O reino das aparências

Aparencioduto I

Izaias Resplandes

O Brasil está em estado de choque. Os clientes que nunca pediram a nota fiscal de suas compras (crime de cumplicidade na sonegação fiscal: Lei 4729/65, art. 1º c/c art. 29 CP), os eleitores que se mudaram de cidade, mas não transferiram o título e que negociam os seus votos por passagens até lá, para visitarem os parentes na época das eleições (crime eleitoral: art. 107, § 21, Cód. Eleitoral), os administradores que constroem escolas com os recursos carimbados para a educação e depois transformam-nas em sedes de outros órgãos públicos ou organizações não governamentais (crime de emprego irregular de verbas ou rendas públicas: art. 315, CP), as pessoas que emprestam dinheiro a juros exorbitantes (usura: art. 406 c/c Enunciado nº 20, CJF), aqueles que se declaram necessitados e recebem pensões do Estado, mesmo tendo meios para subsistir (crime de falsidade ideológica: art. 299, CP), aqueles que acobertam os amigos e familiares pelos pequenos erros que praticam de vez em quando (crime de cumplicidade: art. 29, CP), ladrões, assassinos, fraudadores e tantos outros agentes do crime, tanto legal quanto informal estão chocados, boquiabertos, escandalizados mesmo com as “verdades” que estão sendo reveladas nas CPIs e principalmente na imprensa brasileira.

Aqueles que ousaram sair do aparencioduto para ingressarem nas vias do mundo real estão sendo hoje crucificados pela sua ousadia e pretensionismo. Têm coisas que todo mundo sabe que acontece, mas ai daquele que põe a boca no trombone. E isso é secular. Mesmo correndo o risco de Shylock, na acusação de que “o diabo cita em seu próprio bem as Escrituras” , lembramos o Senhor Jesus que dizia: “O Filho do homem vai, como está escrito a seu respeito. Mas ai daquele que trai o Filho do homem! Melhor lhe seria não haver nascido” . Outros dirão que não devemos misturar as coisas: uma coisa é a religião, oura é a política e outra é a lei, como se a verdade não coubesse em qualquer hora e em qualquer lugar. E, falando nisso, a verdade é que quase todos preferem não sair à chuva para não se molharem, mantendo-se indiferentes em seu aparencioduto particular.

Assim, em virtude dessa generalização e da alta rotatividade por essa aparenciovia, entendemos que esses homens que estão tendo a coragem de abrir a boca para tornar público o que se passa nas catacumbas do nosso país, mesmo sabendo que irão à cruz por causa disso... Esses homens não deveriam ser condenados mas, antes disso, deveriam ser exaltados, aplaudidos e elogiados por sua coragem.

Aquele que confessa o seu pecado e o deixa é digno de perdão. Para ele, Jesus diria: “Vá e abandone sua vida de pecado” . É público e notório que temos um câncer corroendo o nosso país e ninguém tem a coragem de assumir seu mal e tentar extirpá-lo. Finge-se que está “tudo bem”, como já dizia Suzy Capó . Esse é o país do tudo bem. Já iniciamos nossa conversa com o outro induzindo-o a dizer “tudo bem”, mesmo quando tudo está “uma merda”. Perguntamos: “tudo bem?” E o miserável: “tudo bem! Temos que dizer que está tudo bem, não é mesmo?”. Mas nós dizemos que não se deve dizer “tudo bem” se não está; devemos antes disso, dizer a verdade, só a verdade!

Ora! Num tal estado de coisas, homens como Jefferson e Adauto deveriam ter seus bustos em praças públicas, sob a epígrafe: “ele teve a coragem de dizer a verdade e foi condenado por isso”, ao invés de serem condenados como párias da sociedade. Em vários países, aqueles que colaboram para a elucidação de crimes complexos são amparados por programas governamentais de proteção à testemunha e coisas do gênero. No Brasil, estimulamos o encobrimento da verdade, punindo severamente aqueles que a professarem. Aqui se castiga aquele que ousa abrir a boca para acabar com uma determinada situação, mesmo não sendo obrigado a produzir provas contra si mesmo .

É evidente que não estamos apoiando a atividade criminosa. Pelo contrário. Acreditamos que as pessoas se arrependem e querem se ver livres do fardo que carregavam; querem voltar ao bom caminho, querem uma nova oportunidade. E vemos que nossas leis, ao invés de estimular a regeneração, acirram a condenação. Por exemplo: Jefferson foi o principal agente do mensalão? É evidente que não. No entanto, porque falou e entregou o serviço, foi o primeiro a ser punido. Atitudes como essa inibe aqueles que querem confessar crimes coletivos, praticados por uma pluralidade de agentes, por meio do concurso de pessoas.

O problema do crime no Brasil, além de ser resultante de nossa crise social é ser alimentado por um ordenamento jurídico que incentiva a utilização das aparenciovias, ao invés das vias transparentes. Veja-se, e.g., o caso das leis orçamentárias.

Os órgãos públicos são limitados por orçamentos fechados, principalmente aqueles que estão nas posições organogramáticas mais inferiores. Eles não podem e.g., comprar o que realmente precisam, mas tão somente aquilo que está consignado nos seus orçamentos, nas leis orçamentárias.

Essas leis têm sido verdadeiras peças de ficção. Não conseguem atrair sobre si as reais necessidades dos órgãos públicos, mas tão somente aquilo que é mais adequado para se apresentar ao povo. Essa apresentação é necessária, vez que é ele que, em última instância, abastece os cofres para financiar a gastança.

Destacamos que o conteúdo fictício das leis orçamentárias não tem nada a ver com abstratividade genérica que elas devem ter enquanto leis, pois, pretendendo regular ações futuras, se revestem de grandes doses de abstração. Não há nada de extraordinário nisso. O mesmo não se pode dizer, todavia, do conteúdo fictício de certas leis.

A ficção está além da realidade; enquanto a abstração é uma realidade pretendida. A ficção é uma irrealidade, dificilmente alcançável nas circunstâncias presentes.

A lei fictícia já nasce com a pretensão de induzimento ao erro. Ao aprová-la, o legislador sabe de antemão que ela não atenderá os anseios e reclames da população que pretende beneficiar. Ele sabe que ela poderá servir de trampolim para o desvio e a malversação dos recursos públicos por parte dos administradores bem intencionados e sintonizados com seus administrados, que desejam fazer o que eles realmente precisam.

Exemplos não faltariam.

A cidade reclama a construção de um prédio para sediar algum dos Poderes: Executivo, Legislativo ou Judiciário. Mas para isso não existe a disponibilidade de recursos. Existe, entretanto, a possibilidade de canalizar os meios para a construção de uma escola de médio porte, a qual poderá ser posteriormente transformada naquilo que realmente se quer e necessita. Dessa forma, ao arrepio da lei, de forma marginal, pela via oblíqua o Município consegue o seu Paço Municipal (Prefeitura), a sede da Câmara ou o Fórum da Comarca. E a escola, que não era uma real necessidade (mas apenas enfeite orçamentário), vez que havia até mesmo salas-deaula excedente, voltará a ser objeto de atenção orçamentária quando de fato houver a sua necessidade, ou quando se precisar de mais um prédio para sediar qualquer outro órgão público ou associação não governamental – essas ONGs que também dependem do desvio de recursos públicos para terem suas sedes, desde a aquisição dos terrenos até as respectivas construções necessárias.

Esse foi o primeiro ponto. Na continuidade vem o segundo. Não percam!

Referências.

Izaias Resplandes de Sousa, escritor mato-grossense, membro-fundador da UPE é pedagogo e matemático pela UFMT, Gerente de Cidades pela FAAP/SP e membro do IMGC (Instituto Mato-grossense de Gerentes de Cidade), Especialista em Estatística pela UFLA/MG e Acadêmico de Direito pela UNICEN, de Primavera do Leste, MT.

SHAKESPEARE, W. O mercador de Veneza. 2.ed. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 36.

Bíblia de Estudo NVI. São Paulo: Vida, 2003. p. 1665. (Evangelho de Mateus. Cap. 26, v. 24).

Idem. Cap. 8, v. 11.

CAPÓ. Suzy. Tudo bem? Disponível em < http://mixbrasil.uol.com.br/cio2000/redoma/depressao.shl Acesso em 20/11/2005.

Cf. REALE JR., M; ESTELITA, H. A prestação de informações ao fisco e o dilema das empresas . "O empresário não é obrigado a fornecer informações que possam gerar provas contra si". Disponível em < http://www.portaltributario.com.br/artigos/dilema.htm> Acesso em 20/11/2005