), com um único motor no primeiro estágio, poderia ter sido tomada em algum momento, permitindo acelerar os trabalhos ou pelo menos não atrasá-los tanto. Contudo, por razões não totalmente claras isto não foi feito até o momento.
Mas além de problemas econômicos e de boicotes internacionais, também problemas de ordem administrativa atrapalharam (e ainda atrapalham) o VLS. As mudanças de status do IAE, que passou a ser subordinado a diferentes comissões, órgão e ministérios governamentais e foi obrigado a seguir os procedimentos padrão de aquisições dos órgãos públicos tornou qualquer investimento ou compra de equipamentos, sistemas e até mesmo de simples peças um processo extremamente burocrático, difícil e demorado.
Outro problema é a própria falta de objetivos claros para o programa após a desistência do país em construir mísseis estratégicos. Ele foi concebido desde seu início visando o desenvolvimento de tecnologias em geral na área de foguetes de grande porte, mas nunca nenhuma especificação de produto para uma aplicação específica foi realmente colocada. O VLS era para ser um marco acadêmico visando mostrar, quando alcançado, que o país efetivamente dominava as tecnologias que pretendia desenvolver, mas nunca foi imaginado como um produto a ser produzido em série para qualquer aplicação específica, fosse como míssil militar ou como lançador de satélites. Isto, aliado ao enfoque acadêmico do IAE, acabou gerando uma situação em que a construção dos foguetes de sondagem e lançadores espaciais brasileiros não segue padrões tipicamente industriais, sendo antes um trabalho basicamente artesanal. Não existe nenhuma linha de produção seriada de motores ou outros sistemas, e cada foguete é encomendado e construído separadamente como um produto único. A redução da equipe técnica devido aos cortes no orçamento não permitiu que houvessem pessoas dedicadas ao registro dos processos de manufatura dos componentes ou dos procedimentos de montagem, e grande parte das atividades necessárias para construir um VLS ou qualquer outro foguete do IAE dependem do próprio conhecimento de quem as executa. Como não há continuidade na formação do pessoal, conhecimentos básicos estão sempre sendo perdidos, e as mesmas pessoas precisam realizar tarefas muito diferentes, ao invés de se especializar em atividades específicas.
O resultado mais visível desta situação é o enorme prazo entre as tentativas de lançamento de cada foguete, geralmente de vários meses e, no caso específico do VLS, historicamente de no mínimo 2 anos entre uma e outra tentativa. Outro resultado ainda mais grave é a baixa qualidade do foguete em si e de sua preparação para lançamento, sujeitos a falhas repetidas que impediram seu funcionamento até aqui apesar das 3 tentativas efetuadas, e custaram a vida de 21 técnicos na última delas, sete anos atrás. Um foguete falhar em seus primeiros lançamentos é uma ocorrência normal, mas prazos tão dilatados para se efetuar novas tentativas já não são ocorrências comuns, a menos que alguma coisa esteja errada com o programa em si. A título de comparação, o Vanguad, que deveria ter sido o primeiro foguete americano a lançar um satélite, falhou nas suas duas primeiras tentativas e só obteve sucesso na terceira, mas o prazo entre o primeira falha e o sucesso foi de apenas três meses e meio. Na Rússia também, durante a década de 60, três tentativas sucessivas de se lançar sondas interplanetárias utilizando uma nova versão de quatro estágios do Lançador-A fracassaram, até que se obtivesse o sucesso na quarta. Mas o intervalo total entre os quatro lançamentos novamente foi de somente pouco mais de 3 meses!
4- Conclusão:
Pelo que foi exposto acima fica claro que o programa VLS está muito longe de representar um esforço consistente para o desenvolvimento de um sistema de lançamento espacial realmente eficiente, sendo antes uma iniciativa de cunho basicamente acadêmico para obter o domínio das tecnologias necessárias para isso. Em princípio não há nada de errado com este enfoque, muitos programas espaciais começaram assim, com um foguete inicial destinado a permitir o domínio dos conhecimentos básicos necessários ao projeto de foguetes lançadores, que logo após os primeiros lançamentos foi abandonado em função do desenvolvimento de projetos mais eficientes e confiáveis. Os programas americano, o japonês e indiano são exemplos claros deste procedimento. O que causa estranheza no caso brasileiro foi ter-se decidido lançar primeiramente um foguete já na configuração mais complexa possível, ao invés de uma versão mais simples (O VLS com estágio inicial com motores em “cluster” ao invés do VLM, com estágio inicial de motor único), e a falta de qualquer planejamento consistente sobre o que fazer após os primeiros lançamentos bem sucedidos do próprio VLS. As únicas propostas apresentadas quanto a isso são o desenvolvimento de uma versão do VLS com os dois estágios superiores substituídos por um único de combustível líquido, mas ainda mantendo o primeiro estágio em “cluster” e que recebeu a designação de VLS-1B, e o “Programa Cruzeiro do Sul”, na verdade uma proposta apresentada pelos russos para o desenvolvimento de uma família de lançadores nos mesmos moldes do Angara, que eles próprios estão desenvolvendo, mas em tamanho menor.
A primeira destas propostas, embora possa melhorar um pouco o desempenho do VLS enquanto veículo lançador, não visa mudar a natureza acadêmica do programa, que continuaria se baseando em um foguete complexo e pouco confiável. Ela apenas acrescenta uma nova área de estudos que será a da propulsão líquida. Já a segunda foi apenas um estudo apresentado durante as conversas entre o governo brasileiro e o russo após a explosão do VLS-3, e o governo brasileiro já declarou que nenhum trabalho de desenvolvimento sério neste sentido está sequer planejado, embora exista uma estrutura burocrática em funcionamento para cuidar deste programa. Não há portanto atualmente nenhuma perspectiva de que o programa de foguetes espaciais brasileiro venha a gerar nenhum outro resultado além de versões mais ou menos aperfeiçoadas do próprio VLS, um projeto que se iniciou 30 anos atrás com objetivos condizentes com a época, mas que hoje já deveria ter sido substituído por outras iniciativas mais adequadas à realidade tanto do mundo como do atual estágio de desenvolvimento de nosso próprio país.
E as razões para esta situação devem ser buscadas fora do escopo do programa de desenvolvimento de foguetes em si. O fato é que a sociedade brasileira, incluindo aí tanto as autoridades como a sociedade civil, não sabe para quê deseja um programa espacial e, portanto, não tem como definir que objetivos ele deveria alcançar. A iniciativa de começar o desenvolvimento de foguetes foi dos militares, que hoje não tem mais a prerrogativa de definir os rumos de qualquer programa de lançamento de satélites, e o programa não tem ninguém que defina os rumos a serem tomados.
O que o Brasil quer com o espaço afinal? Mostrar que também é um país tecnologicamente competente e que pode desenvolver sistemas tão sofisticados quanto foguetes e satélites espaciais com seus próprios esforços? Obter acesso irrestrito aos usos possíveis dos satélites (comunicações, sensoriamento remoto, observação militar, etc...), operando seus próprios satélites? Ganhar dinheiro com o mercado internacional de lançamentos? Manter ativas linhas de pesquisa que possam incrementar a competitividade do parque tecnológico nacional? Cada um destes objetivos e outros que poderiam ser citados levam a conclusões diferentes sobre como deveria ser o envolvimento do país com os foguetes lançadores, que vão desde a manutenção de um programa eminentemente acadêmico como o do VLS até o desenvolvimento de famílias completas de veículos espaciais similares às que possuem países como os EUA, a Rússia, a China ou a Índia. Ou ainda, na direção oposta, bastaria a participação brasileira em programas internacionais como a ISS ou o Ariane, e a contratação dos lançamentos de nossos satélites usando foguetes estrangeiros lançados de bases no exterior ou aqui mesmo do Brasil (como o Cyclone-4 da empresa Alcântara-Cyclone Space).
Apenas após discutir as questões acima e definir exatamente os objetivos que busca no espaço o Brasil estará apto a dimensionar o tamanho dos esforços e dos investimentos que deverão ser feitos na área para que tais objetivos sejam alcançados. E até lá o programa do VLS continuará como tem estado pelos últimos vinte anos, apegando-se a objetivos definidos em outras épocas e circunstâncias e sem saber onde realmente deve chegar, e por conseguinte sem nenhuma perspectiva de obter apoio político ou verbas adequadas para sua correta consecução. E, consequentemente, sem e a capacidade de apresentar resultados realmente consistentes e que possam contribuir de forma efetiva para o desenvolvimento nacional, mesmo que eventualmente um ou outro lançamento bem sucedido venha a ser realizado.