A missão da família cristã (SERMO XXIII )

A MISSÃO DA FAMÍLIA CRISTÃ

A antropologia vê no matrimônio a representação de uma função supra-individual, onde a união leva os esposos à constituição de uma sociedade, onde o amor e a transmissão da vida são colunas mestras. Nesse aspecto, sendo escola de humanismo, conforme vimos, é exigido da família o seguinte perfil:

a) formar uma comunidade de pessoas;

b) prestar serviço à vida;

c) prestar serviço à sociedade humana e

d) prestar serviço à Igreja.

A partir destas colocações, podemos concluir que, a despeito de seu papel como realidade humana, a família possui uma missão, desdobrada, quem sabe, em outras tantas. É sobre isso que falaremos neste tópico. O racionalismo pragmático deste final de século costuma criar estruturas de funcionamento para todas as instituições humanas, de acordo com seus critérios. Assim, aparecem as estruturas sociais com papéis bem definidos no concerto geral.

A família não escapa dessas tentativas de moldar comportamentos e de “fazer a cabeça”, como se os problemas das famílias de hoje pudessem ser nivelados por fórmulas acadêmicas, capazes de padronizar soluções. No bom senso, no desejo de crescer e nas normas da moral cristã é possível listar algumas obrigações atribuídas à família como missão.

1. Missão Social

Na sociedade, no mundo do socius, a família tem a missão de aglutinar as pessoas, tornando-se o exemplo modular de organização para o Estado, para a Igreja, para todos os estamentos sociais e demais instituições, pois a formação organizacional da família, como núcleo de reunião das pessoas, sob os mesmos objetivos e aspirações, é o mais antigo dos grupos humanos e, como tal, capaz de servir de parâmetro ético para os demais.

A vinculação que nasce do sentimento da consangüinidade e do afeto, mantém as pessoas de uma família agregadas entre si, de forma puramente afetiva, sem maiores interesses, pois sob a autoridade estratificada dos pais, funda-se um nível de autoridade social capaz de criar por si mesmo um nível hierárquico natural, sem imposições nem coações, que abarca todos os membros do grupo. As organizações hierárquicas do Estado, da Igreja e das instituições militares e civis, tiveram como modelo a hierarquia familiar, a partir das figuras amorosas do pai e da mãe que, por sua vez, são tipo da Trindade Santíssima, que é o modelo de todas as famílias.

Que fique bem claro que este estudo ora demonstrado, situa-se isoladamente no campo do social, como que pinçado de um complexo nó de relações, indissociável dos demais aspectos, apenas salientado de forma restrita para fins de um estudo sistemático. É sabido que o relacionamento entre um grupo de pessoas, máxime em uma família, jamais se realiza apenas em um determinado nível. Vamos tentar analisá-lo separadamente em cada uma dessas missões, a fim de completarmos no final.

Como missão social cabe à família mostrar como ser agrupamento de pessoas, com uma hierarquia simplesmente ordenada pela autoridade dos pais, dos mais velhos, numa pirâmide em geral formada por estes, no vértice e pelos mais jovens na base. Na sociedade, igualmente, essa pirâmide é vivida na visão econômica, com os ricos no topo, a classe média, como diz o nome, no meio, e os pobres formando a base.

2. Missão Psicológica

Como a psicologia é a ciência do conduzir-se, esta missão, talvez a mais complexa, dá ênfase especial à construção das pessoas. Se a missão social abordou apenas aspectos sociológicos do agrupamento de pessoas, a missão psicológica, contempla o comportamento das pessoas, o conduzir-se de cada um, o estudo de todas as individualidades que diferenciam os seres, de suas personalidades e o confronto delas, nos conflitos, nos ajustamentos ou na mera convivência.

A missão psicológica da família, como formadora da psique das pessoas, reveste-se de singular importância, uma vez que, conhecidos os desníveis de individualidade de cada integrante do grupo, cabe-lhe orientar, como força organizadora, que todos busquem a adoção de um comportamento aceitável e harmônico, criando mecanismos defensivos, no sentido de que os comportamentos individuais não se encaminhem para conflitos, mas para o ajustamento.

No relacionamento social estuda-se a pirâmide da autoridade. No psicológico, a pirâmide dos valores, das carências afetivas de cada um, bem como das necessidades. O abuso do poder social pode gerar traumas psicológicos, resistência à autoridade e à família como instituição.

Deste modo, se a missão social da família, é mostrar um modelo de organização em que valha a pena viver, a missão psicológica consiste em criar meios capazes de influir nos comportamentos, que possam fortalecer a aproximação, já não só física mas principalmente afetiva. O modelo social é meio estático, como uma velha fotografia. Já o psicológico é bem dinâmico, e se mantém acoplado ao social, pois possui mecanismos capazes de promover o encontro e a adaptação entre individualidades e personalidades dos membros do grupo, aparando arestas, evitando a percepção ou manifestação de conflitos.

Desta forma, a missão psicológica da família consiste em harmonizar diferenças, promover ajustes, visando, desta forma, uma condução adequada dos padrões de relacionamento entre as pessoas, com respeito aos direitos de cada um, com a interação de uns nas coisas comuns de todos, na autêntica terapia do afeto, buscando o crescimento de todos, e o fortalecimento da força nutritiva da família.

3. Missão moral

Nunca é demais repetir: coisa mais elástica e contestada em nosso tempo é moral. Os rígidos padrões das sociedades antigas, vêm hoje esbarrar numa nova concepção de moral, elaborada a partir de uma cultura interesseira de corte neoliberal, pintada com as cores vivas do oportunismo. Trata-se da nova moral, originária de transições psicossociais, como períodos de mudança social, como a revolução industrial, o após-guerra, a explosão demográfica, o surgimento de algumas classes emergentes, a influência dos mass media, e, por fim, a carência afetiva do homem deste final de século.

Os seguidores do movimento hippie da década de sessenta, influenciados pelos critérios da “new age”, após a guerra do Vietnã, onde o mundo se viu invadido por uma onde de misticismo, esoterismo e espiritualidade de evasão, decidiram trazer às claras debates que até então só eram tratados sob véus, como uso de drogas, uniões experimentais, homossexualismo, virgindade, aborto, mudança nos padrões morais, de vestimenta e de respeito às autoridades. Foi quando surgiu a divisa “É proibido proibir”.

Essas mudanças, encetadas a partir dos chamados “anos dourados”, refletiu-se na família, nos costumes e nas relações sociais. Na família, sob as crises econômicas, surgiu a mulher profissional, que foi obrigada a trabalhar e buscar assim melhorar o quadro de sustento do grupo familiar. Junto com o fato de trabalhar fora, ocorreu a chamada libertação da mulher, que passou a postular os mesmos direitos e a mesma liberação que o homem.

Uma nova visão de autoridade incidiu sobre as relações pais e filhos. Sem um acompanhamento mais de perto, e vencida pelos estímulos de um modelo permissivo, importado de países de primeiro mundo, a juventude passou a assumir posicionamentos menos rígidos e mais liberais em relação à moral tradicional.

Como conseqüência, muitos daqueles jovens, hoje adultos, trouxeram consigo uma considerável bagagem de tolerância, uma relativa ausência de senso crítico, uma expressiva liberalidade para assuntos de moral, passando a perquirir ou contestar valores, como virgindade, fidelidade conjugal, indissolubilidade do matrimônio, validade da família como núcleo, etc.

Tudo isso ajudou a gerar famílias, sob o ponto de vista dos valores, cada vez mais pobres, ocasionando amiúde, rupturas de relações, divórcio e outras anomalias, nem sempre percebidas pela anestesia do cotidiano, tudo vindo em prejuízo da função moralizadora da família. Não se quer invocar aqui critérios vitorianos de uma moral anacrônica. Postula-se, tão-somente, como uma das missões da família, e em especial da família que escolheu firmar seus alicerces sobre a rocha que é Cristo, o resguardo de uma moral condizente com aqueles padrões ético-cristãos que decorrem do Evangelho, como respeito à vida, à dignidade humana, à fidelidade aos compromissos assumidos, onde as pessoas são seres e não objetos.

Reconhecido o momento crítico em que vive, a missão moral da família é, portanto, testemunhar que os valores cristãos são efetivamente a chave de uma vida feliz, harmoniosa e salutar. Esse tipo de vida propicia às pessoas um estilo de vida normal, producente e honrado. Cabe à família, como vanguarda de um novo tempo, ser guardiã moral dos valores eternos, contidos na Palavra de Deus. Cabe a ela preservar o núcleo da revelação, onde o amor, o respeito e a unidade testemunham que essa vivência é capaz de orientar e indicar o real sentido da vida. É preciso testemunhar aos vacilantes que através dessa forma simples de viver, encontra-se mais facilmente a felicidade.

4. Missão Econômica

Qualquer tratado de macroeconomia nos mostra as famílias fazendo circular as riquezas, negociando com outras famílias e com o Estado. Nessa troca de energia, onde a família investe e recebe recursos, dá mão-de-obra e obtém trabalho, fica caracterizada a relação econômica da família com seu meio ambiente.

Esta afirmativa nos leva a concluir que, as riquezas econômicas do mundo, passam pelas famílias. Pelo menos por algumas delas. Nesse processo, os bens são gerados a partir das famílias que, trocam suas riquezas, completando o quadro produtivo da utilidade, onde cada um compra e vende, produz e armazena aqueles bens que necessita.

No terreno prático, vamos ver a missão econômica da família, como agente de uma circulação ética e ordenada de recursos. O tempo em que vivemos exige das pessoas e das famílias uma parcimoniosa política econômica, pois os recursos são escassos, via de regra corroídos por inflação, recessão ou políticas inadequadas, e as necessidades, excitadas pelos apelos publicitários, distanciam-se, cada vez mais, da realização.

Não é difícil ver ao nosso redor famílias em crise financeira, comprometidas pela má administração de seus membros, ou vítimas dos desajustes conjunturais, das crises econômicas, “pacotes”, leis absurdas, achatamento salarial, desemprego, etc.

A família carece de um ponderável equilíbrio para viver com aquilo que tem. Sem exageros nem futilidades já é muito difícil sustentar uma família hoje, em nosso Brasil subdesenvolvido, imaginem com sofisticações. É testemunho forte da família, a simplicidade, o exercício voluntário e constante de uma espiritualidade contra o materialismo, buscando conduzir seus membros àquela simplicidade evangélica, característica dos bem-aventurados.

A economia, o não ao esbanjamento, a simplicidade de vida, é testemunho cristão da família e missão pedagógica dos pais para os filhos e toda a sociedade. É preciso que os filhos, seja na família rica, de classe média ou pobre, saibam do esforço do trabalho, para assim darem valor ao dinheiro e aos bens. Quem não se conscientiza daquele esforço, nunca saberá valorizar o dinheiro que ganha ou ajunta. O filho que sempre recebe dos pais tudo o que pede, em mesadas, carros, motos e presentes, nunca saberá valorizar a dificuldade de obter aquele dinheiro, podendo passar por apertos, desajustes ou decepções quando, no futuro, não tiver o papai a patrocinar-lhe as despesas.

Ainda no terreno de seu compromisso econômico, a família precisa ter e passar aos demais a exata noção da partilha. Às vezes o que se desperdiça pode ser vital para a subsistência de alguém.. A comida desperdiçada em algumas mesas pode servir para matar a fome de muita gente. Conheço gente que não come à noite a comida do almoço; sempre há que ser feita comida nova. Suas sobras dariam para encher doze cestos, ou mais... E o pior: esses testemunhos negativos certamente influirão na construção de jovens e adultos fúteis, materialistas e insensíveis com a miséria dos outros.

O modelo social e econômico do Brasil é injusto. Cabe à família desenvolver a pedagogia da economia, partilhando, economizando, doando e ensinando. Assim os pais ensinam os filhos, e a sociedade também tira, desse ensinamento preciosas lições.

5. Missão Política

A política é a atividade dos leigos, por excelência. O mundo, diz o ensinamento da Igreja, é o campo de aplicação da política, mas tem na família seu berço e sua fonte de inspiração. Sendo a política o modo de organizar as relações dos grupos em sociedade, ela tem na família seu campo de cultura. É na família que brotam as vocações, sejam elas para a vida religiosa, para a vida familiar ou para o exercício político. Nesse particular, o amor, o respeito, a justiça e a participação sentida no lar serão determinantes para o fortalecimento daquelas atividades.

É certo que, de cidadãos bem formados e amadurecidos, é que se formam os políticos, na pura acepção da palavra, homens capazes de administrar a coisa pública, buscando sempre o bem comum e a defesa das instituições mais sagradas, entre elas a vida, o lar, a justiça, o respeito à pessoa e a indissolubilidade do vínculo matrimonial.

De tanto ver exemplos negativos, as pessoas costumam ligar a política com corrupção, politicagem, troca de favores, esquemas de sustentação, tráfico de influências, vantagens para elites e minorias. Política, no entanto, deriva-se do politiké, como ciência de sentir a necessidade do povo e lutar pelos interesses de todos. Infelizmente não é o que acontece, quando a corrupção explode em escândalos e trapaças, dando a entender que muita gente se dedica à política, não com vistas ao bem-comum, mas para enriquecer e obter lucros ilícitos.

O futuro do ser humano, é sabido, passa por dentro da família. O futuro da política também passa a se estruturar dentro – e a partir – da formação política da família, onde se exercita e se aprende o diálogo, o interesse e a participação, com vistas à realização de todos os membros. Política não pode ser sinônimo de demagogia e desonestidade, mas de defesa, interesse, preocupação. Só os critérios morais de uma família bem constituída são capazes de formar homens e mulheres voltados para a defesa do bem-comum.

Cabe à família, formadora de pessoas, a missão de formar bons políticos, gerando homens íntegros e capazes de fazer uma política sã e consciente. Se a família criar pessoas desinteressadas e sem ideais, a política desenvolvida por elas será capenga de significado comunitário, social e de justiça. Se gerarmos homens de bem, teremos amanhã bons políticos. Ao fechar-se, assumindo atitudes negadoras, eticamente reprováveis ou conformistas, a família nunca será geradora de agentes de transformação, mas de indivíduos céticos, medrosos, sem ação e vulneráveis à corrupção.

E assim, a família terá fracassado em sua missão política, e a sociedade se ressentirá, em diversos aspectos, dessa omissão pois “... há famílias que estão impedidas, por variadas situações de injustiça, de realizarem os seus direitos fundamentais” (FC 1).

No dia em que os homens de bem, formados nas famílias conscientes, assumirem seus lugares na política e na vida pública nacional, os maus políticos serão definitivamente banidos. É preciso que a família cumpra essa parte de sua missão.

6. Missão religiosa

A família já foi mais cristã do que é hoje. A crise religiosa de hoje é identificada a partir do instante que se constata que as pessoas buscam algo que as religiões tradicionais não estão sabendo prover. A religião é um dos núcleos fundamentais da identidade antropológica e pessoal de um povo. Quando a religião cega-se à dor do povo, para as pessoas com um pouco menos de entendimento, é como se o próprio Deus as estivesse rejeitando.

No Brasil, a era da cristandade se caracterizou pela fase da “religião oficial”, em que a chamada hierarquia religiosa e o poder civil (legítimo ou ilegítimo) eram comensais assíduos e recíprocos nas mesmas mesas, e ajudavam-se na sustentação um do outro. A Igreja fazia “vistas grossas” à corrupção e às torturas, e os governos, em contrapartida, eram generosos, subvencionando obras pias, patrocinando festas, aprovando feriados religiosos, e batizando logradouros públicos com o nome de clérigos eminentes.

Hoje, de certa forma, a espiritualidade das famílias foi sensivelmente esvaziada. Primeiro porque a emergência das ciências particulares desnudou consideravelmente o aspecto mítico com que o povo conduzia sua religiosidade. Também concorreu para esse esfriamento, o considerável distanciamento da Igreja, dos problemas da população, onde se ressalta uma Igreja mais mística, litúrgica e devocional, que profética e voltada para o homem como um todo.

Com o surgimento da reflexão bíblica à luz das lutas do povo, e o aparecimento das CEBs (comunidades eclesiais de base), houve como que uma cisão da Igreja do Brasil, na qual, de um lado, conservadores acusavam a outra facção de marxistas, enquanto os progressistas atribuíam, a seus adversários, uma postura reacionária. Esse debate durou décadas e não levou a nada. Esse discurso antagônico da época levou muitas pessoas a se afastarem da Igreja. Quem lucrou com essas dissensões e esses debates inócuos foram as seitas, sem dúvida. Teólogos, bispos, leigos e padres perderam muito tempo em discussões acadêmicas como, por exemplo, tentando conceituar ou estabelecer diferenças entre os pobres e os chamados pobres de espírito. E não chegaram a nenhuma conclusão válida. Enquanto isso a pobreza cresceu, se transformou em miséria e as seitas multiplicaram seus adeptos”.

Hoje a espiritualidade de algumas famílias, esvaziou-se, tornando difícil de encontrar uma família que se dedique continuamente à oração, seja à noite, pela manhã ou à hora das refeições. Vergonha? Falta de fé? Materialismo? Ou falta de tempo?

Em termos de espiritualidade e fé, a família tem uma missão indelegável que é a de formar uma comunidade de pessoas, prestar serviço à vida, buscar a conversão das estruturas da sociedade, e envolver-se ativamente na vida e na missão da Igreja, “...confundindo-se com esta, tornando-se escola de humanismo cristão e sendo, desta forma, educadora na fé” (LG 52).

O grande problema, talvez fator de tantos desvios, é que muitos não conseguem enxergar a grande missão salvadora da família. Como comunidade que se salva salvando, a família, na busca do ser Igreja, conduz seus membros, pela fé, a um estado maduro de quem ama a Deus e se compromete com o próximo. Assim como a família tem forças para encetar mudanças sociais e comportamentais no meio-ambiente onde atua, também tem essa força para influenciar certas mudanças no terreno religioso, especialmente no tocante ao aspecto da participação da família na Igreja.

Por sua própria vocação, a família é chamada, com todos os seus membros, a testemunhar uma vida nova, de fulcro religioso, no mundo, ao mesmo tempo em que traz os anseios e as expectativas do mundo, para o seio da Igreja, criando meios de fusão e alimentação recíprocos, transformando simples famílias humanas em projetos da “família de Nazaré”. Fiel à sua missão religiosa, a família deve assumir seu papel transformador, no mundo.

7. Missão profética

Para chegar ao homem como um todo, para forjar pessoas axiologicamente completas, a missão formadora da família deve ser, como as demais, integral, sob pena de não atingir seus objetivos. Deste modo, assumida com o múnus sacramental do batismo e do matrimônio, a missão profética é uma investidura da família de ordem humana e sobrenatural, fiel ao espírito de pertença à Igreja.

O profetismo moderno não está vinculado a adivinhações nem a predições do passado ou do futuro. Profeta, hoje, é a pessoa quem tem voz para dizer a verdade, anunciar o Reino de Deus e denunciar tudo que crie obstáculos à sua instauração. O cristão é convocado a ser profeta com a missão de testemunhar, anunciar, animar e denunciar.

A família cristã, nesse aspecto, tem como missão principal ser anunciadora da Boa Notícia do amor. Numa sociedade em que se cultiva tanto o egoísmo e a infidelidade generalizada, é preciso que os profetas tenham coragem de anunciar o perdão e a reconciliação, testemunhar o amor e a partilha, como base de uma união sólida e estável, como a aliança que Deus fez com os homens. No cumprimento da missão profética, a ação transformadora da família funciona como vanguarda para denunciar erros, armadilhas e artimanhas de uma sociedade egoísta e materialista, agindo como um sinal de salvação entre os homens.

No somatório de todas as missões da família, há que se ver sempre um mistério e um desafio. O mistério refere-se à presença de Deus, como sinal, no meio dos que se amam, e desafio, no sentido de que é preciso testemunhar, mostrar com a vida, como Deus age, de um lado confiando missões, e de outro, iluminando e fortalecendo com sua graça.

Na constituição de uma família cristã insere-se de forma privilegiada o Sacramento do Matrimônio. O que significa para nós esse sacramento? Uma festa com coreografias e pirotecnias próprias, em que todos se desejam felicidade para sempre? Ou ser, concretamente, em cada situação, a força de fazer frente a qualquer desafio? O matrimônio, por ser sinônimo de amor, fidelidade, mútua-ajuda, respeito e perdão, é um sinal claro, invisível e vigoroso do amor de Deus pelas pessoas. O sacramento-sinal da união de um homem e de uma mulher, a par de todas as graças de estado que confere, gera compromissos e estabelece missões irrevogáveis.

É comum encontrar-se em livros, seja de antropologia, psicologia ou sociologia, referências sobre a família humana, como celula-mater da sociedade. O ser humano, como “animal político” precisa agregar-se em uma sociedade, e a mais elementar, a primeira delas, é a família, onde ele, ao abrir os olhos, já está abrigado pela proteção de seus pais. Estas definições acadêmicas, embora calcadas na realidade psicossocial dos grupos humanos, são um pouco descuidadas, uma vez que as pessoas, a partir dos mais jovens, que apreciam viver, sem tentar definir a forma de vida, nem a constituição do mundo em que vivem.

O fato é que foi creditado ao papel original da família um papel agregador e acolhedor das pessoas. Isso, é claro numa família que cumpra seu papel, pois, e isso veremos adiante, hoje existem pessoas, infelizmente, que abrem os olhos no meio de estranhos, sem amparo nem afeto de espécie alguma.

A expressão “animal político”, oriunda dos filósofos gregos, determina um projeto de unidade social. Por política, aqui se entende a capacidade e o desejo da pessoa em agrupar-se numa polis, ou seja, um grupo, uma cidade, um segmento de convívio. Depois de nascer em uma família, o homem busca formar sua própria sociedade familiar, unindo-se a outra pessoa, com quem vai estipular as bases dessa nova sociedade.

Ao constatarmos o papel da família como construtora de pessoas, não só formação física, mas sentimental e psicológica, podemos dizer que da solidez do grupo familiar depende a estabilidade social de um povo e que, como conseqüência do paradigma familiar, desenha-se modelos para todo o tecido social. Uma sociedade, por somatório das famílias, terá as virtudes e os defeitos dos indivíduos que compõem os grupos familiares. O todo é reflexo da parte.

A família tanto influencia o meio-ambiente onde interage, como sofre influências dele. Assim como, fragilizada por uma série de percalços, a família pode sofrer a pressão negativa de um nicho social decadente, igualmente, uma família em desagregação moral leva à sociedade os frutos de sua dissolução. O que é a sociedade? Nada mais que a soma das famílias. O inverso, entretanto, também é verdadeiro.

Uma família bem constituída, que prime pelos postulados do amor, da ética e da moral, cujos membros se amem e sejam fiéis aos seus projetos, tem condições de testemunhar o valor do amor e a viabilidade de uma vivência comprometida e participativa. No entanto, é imperioso que as famílias estruturadas se organizem a partir de objetivos comuns, a fim de fazer frente a tantos problemas e agressões de forças que se aliam contra a estabilidade do amor, do respeito e da vivência familiar.

Pessoas, em geral artistas, ricos ou pseudo-intelectuais, aparecem nos meios de comunicações, pregando o amor livre, a “amizade colorida”, a ambigüidade sexual, a união provisória, o descompromisso e a irresponsabilidade com a vida, pois essa é uma realidade de suas vidas, e nada mais querem que, nivelando por baixo, tornar a sociedade semelhante a seu deteriorado modelo de vida.

Contra esses falsos modelos precisamos lutar. E lutando, cabe-nos questionar: que modelo de família e sociedade legaremos às gerações futuras se, diante de nossos olhos atônitos, perante nossos braços cruzados e, principalmente, frente à nossa indiferença, a família se desfaz, perde a consistência e nós, imaginando que em nossa casa tudo vai bem, achamos não ter nada com isso? E a casa está caindo...

De uns tempos para cá se escuta com bastante veemência afirmações a respeito da falência da família como instituição linear. Na verdade, entendemos que a família, em si, como união de vontades e encontro de pessoas não esteja em crise como conjunto. O que se vê, e bastante, são pessoas afetivamente inconsistentes, que se jogam de uma forma irresponsável e existencialista, a uma busca de sensações espetaculares, intensas, mas transitórias e que, após, um ponto alto, caem vertiginosamente, criando uma sensação de vazio que as levará à busca de novas tentativas, novas emoções.

Nesse particular, a falência que se verifica não é da família ou do matrimônio, enquanto sacramento, mas de algumas pessoas que, não têm uma maturidade afetiva, mas puramente instintiva, e como tal egoísta. Ora, se formos juntar um grupo de pessoas incompetentes e desinteressadas para compor uma empresa, o que teremos? Logicamente um fracasso! Isto ocorre por quê? Porque aquelas pessoas levarão para o empreendimento sua incapacidade. E não é bem assim que acontece num matrimônio ou na constituição de uma família?

Se juntarmos duas pessoas, moral e afetivamente falidas, que já vêm de famílias deterioradas, indiferentes ou imersas em crises morais, e quisermos formar com eles uma família, o que teremos? Seguramente, com raríssimas exceções, um fracasso. Esse casamento experimentará a falência, devido à falência daqueles que o constituíram. Duas pessoas egoístas, que só vivem pelo instinto e pelo interesse material, que são incapazes de um gesto nobre de acolhida, renúncia, perdão ou fidelidade a valores, poderão construir o quê? Nada!. Essa união será um desastre total! Pessoas falidas geram lares falidos.

Agora, se duas pessoas cultivam o amor, não aquele amor que os hedonistas fazem, cada dia com um parceiro diferente, mas um amor profundo, sério, comprometido, do qual o sexo integra como parte e não como essência, um amor rico em partilha de sentimentos, pleno de encontros, repleto de gestos de generosidade, desse amor irão colher a base que irá concretizar seu matrimônio e seu lar. O desejo de felicidade pode ser o mesmo, mas a forma de obtê-la é diferente.

É preciso que se encare o convívio e o diálogo como um investimento em prol do amor e da estabilidade do casamento. As horas que a família passa junta, são horas de construção e ajustes. Muitas vezes, a infidelidade de um cônjuge, a rebeldia de uma criança ou o desajuste de um jovem, tem razão de ser na falta de um clima propício no lar, adequado ao crescimento e ao amadurecimento. Este é um dos mais caros ônus que a família pode suportar: concluir que não concorreu para a construção de seus membros.

Um grande papel desagregador das famílias é representado, entre outros, pela televisão. Embora ela tenha muita coisa boa, como esportes, notícias, filmes (alguns) e cultura, de outro, ela exibe com esmerada técnica, uma nova moral, deficiente, de valores negativos, capazes de derrubar princípios vacilantes ou não muito sólidos.

Os meios de comunicação no Brasil, e em especial as novelas de tevê, pregam um amor diferente. A maioria de nossas produções artísticas ou “culturais” formam um “caldo de cultura” onde brotam a superficialidade, a fantasia e o erotismo barato e deslavado. É o amor-instinto, em que o sexo é o ápice de tudo, sem ligar para valores, sentimentos ou moral.

É interessante observar que a própria televisão mostra, pela incessante troca de parceiros nas novelas, e de muitos artistas e diretores na vida real, que essa prática não os torna felizes, resultante, não-raro, de tragédias, onde a realidade excede a ficção, como no caso de uma escritora que levou o personagem a uma exacerbação erótica tal, que saindo do set de gravações, ele matou a jovem que o enlouquecia.

Por uma trágica coincidência, a artista morta era filha da escritora. E o pior é que as novelas de televisão tornaram-se forjadoras da cultura da grande parte da classe média e baixa em nosso país. Grandes vítimas dessa inculturação e esfacelamento da moral são as crianças. Longe de proibir, a solução seria assistir a televisão com olhares mais críticos, dissociando a fantasia da realidade, o sonho do fato concreto.

Também o aspecto econômico, em muitos casos, atenta contra a estabilidade da família. Na busca do conforto, ou do simples ter mais, muitos pais e mães empenham-se em trabalhar mais, estudos, viagens e obtenção de postos funcionais, e isso vai, aos poucos - embora os envolvidos neguem - quebrando a unidade da família, afastando marido e mulher, pais dos filhos que poderá conduzi-los, anos mais tarde, a uma bela residência, casa na praia, dois ou três automóveis, dinheiro no banco, mas também, uma enorme crise de aproximação, afetividade e até de fidelidade. Podem estar com dinheiro, com titulação e satisfação material, mas indiferentes, hostis, competidores entre si e - em muitos casos - separados.

Os mestres da psicologia afirmam que a família é formadora de pessoas desde que ela seja ninho e paradigma de valores, onde surge, privilegiadamente, o amor. A nossa família, a minha, a sua é assim? Para ser construtora ou reorganizadora de uma sociedade de bases sólidas, a família precisa criar, em si e para si, mecanismos de defesa contra os golpes do consumismo, do egoísmo, do individualismo e do hedonismo que, diariamente, sopram contra ela.

A família como construtora de pessoas não é, tão somente aquela que alimenta, veste e abriga as pessoas. É preciso formar indivíduos aptos à vida, à sociedade, ao amor e à cidadania. Os filhos jamais saberão desenvolver hábitos marcantes se não os observar essa prática nos pais. Só se aprende a amar amando e sendo amado. Este é o top da família cristã: ensinar a amar e desenvolver esse sentimento entre seus membros em quaisquer circuntâncias.

Junto com a formação das pessoas, a família educa na fé, prepara para a cidadania, inculca valores morais e testemunha sua prática, e, sobretudo, funciona como uma atuante escola do mais rico humanismo. Assim, além de ser construtora de pessoas, a família, pela vivência dos valores característicos de seu múnus, torna-se promotora do mais significativo e abrangente desenvolvimento.

Meditação realizada na abertura do II Encontro Ecumênico das Famílias, em Recife (PE) em novembro de 2008.

Antônio Mesquita Galvão é Doutor em Teologia Moral, escritor, autor, entre outros, dos livros “A casa sobre a rocha”. Ed. Vozes, 1999, 2ª edição, e “A família modelo. Uma reflexão teológica sobre a marcha da família”. Ed. Loyola, 1988.