Os limites da liberdade
1 INTRODUÇÃO
A liberdade é um dos direitos fundamentais do homem. Deus nos criou livres. Ao longo da história da humanidade, o homem tem lutado para obter a sua liberdade. O próprio Jesus veio ao mundo com a missão de libertar o homem da escravidão. O crente é uma pessoa livre.
Na contra-mão da via libertária têm-se a opressão, o temor e a escravidão. Só é possível conhecer bem uma dessas vertentes, conhecendo igualmente a outra. Da mesma forma, não é possível estar, simultaneamente, sob o cetro desses dois atributos: ou se é livre, ou se é escravo. É preciso ter conhecimento sobre as diversas nuanças pertinentes a estas áreas, para se fazer escolhas conscientes, lógicas e coerentes com o padrão de vida que adotamos. O conhecimento é o princípio da liberdade. Conhecer é poder. É também um dever e um ato de responsabilidade para conosco e para com aqueles com os quais nós convivemos. A sua ausência conduz à escravidão sob o conhecimento alheio.
Esse é o tema. Seguindo os padrões da dialética, objetivamos a construção coletiva de uma reflexão a respeito dos “limites da liberdade cristã”, com a finalidade de levantar subsídios para a edificação de uma vida melhor e mais saudável para todos à luz do pensamento cristão.
2 A LIBERDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
O que é liberdade? Não é possível avançar em nossa reflexão sem que tenhamos uma idéia a respeito desse atributo.
Orlando Boyer conceitua liberdade como sendo o “poder de fazer ou deixar de fazer, de escolher” (1978:382). Já o jurista Antônio de Paulo , traz o conceito corrente em nossa sociedade, dizendo que liberdade é a “faculdade que tem o indivíduo de agir por determinação própria, dentro dos limites traçados pela lei e sem ofender os direitos de outrem” (2002:191).
A liberdade é a mais significativa característica dos seres humanos. Não a tivéssemos e seríamos escravos da vontade de alguém. Ora, não é verdade que Deus deseja que obedeçamos a sua vontade e a sua Palavra? Não foi exatamente essa a argumentação que Samuel fez a Saul em 1 Sm 15:1-31 quando ele deixou de cumprir ao pé da letra as determinações do Senhor, mantendo Agague e o melhor dos animais com vida para serem sacrificados ao Senhor? Nesse caso, se é esse o desejo maior de Deus, então ele não poderia nos ter criado sem liberdade? Dessa forma não erraríamos, nem precisaríamos passar por tudo o que hoje passamos: guerras, fome, doenças, dor, sofrimento e coisas semelhantes. Sim, é verdade que poderíamos ter sido feitos assim, mas, então, não seríamos os homens que somos, superiores em relação às demais criaturas, as quais não gozam dessa mesma prerrogativa. Estaríamos sob o jugo de um determinismo impiedoso e inexorável, contra o qual nada se poderia fazer. Não seríamos homens, seríamos máquinas programadas para agir de acordo com um programa. Mas não é isso que Deus quer, ou seja, que façamos a sua vontade? Sim, é isso que ele deseja, mas não é somente isso que ele quer. Deus deseja que nós também queiramos isso, ou seja, que, em nossa liberdade, escolhamos obedecer a sua Palavra.
Essa é a liberdade da qual o ser humano foi dotado. A liberdade de escolher entre uma coisa e outra. É nesse sentido que vemos Josué argumentado com o povo em Js 24:14-24. Eles deveriam fazer as suas escolhas: servir ao Senhor ou servir aos deuses dalém do Eufrates, aos quais tinham servido seus pais. Quaisquer que fossem as escolhas, evidentemente se teria um preço a pagar, mas tanto eles como Josué eram livres para escolher a quem serviriam. Assim era a decisão do Criador. Ele dotara o homem da liberdade de escolher, com responsabilidade, o que desejaria fazer em sua vida.
Por outro lado, pode-se observar que as primeiras determinações de Deus ao homem, quando o colocou para cultivar e guardar o Jardim do Éden, apresentam-se revestidas do caráter libertário. É isso que se pode depreender de Gn 2:15-17. Ali o homem deveria viver, trabalhar e ser feliz. Seguindo ao princípio divino de que não se deve impedir o que trabalha, de comer do fruto de seu trabalho, bem estabelecido em 1 Co 9:9, Deus também dá liberdade ao homem para comer de tudo o que havia ali no jardim, inclusive da “árvore do conhecimento do bem e do mal”.
Antes que alguém diga que Deus não deu essa liberdade, quero perguntar: quem esteve entre o homem e a árvore, para impedi-lo de lançar mão de seu fruto e comer? Ninguém! A única coisa que havia entre o homem e a árvore era o próprio homem no exercício de sua liberdade. Se ele desejasse, poderia estender a mão, pegar do fruto e comer, como de fato o fez.
Não adianta dizer que alguma coisa é proibida e não se tomar medidas cautelares para impedir que a proibição seja descumprida. Veja-se a grande diferença que existe entre aquela situação inicial diante da árvore do conhecimento e a situação descrita em Gn 3:22-24. Aqui não há liberdade. O homem está fora do jardim e há vigilância poderosa para que ele não possa mais penetrar nele. Isso é cerceamento de liberdade.
A mesma coisa acontece com aquele que é preso pela sociedade. Estando trancado em uma cela, não pode fazer qualquer coisa do lado de fora, mesmo que deseje ardentemente. Todavia, do lado de dentro, não há nenhum impedimento para que brigue, estraçalhe e mate os seus companheiros de cela. Não há ali ninguém para impedi-lo de fazer isso, caso deseje. A sua ação é limitada apenas pela sua própria vontade e decisão. Isso foi o que aconteceu com Caim, do lado de fora do Jardim do Éden. Não havendo um impedimento físico para o exercício de sua liberdade de escolha e de decisão, pode, livremente, lançar mão de seu irmão Abel e matá-lo a troco de nada. Ele estava impedido de matar? Absolutamente! Ele estava completamente livre. É evidente que sofremos as conseqüências pelo exercício de nossa liberdade, mas nem por isso deixamos de ser livres, porquê fomos criados para a liberdade. E em todos os momentos da nossa vida isso deverá ser respeitado. Por tal motivo, devemos lutar contra a tirania, a despotia, a oligarquia, a demagogia e todas as formas de governo e de domínio que não se fundamentem no princípio da liberdade. Essa é a vontade de Deus.
3 A LUTA DO HOMEM PELA LIBERDADE
Ainda que a liberdade seja um atributo divino e que, por conseguinte deveria ser acatada por todos os seres humanos, uma das conseqüências que o homem sofreu pelo exercício dela foi justamente a sua perda. Já vimos em Gn 3:24 que o homem foi expulso do Jardim do Éden porquê não era mais merecedor da confiança divina. Ele abusara da liberdade que tinha recebido e, portanto, deveria ser colocado dentro de certos limites de tolerância, para que fosse reeducado e pudesse retornar ao convívio com Deus.
Deus não queria destruir o homem. Não fora para isso que Ele o fizera. Percebe-se a sua tristeza quando é forçado a tomar uma atitude corretiva em relação ao homem. Ele lamenta ter que fazer isso. É possível perceber essa comoção que se passa em seu Espírito quando lemos Gn 8:21, logo após Ele ter executado o seu juízo sobre a terra, por causa do exercício abusivo da liberdade por parte do homem.
Destarte, a expulsão do Éden tem um caráter educativo. Muito semelhante ao que acontece no sistema prisional contemporâneo. A idéia da prisão é a idéia de reeducação. Alguém se desviou dos princípios de ordem estabelecidos e precisa reaprendê-los para que possa viver novamente em sociedade. Embora não venha conseguindo cumprir os seus objetivos e, por isso mesmo, em muitos casos, as penas restritivas da liberdade vêm sendo substituídas por penas alternativas, a idéia que perpassa nas prisões não é a de castigo, mas a de reeducação.
O que se objetiva em todos os esses atos é a reintegração do homem no exercício pleno de sua liberdade, tanto da parte de Deus, quanto da sociedade. Essa é uma marca que o plano terreno tem registrado ao longo da história da humanidade. Em todos os tempos o homem clamou por liberdade, mas sempre abusou do seu exercício quando a conquistou e, por igual modo, voltou a perdê-la.
Na história judaica temos o caso da escravidão no Egito. Houve uma grande seca em toda a terra, mas somente o Egito, por intermédio do hebreu José, fez a provisão de alimentos para enfrentar o período das “vacas magras”. Em conseqüência disso, o mundo desceu ao Egito, inclusive a família de José que vivia em Canaã. (Gn 41:47-49, 53-54, 57; 42:1-3).
Ali, Israel viveu por 430 anos (Ex 12:40-41). Foi para lá, livremente. Todavia, na medida em que cresceu em número, foi perdendo a sua liberdade, até ser definitivamente escravizado. Então ele queria voltar para a sua terra, mas os egípcios não permitiam. Foi preciso uma intervenção divina. Deus escolheu Moisés como seu libertador e os tirou daquela terra, no meio de muitos sinais e prodígios. Essa história é contada e recontada no Êxodo, em particular e por toda a Bíblia, de um modo geral, como por exemplo em Ex 3:7-10; Jr 2:6; Os 2:15; 8:13; Am 2:10; 3:1; Mq 6:4; At 7:35-36.
Na seqüência, a Bíblia relata os dois períodos de cativeiro dos judeus: o das dez tribos promovido pelos assírios em 722 a.C. (2 Rs 15:29; 1 Cr 5:26; 2 Rs 17:5-6) e o cativeiro de Judá, realizado pelos babilônios em 587 a.C. (2 Rs 18:13; 2 Cr 36:5-7; Dn 1:1-4; 2 Rs 24:14-16). Ambos os territórios foram posteriormente conquistados pelos persas, gregos e romanos, respectivamente. E, no ano 70 d.C., os judeus foram expulsos da Palestina, somente retornando ao seu território em 1948, quando o Estado de Israel foi reinstalado, por decisão da ONU (Organização das Nações Unidas).
De um modo geral, o homem sempre foi oprimido nas mais diversas partes do mundo e sempre lutou pela sua liberdade. Vale destacar que a “liberdade” é um direito que está assegurado também na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, como resultado da Revolução Francesa, marco na história da humanidade para implantação da democracia. Dentre os ideais que os revolucionários defendiam figurava a igualdade, a liberdade e a fraternidade.
No Brasil, temos a clássica luta dos negros, os quais foram escravizados nos tempos coloniais. Apesar das leis brasileiras proclamarem a libertação dos escravos no país, ainda hoje permanecem os resquícios da discriminação racial, a ponto de em nossa Constituição Federal de 1988 ter que constar que esses atos são crimes inafiançáveis para desestimular os que os praticam. Além disso, aqui predomina a escravidão salarial, onde milhares de pessoas, principalmente aposentados, são obrigados a viver com um salário mínimo de miséria, no valor atual de R$ 260,00 por mês.
4 JESUS VEIO AO MUNDO PARA LIBERTAR O HOMEM
Desde que os judeus foram levados para o cativeiro, até 14 de maio de 1948, quando foi proclamado o Estado de Israel, pode-se dizer que esse povo não gozou de liberdade sequer para viver em sua “terra prometida”. Além disso, a criação do Estado judaico não garantiu a liberdade plena, posto que até os dias atuais perduram as lutas entre árabes e judeus pela posse das terras palestinas.
No início da presente Era Cristã, Jesus foi visto por muitos judeus como um líder político que libertaria Israel do domínio romano. Isso se dava em função da promessa que Deus fizera a Davi, dizendo que o cetro do poder permaneceria na sua família para sempre (2 Sm 7:13), bem como das profecias que anunciavam a vinda do Messias, procedente da linhagem de Davi e que haveria de ser o grande libertador de seu povo (Js 23:5; Mq 5:2-4; Is 9:6, 7). Vale dizer que alguns atos da gente mais humilde , deram força a essa idéia, como por exemplo o que se registra em Mt 21:1-11; Jo 12-12-15; e, Jo 18:33-37, dentre outros.
Todavia, Jesus não se posiciona como um rei terreno. Admite ser rei, mas não deste mundo. É o que ele diz a Pilatos (Jo 18:36-37). Essa sua postura causa alguma decepção até em seus discípulos mais íntimos, como Pedro, por exemplo, em Mt 16:21-23. Aliás, com relação a este mundo, ele diz que o seu príncipe é Satanás e não ele (Jo 12:31; 14:30; 16:11).
Jesus se manifesta como um rei espiritual. Alguém que vem libertar o mundo de seu opressor. É isso que se pode concluir do exame de Jo 8:36; Gl 5:1; Cl 1:13; Ap 1:5.
Ele é a ponte que pode permitir ao homem retornar ao Éden perdido, ao Paraíso, à comunhão com Deus, conforme Lc 23:43; Ap 2:7; Rm 5:1; Jo 14:6. Mas, novamente aqui, está presente a liberdade de escolha entre receber Jesus e conseguir esses benefícios, ou recusá-lo e permanecer no estado em que se encontra.
A palavra proposta em Jo 1:12 não é impositiva, mas facultativa. Nisso reside a liberdade cristã. Ninguém é obrigado a servir a Jesus. Mas, igualmente, ele não tem qualquer compromisso com aqueles que não estão ligados a ele (Ef 2:11-12 Jo 15:1-6).
A liberdade cristã, como a própria liberdade social, é uma liberdade condicional. Mesmo num estado de anarquia, onde, teoricamente, não existe a autoridade, já que a anarquia é a negação da autoridade, existem condições para que essa não aja. Ou seja, somente não haverá a intervenção da autoridade se cada um cumprir com as responsabilidades que lhe competem. Não existe liberdade absoluta. Ela será sempre relativa. Assim sendo, devemos buscar conhecer as condições que são estabelecidas para o seu exercício, para que não venhamos correr o risco de estar faltando com a parte que nos cabe.
5 AS CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DA LIBERDADE
Diz a Bíblia que nós fomos chamados para a liberdade (Gl 5:1). Isso significa que temos uma nova chance para decidir o que fazer da nossa vida. Se vamos aproveitar ou não, isso é conosco. Deus está fazendo a parte dele nesse projeto de libertação do homem. Todavia, não devemos ver a vida cristã como sendo uma camisa de força. O escravo é obrigado, querendo ou não. O liberto tem o poder de escolher o que julgar melhor. Nesse sentido, o que nós devemos fazer é usar o nosso bom senso, pesar e sopesar as coisas e escolher o que nos trará melhor proveito.
5.1 A VIDA E A MORTE
Essa é a nossa principal escolha. Romanos 8:12-13 nos informa que temos a opção de escolher entre a vida e a morte. Se vivermos segundo a carne, caminhamos para a morte; se vivermos segundo o Espírito, viveremos. Uma escolha elimina a outra. Não se pode querer ambas. Ou uma, ou outra, conforme Mt 6:24 e Gl 5:17.
Escolher a vida significa andar no Espírito, significa produzir os seus frutos (Gl 5:22-23). Significa manter-se dentro dos limites estabelecidos por ele (Gl 5:24-25). Não abusar da liberdade (1 Co 8:9-10; Gl 5:13; 1 Pe 2:16; 2 Pe 2:19; 1 Co 6:12; 1 Co 10:23).
5.2 FAZER OU NÃO FAZER
O Eclesiastes nos mostra que podemos fazer todas as coisas que nos agradam (Ec 11:9), mas também alerta para as conseqüências de nossos atos. Nós aprendemos na Física, pela terceira lei de Newton, que “a toda ação corresponde uma reação”. No plano espiritual, as coisas funcionam do mesmo modo. É o que se depreende de Gl 6:7. Assim sendo, pensando em fazer alguma coisa, devemos nos perguntar pelas conseqüências. Estamos dispostos a arcar com elas? Isso é racionalidade.
Vejamos um exemplo. Você deseja se casar. Essa é uma decisão que implica muitas responsabilidades. A partir do momento que você se casar, você deixa a casa dos seus pais e vai viver na sua própria casa. Essa é a primeira conseqüência, conforme Gn 2:24. É certo que muitos jovens casais não fazem isso. Casam e ficam morando com os pais e estes toleram a situação e muitos problemas vêm por causa disso. Essa atitude não está correta. Ela não encontra guarida na Palavra de Deus e quem se opõe a Deus, sofre, evidentemente as conseqüências, que nem sempre são agradáveis (Hb 10:31). Assim, antes de se casar, os jovens devem se preparar para assumir todas as responsabilidades decorrentes do casamento, como o sustento da casa e dos filhos que virão quase com certeza. Ou seja, essa decisão, como todas as demais, implicará em muitas responsabilidades.
Nós somos chamados para a responsabilidade, nunca para a inoperância e a ociosidade. Salomão manda que o preguiçoso aprenda com a formiga (Pv 6:6). Ele é aquele que quer mas não consegue (Pv 20:4; 21:25). Nem no Paraíso nós vamos “descansar após não fazer nada”, como está escrito em uma camiseta que comprei em Porto Seguro, Bahia. Adão, quando estava no Paraíso tinha a incumbência de “cultivar e guardar” o jardim de Deus. Certamente, na eternidade, teremos responsabilidades e obrigações. A vida sem ter nada para fazer, somente na base da contemplação e do louvor seria muito sem graça. Nós gostamos de cantar, mas não somente de cantar; nós gostamos de comer, mas não somente. A vida seja aqui, seja na eternidade, precisa ser equilibrada senão não pode ser chamada de vida.
6 CONCLUSÃO
Muito ainda se poderia falar sobre “os limites da liberdade”. Creio, todavia, que essas reflexões já sejam suficientes para que compreendamos a importância de nos estabelecermos certos limites para nossas ações. Creio que todos já decoraram o texto de 1 Co 11:28-31, o qual todo o domingo é repetido durante a Ceia do Senhor. Se nós mesmos estabelecermos os nossos limites, com racionalidade, não será necessário que alguém faça isso por nós, ou que tenhamos de sofrer as conseqüências previstas como fraqueza, doença e morte, que às vezes nos passam despercebidas. Discernimento é conhecimento.
Nós somos chamados para conhecer e não para sermos ignorantes (Mt 22:29; 1 Co 12:1-2; 13:11; 14:20; Ef 4:14; 2 Tm 2:15; Hb 5:11-14; 2 Pe 2:12; 3:18). Somente conhecendo, poderemos exercer a nossa liberdade com sabedoria. Essa deve ser a racionalidade que oriente o nosso comportamento. Que Deus nos abençoe!
Izaias Resplandes de Sousa é membro da Neo-Testamentária de Poxoréo, MT