Bolo de Palmatória
Era sábado, dia de argumento da tabuada e de soletração, nos idos de 1966, lá na corruptela de Pouso Alto, município de Torixoréu, Mato Grosso, Brasil.
Minutos após meu irmão Lucimar dizer ao professor que estava com dor de barriga e ele o mandar ir para casa tomar um remédio e se cuidar, comecei a me entortar de um lado para outro enquanto esfregava a barriga.
O professor perguntou-me o que estava acontecendo. Disse-lhe que também estava com dor de barriga. Ele balançou a cabeça, perguntou se havíamos comido alguma coisa diferente e depois, também me mandou para casa.
Ali chegando, disse ao meu irmão que o Professor Chico Primo me mandara ir até a casa de tio Lélis, um parente que tinha uma fazenda na vizinhança, buscar uma jarra de jabuticabas, porque jabuticaba era um grande remédio para dor de barriga.
E assim, já que o professor autorizara, o Lucimar então mandou que eu fosse cumprir a missão.
Nesse ínterim, enquanto estava lá para o tio Lélis, o professor Chico Primo foi até a nossa casa para ver como estávamos de saúde, tomando conhecimento de toda a travessura. Voltou à escola, determinando expressamente ao Lucimar que eu voltasse para o argumento, tão logo retornasse das jabuticabeiras.
Ao chegar e receber a notificação magisterial, eu retornei para a escola na carreira. E, nessa pressa, nem fui ao mato fazer um xixi. E aí, meu caro, nem posso contar o que se passou depois.
Mal entrei na sala e peguei a tabuada para voltar ao coral (a tabuada era estudada de forma cantada, todos ao mesmo tempo), senti vontade de ir ao mato. Mas, quando fui pegar a licença, uma semente graúda, de umas trinta gramas mais ou menos e que ficava sob a mesa do professor, ele a pegou antes de mim e, sem ela eu não estava autorizado a sair.
Então, sem argumentos, voltei ao banco da tabuada. Mas, tão logo me sentei, o professor nos chamou para o argumento, a sabatina matemática.
Levantamos. Fizemos a roda tradicional e ele começou: "três vezes oito" (apontava para um aluno, o qual tinha que responder); "noves fora" (apontava para outro); e, dessa forma prosseguia com a avaliação.
Quando um aluno não respondia no tempo dado por ele, ou respondia errado, ele apontava a palmatória para o próximo, e para o próximo, até que um respondesse corretamente. Então esse adquiria o direito de correr a roda, dando bolos de palmatória nos colegas.
A palmatória era um instrumento de madeira, como se fosse uma colher de pau. Possuía um cabo roliço de uns trinta centímetros e uma parte oval em uma das extremidades (no lugar da concha da colher). O aluno pegava a palmatória pelo cabo e batia na palma da mão de seu colega com a parte oval daquele instrumento. A palmatória foi o terror da escola até os anos setenta, quando houve a reforma do ensino através de Lei 5.692. Na maioria da vezes, o professor fazia um furinho no centro da parte oval, que chupava o sangue da mão, aumentando a dor do bolo. Muitos alunos voltavam para casa com as mãos inchadas de tanto bolo que levava.
E o professor prosseguia no argumento: “sete vezes seis”, “noves fora”, “vezes cinco”, “noves fora”... Como ele gostava dos noves fora! E eu, segurando a vontade de fazer xixi, já nem escutava mais as perguntas. E numa dessas, me vi frente a frente com o cabo da palmatória apontando para mim. Que desespero! Eu nem sabia qual era a pergunta, logo eu que nunca tomara um bolo de colega, agora não ia escapar. Então respondi um valor qualquer e não tive a sorte de acertar. Nunca fui bom de sorte. O mesmo não aconteceu com o Geraldo de seu Odilon, que, atento, respondeu na bucha. “Trinta e seis!”
O professor lhe entregou a palmatória e o Geraldo, com os olhos cheios de alegria, começou o samba: “Pá!”, “Pá!”, “Pá!”. Esse era o som que se ouvia. Então chegou a minha vez. O Geraldo, um moreno grande e forte, de uns treze anos, pegou a minha mãozinha de oito anos e sapecou-me um bolo com gosto, vingando-se dos tantos que eu já lhe dera, porque, justiça seja feita... Ele podia ser grande e forte, mas que era ruim de tabuada, isso ele era.
E então aconteceu! Ao receber o bolo, perdi o controle da bexiga e “xiiii...”, não consegui segurar. Fiz xixi na calça, começando a chorar, não pela dor do bolo que levara, mas pela vergonha de ter mijado na roupa.
Nunca mais quis saber de chupar jabuticaba ou de ter dor de barriga em dia de argumento. E, se não esqueci, esse também foi o primeiro e o último bolo que levei na vida. Estudei até decorar a tabuada. Desde então, sempre tive a resposta na ponta da língua.
Não sei se essa história teve alguma coisa a ver, mas acabei me apaixonando pela matéria e, hoje, como professor de Matemática, apesar de ser contra a violência e a truculência, de vez em quando tenho saudade da palmatória. Ela foi um grande instrumento de estímulo em meus estudos. Pode não ser pedagógico, não defendo que seja, mas eu estudei muito para aprender a soletrar as palavras e responder os argumentos de matemática, tendo a resposta na ponta da língua, com medo da palmatória.
Não tive os recursos das calculadoras, dos computadores, das bibliotecas, das técnicas pedagógicas. Meu professor primário, não tinha mais que a quarta série. Mas tive um pai que me mandou para a escola e que me punha para estudar todos os dias até eu aprender as lições do dia seguinte. Eu sempre chegava à escola sabendo o que havia estudado no dia anterior. E por ir aprendendo as coisas, fui tomando gosto pelos estudos. Hoje, com cinqüenta e um anos, levo no meu velho bornal escolar os diplomas de licenciado em Pedagogia e em Matemática, bem como o de bacharel em Direito, já aprovado na primeira fase da OAB/MT. Seguem juntos os diplomas de pós-graduação como Gerente de Cidades e de Especialista em Matemática e Estatística. E se Deus me der tempo, tenho planos de continuar estudando. Ah, sim! Não sei se precisaria dizer isso, mas a velha palmatória de Chico Primo também me deu o primeiro lugar no concurso que fiz para ocupar duas cadeiras no magistério estadual, sendo uma nos anos oitenta e outra há dois anos e pouco.
Infelizmente, meus alunos hoje não são estimulados para estudar. A maioria vai à escola para merendar e não para estudar. O professor canta, faz palhaçadas, conta piadas, grita, chora, fica calado... Aplica todas as técnicas possíveis. Quando muito, consegue alguns minutos de atenção e então tudo volta ao ritmo enfadonho e cansativo de sempre. E então ele leva o bolo da palmatória. Seus alunos não aprendem porque ele não sabe ensinar, porque ele não domina a Matemática, porque ele não tem criatividade e bla-bla-bla. Para resolver essa deficiência, o governo então lhe oferece cursos de atualização onde ele reestuda pela enésima vez e da mesma forma que ele ensina aos seus alunos, os velhos conteúdos de Matemática, que os alunos não aprendem porque não são estimulados para aprender. Aqui em Mato Grosso se destacam nesse contexto, o Projeto Aprendiz, o Gestar e a Sala do Professor, consumindo suas “horas livres”, seus sábados e até alguns domingos, quando precisa reler diversos quilos de livros, que quase nada apresentam de novidades. Em algumas vezes, os programas são até contraditórios. E assim, o ensino regular, continua cada vez mais irregular, onde os alunos são incentivados pela lei para ir à escola, mas não para estudar. Aprendendo ou não, eles vão sendo promovidos. Aprendendo ou não, eles vão tentando a sorte no ENEM e entrando nas faculdades públicas ou nas particulares à custa do PROUNI, das cotas e outros privilégios. Aprendendo ou não eles vão chutando as respostas nos concursos públicos e ocupando os postos de trabalho ofertados. E o professor, que no passado comeu o pão que o diabo amassou para estudar e aprender, hoje é o culpado porque seus alunos, desestimulados para os estudos, não aprendem nada.
Se no regular, a coisa anda mal, nos programas de Educação de Jovens e Adultos, as coisas vão de mal a pior. Os alunos, igualmente, não são estimulados para estudar. Pelo contrário. São estimulados a tentar a sorte nos provões da Secretaria de Educação para obterem os Certificados de Conclusão do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. E, enquanto não eliminam as diversas matérias, eles estão indo à escola, onde ficam até a hora da merenda. Aí se alimentam e vão para casa. No ensino noturno, poucos ficam até o final das aulas. O professor não pode passar “tarefas para casa”, não pode cobrar “coisas difíceis”. Ele deve fazer provas fáceis, realizadas sob consulta e em grupos de dois, três, para que um possa ajudar aos outros. Ele deve oferecer aulas de reforço, apesar dos alunos faltarem às aulas oferecidas. A grande preocupação é que o aluno deve passar. Esse passar é substituído pelo aprender. É comum o aluno sair da sala quando inicia a aula de Matemática, por exemplo, alegando que já eliminou essa matéria no provão, embora não saiba nada do que respondeu na prova, como se verifica no nível seguinte de seus estudos.
Meu Deus do céu! Onde vamos parar com isso? É evidente que a cada dia a humanidade acumula mais e mais conhecimentos, mas, contrário senso, de um modo geral, nunca se soube tão pouco a respeito desse conhecimento acumulado, como ocorre em nossos dias. E com certeza, a causa principal não é a falta de conhecimento do professor, seja de técnicas pedagógicas, seja de conhecimento em si.
O aluno precisa ser estimulado para estudar. Em tempos de desemprego, deve-se exigir que os candidatos às vagas existentes demonstrem o conhecimento real do que seus títulos atestam. Não em provas de sorte, onde o aluno chuta uma ou outra das alternativas oferecidas, mas em questões que requeiram a demonstração do conhecimento. Que se cobrem explicações para as soluções dadas; que os candidatos escrevam as respostas aos questionamentos feitos ou respondam aos mesmos, oralmente, perante bancas examinadoras imparciais.
Além disso, que todos os profissionais liberais sejam submetidos a provas teóricas e práticas para que possam exercer as profissões que seus diplomas atestam, a exemplo do que já acontece com os bacharéis em direito que querem advogar e que devem fazer as provas da OAB.
E mais... Que essa avaliação seja feita de tempos em tempos, para que os profissionais e ocupantes de empregos, principalmente os públicos, se mantenham atualizados com os novos conhecimentos e sejam impedidos de exercerem a profissão ou seus empregos, caso não sejam aprovados nos reexames.
A sociedade não pode continuar pagando essa conta. E muito menos os professores. Nós podemos ter nossa culpa, porque muitos de nós, depois de concursados, também não se atualizam, tornando-se defasados e ultrapassados. Mas, certamente, a maior responsabilidade não é nossa, pois não se pode ensinar àqueles que não querem aprender. Por outro lado, para que não se cometam injustiças, devemos registrar que existe uma minoria que tem aprendido e com a qual nós temos contribuído e pelos quais estamos insistindo em nosso ofício de professor. Todavia, a nossa preocupação é com a maioria desestimulada, porque aqueles, de uma forma ou de outra, com nossa ajuda ou não, haverão de aprender, simplesmente porque são estimulados a isso por si mesmos.
Aos demais, que em sua realidade sejam estimulados para aprender e, figuradamente, que se retornem para eles os tempos da palmatória, onde se aprendia por “bem” ou por “lem”. Essa é uma realidade que não pode continuar sendo abafada.
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Izaias Resplandes de Sousa é bacharel em Direito, pedagogo, professor especialista em Matemática, atuando nas escolas estaduais em Poxoréu, MT.