Substitutos

Substitutos

O filme estrelado por Bruce Willis com esse título propõe uma realidade, ou antes uma sociedade, que tem réplicas – bem ou mal acabadas, tudo depende de quanto se pretende gastar – de cada um de seus habitantes. As réplicas não envelhecem e estão expostas a tudo que compõe uma vida ordinária: trânsito, trabalho, relações sociais, etc. O ser humano de carne e osso, chamado pelas réplicas de meat bag (saco de carne), passa noventa por cento do seu tempo deitado numa cama-divã futurista, dormitando com fios na cabeça e monitores ao lado, experimentando a vida através dos surrogates, como são chamados os replicantes. Frutos de uma invenção destinada inicialmente a beneficiar deficientes físicos, toda a humanidade passou a usá-los. Enquanto filme, nota Zê, enquanto argumento a nota fica em branco, carecendo de maiores divagações, pois claramente, se por um lado existe um desgaste no conceito, por outro ele vem a calhar, servindo então como gancho desse artigo.

A vida através de, ou a vida de graça?

Os surrogates são eletrônicos e funcionam com chip, ou seja, grosso modo, são processadores, apenas mais sofisticados do que este que você agora tem em mãos. E que também lhe propicia uma certa gratuidade sobre uma vasta gama de elementos.

Pesquisas apontam que 50% da população brasileira já utilizou a internet, nem que seja uma única vez. Outra pesquisa (2008), afirma que a média de leitura do brasileiro é de 0,6 livro/ano, sendo esse número a média nacional, já que o Rio Grande do Sul está na marca de 5,6 livros por habitante, ao ano, e Minas Gerais, 4,3. Ainda não existe um substituto para a leitura mas o filme indica que alguém pode fazer isso por você. O que ninguém indica é como organizar e fazer uso do conjunto de conceitos assimilados após a leitura. Não obstante, não faz tanto tempo assim que, se você quisesse um mapa, teria de ir a banca de jornal ou a papelaria, e hoje, para obtê-lo, basta o Google Maps. A partir do conceito proposto em “Substitutos”, seu processador pessoal, somado a rede mundial de processadores, começa a fazer esse papel.

Lembrando sempre que, uma parte considerável da sua leitura vem justamente através do substituto de agora.

Nada de novo no front e com relação a novidades,

Seth Godin, papa do marketing na internet, avisa: o mundo se transformou, pare de defender o que vai acabar, se você não quiser acabar junto...

Essa afirmação tem validade para determinada parcela da comunidade global. Falar em números aqui, pura e simplesmente, nos levaria a trilhar um caminho diverso do proposto. Como amostragem desta parcela, figura no topo da lista o Facebook, a maior rede social do mundo, que conta com mais de 200 milhões de usuários.

A televisão, segundo grande substituto para a solidão das massas (o primeiro foi o rádio) na Era da Luz Elétrica, tem hoje no Brasil, um pasto fenomenal para o relativamente novo conceito televisivo: o Reality Show. E mais, a sabedoria de plantão exposta na TV decretou, semana passada, através de uma das suas sumidades, que o próprio Brasil, em termos de comunicação via satélite para TVs de todos os credos, é em si mesmo um Gigantesco Reality Show. Pode apostar que essa tese não está ancorada nem na Fazenda da Record e tampouco no Grande Irmão da Globo. Esses são os karts, a Fórmula 1 respira a plenos pulmões nos noticiários. Resta saber se os protagonistas dos noticiários são os nossos substitutos.

Ano passado chegou no Brasil o último livro de

Cris Anderson, "Free", que em linhas gerais ensaia acerca da provável transição da "economia de átomos" para a "economia de bits", nos mostrando uma realidade onde o conteúdo da internet é de graça pois, entre outras, pode ser distribuído gratuitamente.

O substituto dessa idéia, ou, se preferir, a ilusão futurista do “de graça” tem uma contrapartida de carne e osso no conceito Reality Show da sociedade brasileira, assistida por um terço se tanto, e vivida na pele não sintética de todo o grande resto da população. São os atores. Para que o Reality Show aconteça, economicamente dizendo, a "economia da colaboração" proposta por Anderson em seu livro cai por terra, já que o suporte do Reality está na rede de anúncios. Que funciona sem sofismas durante a exibição.

Alguém tem que pagar a conta do canibalismo.

No mundo dos substitutos de Willis o ser humano não sofre a tensão de dirigir nas ruas congestionadas ou de fazer conquistas românticas, ou perdas românticas. Está poupado das emoções, da aceleração cardíaca por conta de uma ansiedade, para se dizer o mínimo. Alguém vive isso por ele. No mundo de Cris Anderson, o custo para se produzir um disco é deletado pelo simples fato de seu conteúdo ser distribuído gratuitamente pela web. Algo muito atraente para certas redes, onde o escritor de três leitores e o músico de dois ouvintes amealhariam algum pecúlio, devido as suas audiências na internet. E a economia de colaboração, idealizada no mundo virtual de Anderson, colocaria nos bíceps de cada um as divisas intangíveis do reconhecimento, do status, da reputação, por aí a fora.

Yes trampo, No grana.

Assim, De graça, (idealiza o autor de “Free”), Substitutos, protagonizado pelo Duro de Matar Willis e por fim, Reality Show, atestam os modernos - eis o extrato brasileiro exposto na telinha.

Há um link entre esses três conceitos, talvez não composto exatamente de uma palavra chave e cujo alcance é tão fugidio quanto fumaça nas mãos. Nos dois primeiros, podemos pensar em cultura e em todos, no elemento chamado informação. Ocorre que, no último, como o próprio termo expressa, a informação contida na realidade exibida está intimamente ligada a tragédia de seus protagonistas. Aí a porca torce o rabo, pois há uma audiência para isso. Seu conteúdo é tão livre de custos quanto os vídeos que se assiste no You Tube, mas, quem são eles, a matéria orgânica dessa não economia de colaboração?

Cerca de dois séculos atrás, apenas para arredondar a conta, a colheita do café foi primeiramente feita através de uma peneira amarrada à cintura do colhedor, depois passou-se a usar um pano estendido no chão onde caía o grão derriçado, que em seguida era mergulhado num tanque, então colocado para secar num terreiro, juntado aos montes, depois descascado, peneirado, beneficiado em pilões ou monjolos, alocado em cestas de vime e posteriormente acondicionado em sacaria de aniagem, para daí galgar outros tantos degraus até chegar à xícara e desta aos lábios do consumidor final. Com algumas modificações, a única economia de colaboração entre 1850 e 2010, no que tange ao cafezinho que você sorve ao lado do seu processador, é a gorjeta, além do salário mal pago e achatado, à grande maioria daqueles que colaboraram para a conclusão desse “milagre”.

A parábola do café tem serventia aqui para mastigar e assim explanar, tim tim por tim tim, que os protagonistas do Reality Show, dado de graça às massas, são grãos na moenda e substitutos de todos os que se servem do pudim, sem se dar conta que o mesmo está há léguas de se equiparar com um disco ou um texto digitalizado.

O filme de Willis termina com todos os replicantes desativados e uma narração em off constatando que “de agora em diante estamos por nossa conta”.

Numa licença sem nada de poesia, o que vemos no Reality Show Brasil, gratuitamente, são nossos substitutos sendo soterrados, afogados, negligenciados pelos hospitais da rede pública, vitimizados por projéteis, atropelados por embriaguez, lesados por nenhuma ética, tripudiados por falsas informações e promessas pseudo politizadas, tomando cacete para entrar nos trens, fazendo o resto do trajeto a pé e ainda pagando pedágio para o mais forte da ocasião, vendo suas vidas serem ditadas por uma falta absoluta de senso e menor razão, debatendo-se em ignorância e mais ignorância para finalmente servirem de pastagem para um voyeurismo concupiscente, cúmplice e ao mesmo tempo refém de um sistema que caduca a passos largos.

São, enfim, os nossos substitutos.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 23/01/2010
Reeditado em 12/01/2013
Código do texto: T2046877
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