PAULO FREIRE: um desbravador de possibilidades.

Frederico Mayor – Diretor geral da Unesco – é categórico: “ Falar de Paulo Freire é evocar mananciais de lucidez. É descobrir torvelinhos de protesto justo e valoroso em favor da esquecida dignidade de toda pessoa”. Com ele (Paulo Freire) digo: o sol estala nas dormitações de nossas consciências. Qualquer reducionismo é razão suficiente para contra-atacarmos e avançarmos na direção da liberdade criativa e criadora. No dizer de Mayor, “é, também, alçar vôo da imaginação e do sonho, frente ao mesquinho procedimento daqueles que ficam contabilizando seus compatriotas em enquetes e eleições, sem procurar torná-los cidadãos plenos na vida pública”. Em síntese, Paulo Freire é Amor. Sua pedagogia é um canto-práxis da auto-realização, mas tal fenômeno, como nos ensinou o Mestre de Nazaré, essencialmente, leva em conta o outro.

Por desbravar possibilidades – o que em suas palavras redunda no “inédito viável”- é que exigia ao menos o necessário para sustentar as empreitadas. Ao alfabetizando adulto, preconizava, como ponto de partida, a sua própria realidade. Assim, é óbvio, o mesmo tem a possibilidade de se enxergar fincado naquilo que o faz ser o que é. Mas não basta só isso, ele tem de ir em frente, sair do estado apático no qual se encontra construindo cultura, gerando sua própria educação. Nas palavras de Ana Maria Araújo Freire, “O ‘ser-menos’ das camadas populares é trabalhado para não ser entendido como desígnio de divino, ou sina, mas como determinação do contexto econômico-político-ideológico da sociedade em que vivem”.

Ora, se o sujeito chega à conscientização de que é um “fazedor de cultura”, logo perceberá a importância do ler e do escrever. Isso, sem sombra de dúvida, consiste na alfabetização política. A partir daí, em exercícios dialéticos constantes, à luz “da realidade a ser decodificada”, bem como do objeto a ser conhecido, aprofundam-se as tão badaladas “leituras de mundo”. Qual a motivação maior de tudo isso? Uma re-leitura geradora de práticas políticas cujo fim é a transformação da sociedade.

Nas Palavras de Araújo, “Que? Por que? Como? Para Quê? Por quem? Para quem? Contra quem? A favor de quem? A favor de quê – são perguntas que provocam os alfabetizandos em torno da substancialidade das coisas, da razão de ser delas, de suas finalidades, do modo como se fazem etc.

Conhecer o universo vocabular mínimo dos educandos é fundamental no método freireano. O mestre chamou o rol destes vocábulos de “palavras geradoras”, em torno de dezessete. As mesmas hão de conter um potencial fonêmico reconhecido, sendo então colocadas em ordem crescente. Ou seja, das menores para as maiores no tocante às dificuldades fonéticas. Em seguida, trabalha-se a decodificação da palavra escrita dentro de alguns passos que se sucedem rigorosamente. Exemplo.

1. Apresenta-se a palavra VOTAR

2. Escreve-se simplesmente a palavra VOTAR

3. Escreve-se a mesma palavra com sílabas separadas VO – TAR

4. Apresenta-se a “família fonêmica” da primeira sílaba. VA- VE- VI- VO- VU.

5. Apresenta-se a “família fonética” da segunda sílaba: TAR- TER- TIR- TOR- TUR

6. Apresentam-se as “famílias fonéticas” da palavra que está sendo decodificada: VA-VE-VI-VO-VU TAR-TER-TIR-TOR-TUR.

O conjunto acima (das palavras geradoras), Paulo Freire chama de “ficha de descoberta”, pois é possível formarmos novas palavras em português a partir delas.

7. Então apresentamos as vogais

a – e – i – o – u.

Segundo o método, se o alfabetizando consegue criar outras palavras, está alfabetizado. Não é preciso dizer que tal processo exige um maior aprofundamento, isto é, a “pós-alfabetização”.

Nos termos de Ana Freire, “A eficácia e validade do ‘Método’ consistem em partir da realidade do alfabetizando, do que ele já conhece, do valor pragmático das coisas e fatos de sua vida cotidiana, de suas situações existenciais. Respeitando o senso comum e dele partindo, Freire, propõe a sua superação”.

O busílis, senhores e senhoras, do “Método” freireano é a conscientização política que leva o indivíduo a ler a totalidade não só da linguagem, mas de mundo. Isso, é claro, vai de encontro às antigas cartilhas. A proposta de Freire nada tem a ver com repetições fetichizadas quer de frases, quer de palavras, quer de sílabas.

Portanto, o trabalho de Paulo Freire, assegura Araújo, é mais do que um método que alfabetiza, é uma ampla e profunda compreensão da educação que tem como cerne de suas preocupações a sua natureza política.

Paulo Freire, repito, é um desbravador de possibilidades. Por isso, tudo o que nos legou pode ser expressado na categoria “militância”. Sonha conosco construindo uma outra sociedade na qual os oprimidos deixam tal estado, desde que alicerçados numa “consciência articulada com a práxis, desafiadora e transformadora”. De modo que se faz necessário o que propugnou de “diálogo crítico”. Todos sabemos que, sob a ótica da pedagogia dominante, o sujeito é forçado ao medo, medo da fala, medo da vivência, medo do ser. Tudo, nessa perspectiva, se dá de forma vertical, impedindo a crítica, fazendo valer o silêncio, entendido esse como aquilo que não deve ser manifestado, posto conter verdades libertadoras. Ao oprimido se lhe é permitido apenas verbalizar aquilo que se encontra na expectativa do outro, o opressor. Então não há diálogo. Este (diálogo), conforme preceitua, tomando emprestadas as palavras de Moacir Gadotti, é uma relação horizontal, oposta ao elitismo. Nutre-se de amor, humildade, esperança, fé e confiança.

Paulo Freire está para a Educação como Maquiavel para a Política, como Einstein para a Física, como Marx para a Economia, como Freud para a Psicologia. São homens desbravadores de verdades, homens que ajudam os outros a se auto-ajudarem, são seres que iluminam as veredas dos demais indo muito além do seu tempo, de suas gerações. Nas palavras de Alexandre Silva Virgínio, “são pessoas que, pela tecnologia do pensar, fizeram-se personalidades memoráveis.

Em Paulo Freire tanto o aperfeiçoamento de todos nós, como as transformações dinâmicas e salutares da sociedade são mesmo um “imperativo categórico”.

Na sua “Pedagogia do Oprimido” consciência e existência estão de tal forma imbricadas que, sem uma, toda a leitura-proposta virá abaixo, ou seja, será transformada em reles caricatura do que propõe. Daí ser absolutamente imprescindível o exercício crítico corajoso, enfrentador, confrontador. Como um ato lógico, a crítica requer não apenas a análise, mas avança até a síntese vasculhando o que “dizendo se deixa de dizer”. Conforme Marilena Chauí, “o que interessa para a crítica não é o que está explicitamente pensado, explicitamente dito, mas exatamente aquilo que não está sendo dito e que, muitas vezes, nem sequer está sendo pensado de maneira consciente”. Vale ressaltar que o exercício crítico propugnado por Paulo Freire nada tem a ver com jogos de interesses nos quais o centro seja uma visão maniqueísta das coisas. Ora, a crítica verdadeira nos coloca diante de dois fenômenos: de um lado, podemos desmascarar as ideologias, os velamentos, os fetiches. De outro, podemos nos surpreender com a segurança, com a profundidade, com a coerência de um discurso, ou seja, ele pode ser bem mais rico e nos indicar novos rumos do que antes pensávamos. Eis por que a irrefragável função da crítica “é fazer falar o silêncio”. E esta, sem sombra de dúvida, é a meta maior de todo processo educacional. Não basta o conhecimento, é preciso consciência política a fim de que o educando, de fato, passe a Ser, passe a Sujeito, passe, enfim, a ativar uma cidadania de auto-realização. Para Freire diz Virgínio, o ato de educar é muito mais do que uma ação direcionada á tarefa de acessar o conhecimento. Para ele, tão ou mais importante que isto é saber de que saber se trata, quem o produziu e a quem serve. Neste sentido, educador ou educadora são aqueles que, uma vez reconhecendo a consistência dos saberes erguidos pela prática social dos indivíduos, os problematiza na medida que os relaciona com outros saberes e perspectivas; são os que se portam e se postam inconformados com as adversidades impostas socialmente à oportunidade de viver-se dignamente; são aqueles que fazem de sua ação, mais do que de sua fala - ainda que defendamos uma postura coerente que realize a expressão “eu faço a fala daquilo que eu faço” – a essência da educação.

Semeador de utopias viáveis, Freire nos convida a abrir os olhos, eu diria, a arregalarmos bem nossos olhos, mormente à luz da realidade na qual o País se encontra hoje. Estribado em três grandes esquemas filosóficos – o existencialismo, a fenomenologia e o marxismo – constrói seu alicerce teórico. De Hegel e Marx, extraiu o necessário para uma crítica da religião, da teologia, da filosofia e da própria alienação. Sucessivamente, fala-nos Carlos Alberto Torres, quase em fases diferentes, Paulo analisa as conseqüências sociais, políticas e pedagógicas das diversas formas de relação entre os seres humanos. Ele nos fala em “oprimido-opressor” (anos 50-60), em opressão “de classe” (anos 60-70) e opressão “de gênero e raça” (anos 80-90). No fundo, é perfeitamente clara a temática central que permeia toda a obra do mestre, ou seja, a vocação de todos nós para a liberdade.

Diante, enfim, do que afirmo nesta singela palestra espero, sinceramente, duas conclusões: o legado de Paulo Freire é consistente, profundo e o seu pensamento tem, sim, futuro. Se estivesse vivo, quanto mais nos teria deixado? No dizer de Torres, “... podemos ficar com Freire ou contra Freire, mas não sem Freire”.

Prof. Ms. Ary Carlos Moura Cardoso.