WITTGENSTEIN E OS JOGOS DA LINGUAGEM: um estudo introdutório

WITTGENSTEIN E OS JOGOS DE LINGUAGEM: um estudo introdutório*

À talentosa e atenta leitora do nosso Recanto,

ANA CÔRTES.

Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena, em 26 de abril de 1889. A família proporcionou-lhe uma formação intelectual exemplar. O músico Brahms era amigo íntimo da casa; Ravel escreveu o “Concerto para a Mão Esquerda” a um dos irmãos de Ludwig, e o futuro filósofo hesitou entre se tornar engenheiro ou maestro de orquestra.

Wittgenstein ingressa na Escola Técnica de Berlim, para, uma vez concluído o curso, em 1908, seguir rumo a Manchester, cidade inglesa na qual exerce a profissão de engenheiro aeronáutico. Ocupado com questões atinentes à propulsão e reação, além das implicações sobre o referido tema, por fim, Wittgenstein passa a se interessar pelos fundamentos lógicos da matemática. Visita, então, F.L. Gottlob Frege, em Iena, que lhe aconselha a se juntar ao grupo de estudos de Bertrand Russel, em Cambridge. Com o advento da I Guerra Mundial, Wittgenstein engaja-se no exército austríaco. Ao final do conflito, retorna à Áustria, em 1919. Por esta ocasião, Frege e Russel recebem uma cópia da obra wittgensteiniana “Tractatus Lógico-Philosophicus”. Em princípios de 1929, devido aos insistentes apelos de Russel, Wittgenstein retorna a Cambridge, no intuito de obter o título em pós-graduação. A situação de Wittgenstein, na qualidade de aluno, era bastante estranha a todos, visto que muitos já o consideravam como a maior autoridade viva no que se referia à Filosofia Analítica daquela época, de modo que alguns arranjos foram improvisados, para que fosse concedido - em junho de 1929 - a Wittgenstein o título de doutoramento. A partir desta data, a vida de Wittgenstein circula em torno de Cambridge, entre ministrar aulas e proferir conferências. Algumas viagens à Irlanda e aos Estados Unidos e a elaboração da última obra “As Investigações Lógicas” (a qual Wittgenstein desejou, expressamente, que só fosse publicada após sua morte) precederam sua morte em Cambridge, em 1951. Suas últimas palavras foram as seguintes: “_ Diga-lhes que tive uma vida maravilhosa.”

SIGNIFICADO E USO

“Não se indague qual é o significado duma palavra; indaga-se qual é o seu uso.” (L. Wittgenstein)

Caso perguntemos a alguém qual é o significado de uma palavra, geralmente obtemos, como resposta, que isto dependerá do contexto. Como exemplo, tomemos o dicionário. Nele encontramos uma grande variedade de palavras associada a diversos contextos, visto que é, muitas vezes, impossível oferecer o significado de uma palavra sem a sua devida contextualização.

Assim, no dicionário, é típico o significado de uma palavra ser explicado por um ou mais sinônimos. Porém, o significado de uma palavra nem sempre é explicado por meio de sinônimos. Isto se explica na medida em que o significado já se supõe conhecido pela pessoa que se propõe a buscá-lo. Por outro lado, o significado da palavra pode ser explicado mediante longas definições, todavia, restritas às limitações contextuais, bem à maneira das que nos oferecem os dicionários. Nesse caso, o vocabulário dicionarizado não nos oferece o verdadeiro ponto de partida, para que possamos estabelecer os princípios da nossa presente reflexão.

Posto isto, e objetivando não problematizarmos em demasia a questão do significado, convém logo citarmos a célebre fórmula de Wittgenstein, inscrita nas páginas das “Investigações Filosóficas”:

“Pode-se, para uma grande classe de casos de utilização da palavra ‘significação’ – se não para ‘todos’ os casos de sua utilização -, explicá-la assim: a significação de uma palavra é seu uso na linguagem.

E a ‘significação’ de um nome elucida-se muitas vezes apontando para o portador.” (Wittgenstein 1989, p.28)

Nota-se, na citação acima, que o terno “uso” não é mais claro do que o termo “significado”, mas a substituição de um pelo outro tem o efeito de desviar nossa atenção quanto à tentativa de definirmos o significado em termos de significação.

Sobre tal temática, os exemplos apresentados por Wittgenstein, em “Investigações Filosóficas”, acentuam que o referido filósofo considerava os “usos” - que se fazem das palavras na língua - são de tipos bastante variados. Entretanto, partimos do pressuposto de que Wittgenstein jamais pretendeu lançar qualquer “teoria do uso”. Todavia, talvez possamos extrair da afirmação acima de Wittgenstein alguns princípios de grande validade para o presente estudo. São eles:

1. que o único controle empírico que temos quanto ao estudo da língua é o uso dos enunciados nas multifacetadas situações da vida cotidiana;

2. que expressões, tais como, “o significado de uma palavra” e “significado” de uma frase ou de uma oração, podem, perigosamente, induzir-nos a erros, na medida em que elas nos remetem a buscar os “significados” que possuem, além de identificar os “significados” com entidades tais quais os objetos exteriores; com os conceitos de nosso espírito etc.

3. que, uma vez abandonado o ponto de vista de que o “significado de uma palavra” é o que ela “significa”, reconhecemos, naturalmente, que se devem estabelecer relações de espécies diversas para a explicação de seu “uso”.

Partindo de tais pressupostos, e na trilha do pensamento de

wittgensteiniano, além de abandonarmos o ponto de vista segundo o qual o “significado” de uma palavra é o que ela “significa”, e o que ela “significa” transfere-se, num certo sentido, do falante para o ouvinte, no interior do processo de comunicação, estaremos, então, aptos a aceitar que é desnecessário admitir que as palavras tenham um significado plenamente determinado, bem como que o uso da língua, em situações normais, seja explicável por meio da hipótese bastante fraca de que os seus falantes chegaram a um acordo suficiente sobre o uso das palavras.

JOGOS DE LINGUAGEM

Como já pudemos constatar anteriormente, Wittgenstein não se preocupou em criar uma “teoria do uso”. Todavia, pensamos que a elaboração wittgensteiniana do conceito de “jogos de linguagem” está intimamente ligada ao que poderíamos classificar de teoria do significado como uso. Com efeito, nos primeiros parágrafos das “Investigações Filosóficas” evidencia-se tal aspecto, como segue adiante:

“Na ‘práxis’ do uso da linguagem (2), um parceiro enuncia as palavras, o outro age de acordo com elas; na lição de linguagem, porém, encontrar-se-á ‘este’ processo: o que aprende ‘denomina’ os objetos. Isto é, fala a palavra (...) Podemos também imaginar que todo o processo do uso das palavras em (2) é um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua língua materna (...) Pense os vários usos das palavras ao se brincar de roda (...) Chamarei também de “jogos de linguagem” o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada.” (Wittgenstein 1989, p.12)

Nestas primeiras considerações, além d’outras semelhantes no decorrer das “Investigações...”, Wittgenstein define “jogo de linguagem” como uma combinação de palavras, de atos, de atitudes ou de formas de comportamento que possibilita a compreensão do processo de “uso” da linguagem em sua totalidade. Desse modo, concernente à citação acima, é por meio de “jogos de linguagem” que os indivíduos aprendem, na infância, a usar certas palavras ou expressões. Na verdade, o indivíduo não aprende apenas uma palavra ou uma expressão, mas um “jogo de linguagem”, e completo; noutras palavras, aprende como usar determinada palavra ou expressão lingüística, num contexto determinado, visando obter fins. Wittgenstein aponta para inúmeros “jogos de linguagem” que permeiam nossa prática social diária, tais como, ordens; pedidos; perguntas; respostas; descrições; pedido de desculpas etc., que podem possuir entre si apenas uma “semelhança de família”:

“ (...) - Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiro, com seus múltiplos parentescos. Agora passe para os jogos de cartas: aqui você encontra muitas correspondências com aqueles da primeira classe, mas muitos traços comuns desaparecem e outros surgem (...) Pense agora nos brinquedos de roda: o elemento de divertimento está presente, mas quantos dos outros traços característicos desapareceram! E assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver semelhanças surgirem e desaparecerem.”

(Wittgenstein 1989, pp. 38-9)

Logo em seguida, Wittgenstein continua, afirmando o seguinte: “Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que com a expressão ‘semelhança de família’ (...) E digo: os ‘jogos’ formam uma família.”

Retrocedendo algumas páginas, no que se refere à leitura das “Investigações Lógicas”, encontramos o seguinte argumento:

“Pode-se representar facilmente uma linguagem que consiste apenas de comandos e informações durante uma batalha. - Ou uma linguagem que consiste apenas de perguntas e de uma expressão de afirmação e negação. E muitas outras. - E representar uma linguagem significa representar-se uma forma de vida.” (Wittgenstein 1989, p.15)

Nesse caso, constatamos, segundo Wittgenstein, que um “jogo de linguagem” é uma forma de atividade social; noutras palavras, ele procede de “uma forma de vida”. Desse modo, ao fazermos uso da linguagem, estamos agindo num contexto social, e nossos atos somente serão significativos e eficazes porque deverão corresponder às determinações das “formas de vida”, das práticas e das instituições sociais, pois, com efeito, continuamente operamos com a linguagem ao jogarmos “jogos de palavras”.

A comunicação pressupõe que todos nós “compreendemos” as palavras da mesma maneira. Ainda que um enunciado revele-se falso, logo em seguida, de uma maneira geral, admite-se a “compreensão” em nossas “mentes”; quando falamos aos outros, é uma questão que se pode decidir senão pelo “uso” que fazemos das palavras nos “enunciados”. Nesse sentido, o significado das expressões não depende, essencialmente, das intenções dos falantes, mas, na verdade, as intenções são formadas e tornadas possíveis - elas próprias - por meio dos hábitos, das práticas e das instituições de uma comunidade lingüística, pois,

“(...) A intenção [de pronunciar palavras] está inserida na situação, nos hábitos humanos e nas instituições. (...) Pensar não é nenhum processo incorpóreo que empresta vida e sentido ao ato de falar, e que pudéssemos separar do falar...” (Wittgenstein, 1989, p.113)

Rompe-se, portanto, com Wittgenstein, a tradição filosófica predominante que considera a linguagem como meio por intermédio do qual se descreve o mundo ou se interpreta a realidade. A linguagem deve ser vista, consoante o referido filósofo, como o modo por excelência de agirmos no mundo, isto é, de interagirmos socialmente numa comunidade. Como insiste Wittgenstein, se as palavras não podem ser entendidas fora do contexto das atividades humanas não lingüísticas, mas somente junto às determinações que as rodeiam, é nisto, precisamente, que se constituem, portanto, os “jogos de linguagem”.

Com base no exposto acima, convém, aqui, examinarmos mais detidamente como a teoria do significado como uso, em Wittgenstein, está estreitamente ligada ao conceito de “jogos de linguagem”. A título de ilustração, podemos nos apoiar no clássico aforismo wittgensteiniano de que as palavras são como ferramentas ou “the metaphor of words as instruments or tools is one of Wittgenstein’s favourites.” – como bem observou o filósofo inglês J.L. Austin. Suas funções diferem entre si tanto quanto um martelo de uma marreta; de uma serra circular; de um serrote etc. Entretanto, as diferenças quantos às funções das palavras encontram-se ocultas pelas similaridades de suas aparências faladas e escritas. De um modo similar, um martelo assemelha-se à uma marreta, todavia, as funções de ambos são diferentes. Por conseguinte, a maneira de entender o significado de uma palavra é estudá-la no “jogo de linguagem” ao qual ela pertence; observar como a palavra contribui no uso comum de um grupo de indivíduos pertencente a um só idioma. Nesse sentido, o significado de uma palavra não é o objeto que a palavra representa, mas seu uso na linguagem. Assim, o conhecimento de uma língua, a competência lingüística, a capacidade de participar de “jogos de linguagem” fornecem-nos o horizonte de nossa visão da realidade, o pano de fundo do nosso comportamento, tanto do ponto de vista de nosso agir quanto do ponto de vista de nossa capacidade de interpretar o significado dos atos dos outros membros da comunidade, além da maneira pela qual eles se relacionam conosco.

Diante do exposto acima, evidencia-se que, consoante Wittgenstein, a linguagem ordinária é o elemento mais originário de nossa experiência, pois constitui seu horizonte e é um pressuposto de nosso comportamento.

Por outro lado, o estudo dos “jogos de linguagem” demonstra-nos que nem todas as palavras são nomes, porque o fenômeno de nomear nem sempre é tão simples quanto parece. Para nomear algo não basta encontrarmos um objeto e nomeá-lo, proferindo um som. Perguntar ou dar nomes é algo que só se pode fazer no contexto de um “jogo de linguagem”. Entretanto, tudo se complica muito mais quando nos deparamos com as palavras que se aplicam para nomear estados mentais, tais como: as sensações e os pensamentos. Nesse sentido, Wittgenstein estuda o modo como uma palavra (por exemplo, “dor”) funciona para nomear uma sensação. Assim, nos sentimos tentados a pensar que, para cada pessoa, “dor” adquire seu significado, relacionando, desse modo, a palavra “dor” com a vida privada:

“Linguagem privada, ou pessoal, não é uma linguagem que de fato seja falada e compreendida por uma só pessoa (...) a linguagem privada, para Wittgenstein, é uma linguagem que não pode ser entendida por outro sujeito, a não ser o seu próprio criador, porque as expressões dessa linguagem se referem às vivências interiores pessoais desse criador. ” (Stegmüller 1977, p.490)

Wittgenstein afirma que não devemos cair nessa tentação, porque nenhuma palavra pode adquirir significado por intermédio de tal procedimento. Este é o argumento mais famoso de Wittgenstein contra a linguagem privada. E a conclusão desse ataque é a de que não pode existir uma linguagem cujas palavras refiram-se apenas ao que pode ser conhecido pelo falante dessa linguagem.

A análise da linguagem converte-se, assim, em terapia, constantemente procurando dissolver qualquer discurso que, abusando de sua significação, pretenda adquirir um caráter dogmático, algo, aliás, bastante característico no que se refere à linguagem filosófica:

“Mas não é o nosso ‘ter em mente’ (Meinen) que dá sentido à frase? (E aqui cabe naturalmente a observação: não se pode ter em mente séries de palavras sem sentido.) E o ter em mente é algo do âmbito psíquico. E é também algo privado! É algo impalpável, comparável apenas com a própria consciência.

Como se poderia achar isso ridículo! É como que um sonho de nossa linguagem.” (Wittgenstein 1989, p.118).

Consoante a citação acima, encontramos em Wittgenstein esta idéia tanto dos limites de nossa experiência quanto de nossa possibilidade de interpretar e de questionar tal experiência. Nesse sentido, se a compreensão da realidade e a certeza dessa compreensão é sempre entendida por meio de uma “forma de vida”, nossa visão de mundo possui, então, um caráter normativo. Por conseguinte, não há a possibilidade de justificações totais, absolutas, pois as justificações sempre dependem de uma determinada prática ou de um determinado modo de agir. Embora, os atos realizados por um indivíduo em um “jogo de linguagem” possam ser justificados ou até mesmo questionados, por meio das considerações wittgensteiniana, os “jogos de linguagem”, como um todo, resistem a toda tentativa de justificação última, pois é nesses “jogos de linguagem” e nas formas de vida que os constituem que se encontram, em última instância, os critérios de validade dos atos e, por extensão, de sua justificação. Assim, a linguagem ordinária transcende a possibilidade de fundamentação. Nesse caso, vale aqui ressaltar uma das mais célebres proposições de Wittgenstein, a qual sentencia o seguinte: “O que não se pode falar, deve-se calar.”

“JOGOS DE LINGUAGEM” E O USO DA PALAVRA “LIBERDADE”

Iluminar, ilustrar, esclarecer, fornecer as “Luzes”: a luz, essa metáfora da razão - desde Platão (século IV a.C) -, torna-se, no século XVIII, a grande palavra de ordem. Na Inglaterra, na Itália, na França ou na Alemanha, proliferam idéias em nome da liberdade, que, se não se agrupam num só movimento, possuem a mesma intenção: combater o seu oposto, isto é, as trevas e os obscurantismos – sejam eles filosóficos, religiosos, morais ou políticos.

Acordados com a linguagem da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, a partir de 1789, sobretudo na França, os homens nascem e permanecem livres e iguais em seus direitos. Desse modo, a palavra “liberdade” surge na lista dos direitos naturais. O homem nasce livre e, em todo lugar, está acorrentado, afirma um irado Jean-Jacques Rousseau. “Grosso modo”, a “Declaração...” procede tanto das teorias do “Contrato Social” como da aurora da promessa de liberdade propagada pela independência das colônias norte-americanas, evocando a palavra “liberdade” como condição dos seres humanos vivendo em sociedade, e como princípio paradigmático no que se refere às instituições que regulam a vida coletiva. Entretanto, se a palavra “liberdade” nasceu no singular, por qual razão, preferimos, atualmente, falar em liberdades? Neste ponto, estabelecemos, no presente estudo, um problema preliminar: que significa literalmente a palavra “liberdade”?

Liberdade é um termo vago. Porém, pelo fato de ser vago não o torna menos importante para nós. No entanto, acreditamos que tais afirmações nos sugerem, ainda que breve, um exercício de análise.

Vimos que, segundo Wittgenstein, as expressões lingüísticas têm significado apenas nos diferentes “jogos de linguagem”, que são formações complexas de linguagem e de ação. Dotadas de uma “gramática” e localizadas nos “jogos de linguagem”, tais expressões ou atividades obedecem a determinadas regras, isto é, o aprendizado de uma linguagem natural exige, por parte do aprendiz, que ele venha a compartilhar de uma prática social ou de critérios determinados rumo à efetividade da comunicação. Assim, para se compreender como o comportamento pode ser significativo, faz-se necessário interpretar as estruturas de nossa existência diária, que devem ser consideradas como estruturas de “jogos de linguagem”, e não de consciência, como determina a filosofia tradicional. Portanto, a tarefa do filósofo, quanto à análise da linguagem, tal qual determina o conceito de “jogos de linguagem” wittgensteiniano, é procurar explicitar os componentes das referidas estruturas, revelando, com isso, suas relações com as formas de vida, com determinados conjuntos de crenças, de valores e de interesses que habitam uma realidade social.

Após tais considerações, no que se refere a outro ponto de investigação do presente estudo, isto é, o de examinar um tipo de problema no uso lingüístico da palavra “liberdade”, retornemos à questão anteriormente formulada, com a finalidade de melhor avaliá-la, que consiste no seguinte: que significa literalmente a palavra “liberdade”? Poder-se-ia dizer que estamos nos afastando do pensamento filosófico de Wittgenstein de análise crítica da linguagem ao interrogarmos pelo significado da palavra “liberdade”. Não é verdade, porque consoante o espólio wittgensteiniano, pensamos que definir os significados de “liberdade” nos dias atuais, após dois séculos da Revolução Francesa, equivale a interrogar sobre as diversas transformações do sentido da palavra “liberdade” em seus múltiplos usos. Se a linguagem, como afirma Wittgenstein, funciona em seus usos, não cabendo indagar sobre o significado, mas sobre as funções práticas, então, numa correção de rumos, convém, aqui, não indagarmos sobre o significado da palavra “liberdade”. Descartemos, portanto, esta alternativa. Contudo, permanece latente uma questão mais ampla e digna de ser respondida por meio do método filosófico empregado na filosofia da linguagem wittgensteiniana. Nesse caso, repetimos: se a palavra “liberdade” nasceu no singular, porque hoje preferimos, em nossa vivência diária, falar em liberdades?

Se Wittgenstein insiste que devemos indagar sobre as funções práticas das palavras - e não seu significado -, e que estas são múltiplas e variadas, constituindo múltiplas linguagens, tornadas verdadeiras formas de vida, devemos, então, compreender que a passagem da palavra “liberdade” do singular para o plural não é banal, mas carregada de efeitos significativos, além de reveladora para o presente estudo no que se refere ao seu uso e ao seu relacionamento com os “jogos de linguagem”. Por outro lado, se o método da filosofia da linguagem expresso pelo conceito de “jogos de linguagem” propõe uma análise e uma discussão dos problemas filosóficos mediante a investigação e o esclarecimento do modo pelo qual fazemos uso da linguagem, conseqüentemente, as transformações e as variedades dos usos e das liberdades acompanham as tensões e os conflitos entre as diferentes liberdades e o valor que a expressão “liberdade” possa adquirir para um indivíduo ou para diferentes grupos inseridos numa comunidade. Assim, frente a tal situação, o filósofo deve proceder de maneira crítica em seu exame do uso de uma determinada expressão (ou linguagem) procedente de um contexto social. Entende-se, com isso, a necessidade de explicitar os elementos constitutivos desse uso, desenvolvendo uma consciência mais clara quanto aos pressupostos ideológicos.

Dessa forma, diante do exposto acima, é fundamental compreendermos que a palavra “liberdade”, desde a sua origem, não indica algo homogêneo, porque ela é essencialmente um catálogo: trata-se da família, das escolhas autônomas, do sistema, isto é, o uso ideológico da palavra “liberdade” é, exatamente, aquele que o consenso, embora fictício, parece real. Se, uma vez acordados com Wittgenstein, a linguagem engendra - ela própria - superstições das quais é preciso desfazer-se -, a filosofia deve ter, então, como tarefa primordial o esclarecimento que permita neutralizar os efeitos enfeitiçados da linguagem sobre o pensamento. Dentro dos limites do presente estudo, deixamos a sugestão de que se faz necessário que as principais tradições e crenças políticas, geradas pelo processo revolucionário de 1789, em torno de palavras, tais como, liberdade, liberalismo, socialismo e democracia, possam ser relidas e resgatadas em seus significados por meio de uma análise crítica que permita desvendar o caráter ideológico dos múltiplos usos que cada uma delas carrega.

Por fim, por intermédio da rede argumentativa que percorre as linhas do presente estudo, podemos concluir que a filosofia da linguagem constitui-se, essencialmente, não qual um sistema filosófico que busca respostas aos problemas tradicionais da filosofia, como por exemplo, o problema do Ser (Ontologia); o problema do conhecimento (Epistemologia ou Teoria do Conhecimento) ou o problema do Bem (Ética), mas, segundo a perspectiva wittgensteiniana, como uma tentativa de refletir sobre questões específicas mediante a interrogação da linguagem tal qual ela é usada. Nesse sentido, a linguagem é, então, a origem e a solução dos problemas filosóficos.

Finalmente, segundo o filósofo inglês Austin, ao analisarmos as expressões de conteúdo político, não chegamos, simplesmente, a um melhor entendimento da linguagem, mas, sobretudo, a uma visão mais clara do sistema político que experienciamos, exatamente porque ambos não estão essencialmente dissociados. Assim, a linguagem e a experiência estão inter-relacionadas, e a linguagem, em grande medida, é quem possibilita a vivência da experiência. Portanto, no mundo das relações humanas, as palavras adquirem significado em seu uso – possibilitado, em grande parte, pela existência de uma linguagem, que é o meio eficaz de realizar tal interação. Com isto, linguagem e realidade não se distinguem mais. Descrever o significado de uma palavra é descrever as múltiplas relações sociais das quais ela toma parte. Por último, na medida em que o objeto por excelência da filosofia lingüística é o uso da linguagem na comunicação (a linguagem como prática social concreta), a análise filosófica caracteriza-se por uma descrição e por uma interpretação das condições e das possibilidades do uso da linguagem, das suas implicações e de seu sentido mais profundo. Esse é o pressuposto básico que se constata em toda a análise conceitual realizada por filósofos procedentes da tradição de pensamento filosófico de Wittgenstein e J. L. Austin, isto é, da tradição de pensamento da Filosofia Analítica.

BIBLIOGRAFIA

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_______________. “Tratado Lógico-Filosófico * Investigações Filosóficas”. Tradução M. S. Lourenço. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

Coleção de fascículos:

“História do Pensamento” (Orgs. vários autores). São Paulo: Abril Cultural, 1989 (fascículos de 30 a 51)

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, verão de 2006