A MÚSICA COMO FATOR DE REGULAÇÃO SOCIAL.

A música, criação da inteligência e sensibilidade humana, teve desde épocas mais remotas funções de regulação social. Parece contraditório. Porém, observando com minúcia certas passagens, vamos chegar a estas conclusões.

Música na Grécia Antiga,Idade Média e Renascimento, aspectos da contradição

Iniciamos nossa partitura musical na Grécia Antiga. No período do apogeu da arte, da filosofia e da democracia, Platão, em seu livro A República, dedica sua parte final a tecer comparações entre as notas musicais e os sete planetas conhecidos na época. Teoria que recebeu o nome de “harmonia das esferas”.

Em sua argumentação, Platão dizia que a música devia perseguir uma harmonia perfeita, semelhante ao Cosmos. Qualquer dissonância seria percebida como desarmonia do estado ideal.De certo modo, havia uma analogia ao processo político e histórico corrente.

Avançando mais, em nossa viagem pelos tempos, chegamos à Idade Média e seu obscurantismo. Era época de supremacia da Igreja e o cânone a ser obedecido era o sacro. Os desvios desta rota custavam, por vezes, a vida dos infratores.

Nesta época, no terreno da música, surge o canto gregoriano. Modalidade coral, praticada em mosteiros, o canto gregoriano ou cantochão, visava à música celestial, dentro do padrão da harmonia das esferas.

No entanto, um detalhe de diferenciação. Os modos musicais anteriores, chamados modos litúrgicos, em determinadas escalas musicais, tinham um brilho quase festivo, profano.

Por exemplo, o intervalo de si-fá produzia um tritono, isto é uma combinação sonora desagradável. Tanto que recebeu o nome de “diabolus”. Este intervalo era sonoramente ignorado no canto gregoriano.Feria a harmonia das esferas, das estruturas medievais vigentes.

E , assim, a música seguiu seu curso no Renascimento. Participando de atividades nas cortes européias, homenageando nobres e reis. Falando de mitologia e episódios distanciados da cultura popular da época. Como se pode ver, quase sempre a serviço das classes dominantes.

Neste momento, fazemos um corte histórico e geográfico e vamos desembarcar no Brasil do Século XX, objeto central de nosso estudo.

Saímos do ambiente da música erudita e vamos percorrer as trilhas do cancioneiro popular. Nosso enfoque, abarcará o panorama sócio-cultural e político da época que se inicia em 1917 e chega ao golpe militar de 1964. Verificaremos a oscilação entre consciência política e alienação. Então, passamos aos fatos.

Música e Sociedade no Brasil do Século XX – aspectos principais

No livro “A Invasão Cultural Norte-americana”, Júlia Falavine Alves, nos traz a seguinte informação : até 1917, a música popular, no Brasil era principalmente o samba carioca. Em geral, este era de autoria coletiva. Em 1917, com a gravação do “hit” “Pelo Telefone”, criado por Donga, sambista carioca, nasceu a autoria musical com registro e direitos autorais, como conhecemos hoje.

Pouco depois, surgiu o rádio no país. Algumas gravadoras norte-americanas como RCA Victor e Odeon, viram neste advento uma oportunidade comercial e consolidaram seus negócios no Brasil.

Em 1930, adentramos no Estado Novo. Neste primeiro governo getulista, o Estado impôs severa censura local. No entanto, à parte disso foi simpático em relação a artistas como Carmem Miranda e o Bando da Lua que exportavam uma imagem de um Brasil feliz, harmônico e caricato.

Outro expoente da época, Ary Barroso, compôs sambas-exaltação que alcançaram inegável sucesso. A canção “Aquarela do Brasil”, com sua letra ufanista e música grandiosa, reforçou a tese de harmonia coletiva. O Brasil, então era terra de...

“fontes murmurantes/aonde a lua vem brilhar/ país lindo e trigueiro/terra de samba e pandeiro”

Vargas, inteligentemente, aproximou-se do meio cultural, inclusive do maestro Villa-Lobos.Neste período, houve incentivo a um projeto do artista : o canto orfeônico. Deste modo, quase todas as escolas brasileiras tinham o seu coral que se apresentava em diversas cerimônias cívicas. Conta-se que , em 1940, o maestro regeu cerca de 40 mil escolares, numa mostra de canto orfeônico, no estádio do Clube de Regatas Vasco da Gama.

A música ganhava seu contorno grandiloqüente e, inadvertidamente, servia a um regime de exceção. Este filme iria ser assistido,de novo, mais adiante...

Década de 50. Anos Dourados e Guerra Fria no tabuleiro mundial. Dois jogadores : Rússia e EUA e seus aliados. Tempo de musicais ”made” em Hollywood. Nomes como Frank Sinatra, Dean Martin, Fred Astaire e outros tantos. Dominação cultural maciça.

Em contrapartida, o apogeu do samba-canção. Era das “Cantoras do Rádio” : Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Marlene e o eterno Cauby Peixoto. Letras sentimentais em melodias adocicadas. No Sul, Lupicínio Rodrigues criava o samba-fossa com suas letras falando de traição, dores sentimentais, como na conhecida Matriz e Filial, que assim bradava :

“quem sou eu/pra ter direitos exclusivos sobre ela/se eu já não posso suportar os sonhos dela/se nada tenho/e cada um dá o que tem.”

Metade da década, o rock de Elvis Presley e Chuck Berry inundava o mundo. Em contraponto,um grupo de músicos e letristas cariocas,da Zona Sul , oriundos da classe média-alta, criavam as bases da bossa-nova.

Coincidente com a fase jucelinista, dos “50 anos em 5”, a Bossa-Nova era moderna, mesclava a tradição do samba com sofisticadas harmonias do jazz. Era um produto “made in Brasil”.

Este movimento sacudiu o Brasil e o mundo. Capitaneado por músicos como Tom Jobim, João Gilberto,Roberto Menescal e poetas como Vinícius de Moraes, se contrapôs musicalmente à mesmice melódica/harmônica até então.

Entretanto, as letras, longe de serem panfletos revolucionários, reverenciavam o amor, a flor e as belezas do Rio de Janeiro. Fiquemos com estes exemplos :

“Fotografei você/com minha Roleyflex/revelou-se sua imensa ingratidão” – Chega de Saudade.

“Da janela/ vejo o Corcovado/ o Redentor/ que lindo” – Corcovado.

Já mais próximo de 1964 e, principalmente, nos primeiros anos da ditadura militar, iriam surgir jovens identificados com os Centros Populares de Cultural (CPC) como Vandré, Marcos Valle, Edu Lobo que com a força de suas poéticas tentavam reverter o abismo cultural e humano que o Brasil adentrava.

No entanto, este é um assunto para um próximo capítulo. Por ora, deixemos cantar em nosso palco mental o poetinha Vinícius de Moraes , em uma de suas mais geniais criações :

“olha que coisa mais linda/mais cheia de graça/e ela menina que vem e que passa/num doce balanço/caminho do mar”

Bibliografia consultada

A invasão cultural norte-americana – Júlia Falavine Alves

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O som e o sentido – Jose Miguel Wisnik

O pensamento vivo de Villa-Lobos – João Carlos Ribeiro

Cultura e participação nos anos 60 – Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves