RELAÇÃO AMOROSA

O ato de ler um livro, uma página, uma palavra, uma estátua, uma dança, uma situação seja ela qual for estabelece uma relação íntima, da qual todos os sentidos participam: os olhos filtrando as palavras ou as imagens; os ouvidos ecoando os sons que estão sendo lidos; o nariz inalando o cheiro do papel ou do tempero; as mãos buscando um contato mais próximo com o objeto lido.

Ao ler, transportamo-nos para o universo em análise: as cores se multiplicam, as pessoas aparecem em contextos inimagináveis, não precisamos ter um estado físico e material estável, as sensações se revigoram a cada pensamento; enfim, não temos certeza de quem somos, nem do que queremos, apenas, vivemos cada segundo do mundo imerso.

Sentir o cheiro da liberdade no andar, o mar em profusão de águas dúbias, as ruas em movimento desconexo, sensação de viver a vida em demasia, sem amarras, sem privações ou repreensões, experimentar o novo sem medo de cair em precipício, porque a certeza de outras portas ou janelas em simetrias distintas existe, só nos faz querer roubar mais do tempo para nos arriscar numa leitura policial, romântica ou polêmica.

A leitura nos traz tudo isso e mais alguma coisa. Mesmo se esquivando, é lícito que cada um sabe o quê: os gostos possíveis e não penetráveis; o vivível, o invisível, o esgotável e o que não se esgota nunca. Magnífico estado de aprendizado, de revestimento humano, de metamorfose centrada e ao mesmo tempo desfacelada. Seria o chamado paradoxo necessário.

Concordando com o francês Daniel Pennac, em seu ensaio Como um romance, o leitor tem seus direitos: direito de pular páginas, de ler onde e como quiser, de desistir de uma leitura e procurar outra mais aprazível, e até de adquirir a doença textualmente transmissível, ou seja, o bovarismo (confesso que já me contaminei há muito tempo). E se ler permite-me esses e muitos outros direitos, que eu possa acrescentar mais um: o de ler e reler os próprios textos como se fosse o primeiro encontro amoroso.

Referências

PENNAC, Daniel. Como um romance. Trad. de Leny Werneck. São Paulo: Rocco, 1993.

DENISE CARVALHO
Enviado por DENISE CARVALHO em 27/09/2009
Reeditado em 27/09/2009
Código do texto: T1834661