A corrida espacial
Em homenagem aos quarenta anos do primeiro pouso do homem na Lua, segue a adaptação de um texto escrito para um site de assuntos militares:
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Muito se comentou este ano sobre o primeiro pouso de Neil Armstrong e Edwin Aldrin na Lua em 20 de julho de 1969, no que teria consagrado a vitória americana sobre a União Soviética na corrida espacial. Muito poucos, porém, tem uma visão clara do que acontecia durante aquela dita “corrida”, e sobre o verdadeiro significado da façanha tecnológica que foi a conclusão bem sucedida da missão Apollo 11 e das missões seguintes do programa Apollo.
Na verdade, os programas espaciais das duas superpotências da época tinham naturezas diferentes e eram encarados pelos respectivos governos de formas muito distintas, e a compreensão disto coloca o assunto em uma perspectiva diferente da que normalmente é apresentada nas aulas de história e nos meios de comunicação. O objetivo deste texto é apresentar esta nova perspectiva pouco conhecida sobre este assunto tão interessante.
O início da corrida espacial pode ser traçado ao final da Segunda Guerra Mundial, quando tanto os Estados Unidos como a União Soviética capturaram técnicos, documentos e componentes dos foguetes V-2 utilizados pelos nazistas durante a guerra. Os EUA já tinham desenvolvido alguma coisa inovadora em termos de foguetes avançados, através do trabalho de seu pioneiro Robert Goddard, e os russos contavam já com os trabalhos de estudiosos como Konstantin Tsiolkovsky e Georg Friedrich Zander. Mas os estudos e testes destes pesquisadores não chegaram nem perto das grandes realizações alemães no desenvolvimento de foguetes durante o período do conflito mundial.
Então, em ambos os países o primeiro passo foi reproduzir estes foguetes alemães e aperfeiçoá-los ao longo dos últimos anos da década de quarenta, e estes esforços serviram de base para todo o desenvolvimento da pesquisa espacial posterior. Logo engenheiros russos trabalhando na URSS e alemães trabalhando nos EUA estavam desenvolvendo novos conceitos que permitiram a construção de foguetes ainda muito mais poderosos e impressionantes do que as bombas voadoras V-2. E estes novos foguetes deram finalmente à humanidade a possibilidade de se iniciar a exploração do espaço.
À partir do início da década de cinquenta a União Soviética começou a construir seu arsenal de bombas atômicas em contraposição ao arsenal americano, mas ao contrário dos Estados Unidos ela não possuía uma grande força de bombardeiros estratégicos para lançá-las. Foram feitos portanto grandes esforços no desenvolvimento de mísseis maiores e mais poderosos que pudessem carregar as ogivas nucleares soviéticas, ainda grandes e pesadas, a grandes distâncias. Já do lado americano o desenvolvimento de foguetes não tinha tanta prioridade, embora já houvesse a percepção de que eles pudessem vir a ser úteis como mísseis para lançar bombas nucleares uma vez que não podiam ser interceptados como os aviões de bombardeio. As bombas americanas também eram mais avançadas e menores do que as soviéticas e, portanto, os foguetes projetados nesta época nos Estados Unidos ainda não precisavam ser tão grandes quanto os planejados pelos russos.
Nesta altura tanto os EUA quanto a URSS não davam tanta importância assim para seus programas espaciais, até porque não esperavam obter nenhuma vantagem econômica, militar ou mesmo tecnológica com eles já que não haviam ainda sido criadas as aplicações para os satélites artificiais que são conhecidas hoje. Então, em ambos os lados os começos foram modestos.
Na URSS de início sequer existia um programa espacial oficial, o que havia era o desenvolvimento de mísseis nucleares que pudessem equilibrar a vantagem estratégica americana em bombardeiros. A idéia de utilizar o maior destes mísseis em desenvolvimento, designado R-7 Semyorka, para lançar um satélite artificial partiu de um dos engenheiros responsáveis pelo desenvolvimento dos foguetes, Mikhail Tikhonravov, tendo sido adotada entusiasticamente por seu chefe Sergei Korolev. Mas eles só conseguiram convencer o general Dmitry Ustinov, que na época era o responsável pelo programa de mísseis e tinha um cargo equivalente ao de ministro da defesa, a aprovar o lançamento garantindo que ele seria um bom teste para o R-7 como míssil, sem afetar o andamento e o sigilo do programa militar.
Enquanto isso, nos Estados Unidos praticamente todo o esforço para o lançamento de satélites artificiais, o primeiro passo de qualquer programa espacial digno do nome, estava concentrado em um programa da marinha, utilizando como base uma evolução do foguete de sondagem Viking. Chamado Vanguard, ele não era o foguete mais poderoso disponível no país, pois este seria o revolucionário Atlas da força aérea, nem o que estava em estágio de desenvolvimento mais avançado, que era o Jupiter do exército, mas foi escolhido justamente por ser o único de aplicação não-militar e portanto sem problemas de sigilo. Como se vê, os americanos tinham exatamente a mesma preocupação dos soviéticos em preservar seus mísseis militares em segredo, mas possuiam um pequeno programa “menos bélico”, embora mantido em grande parte pela marinha americana, que podiam utilizar.
Os russos ganharam esta parte da corrida de forma completamente inesperada pelos americanos, lançando o Sputnik I em 4 de outubro de 1957 com seu foguete R-7. Os americanos foram totalmente surpreendidos, pois não imaginavam que os soviéticos estivessem tão avançados, enquanto seu programa Vanguard sofria com várias falhas sucessivas.
Aí a coisa mudou totalmente de figura. O governo americano decidiu coordenar todos os programas de foguetes em conjunto para tentar superar os soviéticos, que ainda não tinham um programa espacial definido, e lançaram seu primeiro satélite com um foguete Jupiter-C. Mas as várias versões do R-7, conhecidas conjuntamente como Lançador-A quando utilizadas em missões espaciais, eram realizações tecnológicas tão notáveis que mesmo com os melhores foguetes de que dispunham no momento, o Atlas, o Thor e mais à frente o Titan, os americanos não conseguiram virar o jogo. Os russos em rápida sequência lançaram em órbita satélites muito maiores que os americanos, colocaram o primeiro homem no espaço, lançaram as primeiras sondas interplanetárias, colocaram o primeiro objeto humano na superfície da lua e tiraram as primeiras fotos do seu lado oculto. Os americanos conseguiam seguir os russos de perto, mas não conseguiam fazer praticamente nada antes deles. Para uma sociedade em que o marketing tinha, como tem ainda hoje, uma importância fundamental, esta era uma situação inaceitável. Então, já em 1958 o governo americano criou a NASA e concentrou todos os esforços da pesquisa espacial em uma única instituição, dotando-a de enormes fundos que em certo ponto chegaram a 10% de todo o orçamento do governo americano, para tentar assim superar os russos na conquista do espaço. E com esta estrutura montada o presidente Kennedy lançou em 1961 o desafio da missão lunar.
Da parte dos próprios soviéticos, contudo, a situação também havia mudado, mas de forma diferente. O R-7 mostrou ser uma maravilha como veículo espacial, mas era um míssil muito ruim e logo ficou obsoleto. Os russos partiram para o desenvolvimento de mísseis com combustíveis estocáveis, dos quais Korolev não gostava por considerar perigosos, e a única forma que este encontrou para manter sua proeminência foi continuando com os sucessos no campo espacial, pois a propaganda para o regime advinda daí estava sendo bastante apreciada pelo Kremlin. Contudo, jamais houve uma unificação dos esforços de pesquisa como a ocorrida nos EUA, e seguindo a prática soviética para a área de tecnologia cada escritório de projeto (OKB) tinha que disputar as verbas destinadas aos programas de foguetes com os demais, levando a uma pulverização dos esforços. Então, os vários OKB que trabalhavam com desenvolvimento de foguetes apresentavam propostas concorrentes para os lançamentos espaciais, e a escolha de quais delas receberiam fundos nem sempre seguia os melhores critérios técnicos ou mesmo de lógica. Em certo momento, por exemplo, chegaram a existir três programas diferentes de lançamento de cosmonautas para a lua sendo desenvolvidos ao mesmo tempo!
Além disso, todo o desenvolvimento espacial soviético era feito pelos mesmos escritórios que desenvolviam os programas militares e tudo era mantido no mais absoluto sigilo até que houvesse boas notícias para serem divulgadas como propaganda. Qualquer outra informação podia servir ao serviço de inteligência do inimigo, e por isso era mantida a sete chaves. Esta cortina de segredo também servia para ocultar os lançamentos fracassados dos soviéticos, enquanto os dos americanos eram transmitidos ao vivo pela televisão.
Após muitas disputas internas o programa de Korolev para levar cosmonautas soviéticos à lua foi o que mais avançou, até porque seu escritório era o que tinha menos envolvimento com os novos programas militares, e por isso foi escolhido para a tentativa de vencer o desafio proposto por Kennedy. Mas cada rublo que Korolev conseguia para seu programa tinha que ser disputado com os demais chefes de OKB como Valentin Glushko, Vladmir Chelomey e Mikhail Yangel, todos trabalhando em diferentes programas de mísseis que tinham maior prioridade.
Neste ambiente não era necessário pensar muito para adivinhar quem venceria a corrida à Lua, e o resto é história. Korolev não obteve fundos nem mesmo para testar em bancada os conjuntos de motores de seu enorme foguete N1, e nunca conseguiu fazê-lo funcionar adequadamente. Os motores mais poderosos e confiáveis eram os desenvolvidos por Valentin Glushko, mas empregavam combustíveis estocáveis desenvolvidos para os mísseis militares e Korolev, que já não se entendia bem com Glushko, preferiu não usá-los. Então os americanos, com um programa totalmente coordenado e prioridade absoluta na distribuição das verbas, passaram à frente na corrida espacial colocando Armstrong na Lua em 1969 com o gigantesco foguete Saturno-V, na missão Apollo-11.
Várias outras missões Apollo se seguiram à primeira, mas não havia muito o que se fazer na Lua fora propaganda e após recolher algumas pedras os americanos pararam de ir até lá. Os russos também conseguiram algumas gramas de pedras lunares com as sondas automáticas Luna, lançadas à partir de setembro de 1970 e que enviaram pequenas amostras de volta para a Terra. Depois disso a Lua foi deixada em paz, e assim permaneceu até bem pouco tempo atrás quando outros países como China e Índia voltaram a se interessar por ela.
Percebendo que não poderiam acompanhar os americanos no envio de astronautas para a Lua, e que isto no final não tinha nenhuma utilidade, os soviéticos pegaram os avanços de um outro de seus programas espaciais, o de estações orbitais desenvolvidas pelo OKB de Chelomey, e passaram a se concentrar no lançamento de estações espaciais tripuladas cada vez mais complexas usando seu mais poderoso míssil, o UR-500 ou Próton, projetado pelo OKB de Glushko. A primeira delas, chamada Salyut-1 e consistindo de um único módulo, foi lançada em 1971, e a última foi a Mir, composta por diversos módulos e que saiu de órbita em março de 2001, após 15 anos de operação. Os americanos chegaram a embarcar na aventura das estações espaciais com o Skylab, lançado em 1973, operado até 74 e que saiu de órbita em 1979. Mas não houve outras estações espaciais americanas, e os russos acabaram assim por re-obter a vantagem nos vôos espaciais tripulados até que os EUA iniciaram a arrojada e afinal infeliz aventura dos ônibus espaciais. Os americanos, enquanto isso, se concentravam no lançamento de sondas automáticas interplanetárias como as Pioneer, as Viking e as Voyager, obtendo neste campo resultados que os russos não igualaram até hoje.
E na atualidade ambos os países trabalham juntos na estação espacial internacional, e pode-se portanto dizer que ao final a corrida espacial terminou empatada.