A Denúncia Social na Música "Admirável Gado Novo" de Zé Ramalho: O Mecanismos Massivos de Alienação

DENÚNCIA SOCIAL NA MÚSICA “ADMIRÁVEL GADO NOVO” DE ZÉ RAMALHO: OS MECANISMOS MASSIVOS DE ALIENAÇÃO

Admirável Gado Novo

Zé Ramalho

Vocês que fazem parte dessa massa

Que passa nos projetos do futuro,

É duro tanto ter que caminhar

E dar muito mais do que receber,

E ter que demonstrar sua coragem

À margem do que possa parecer,

E ver que toda essa engrenagem

Já sente a ferrugem lhe comer.

Ê, vida de gado...

Povo marcado,

Povo feliz...

Lá fora faz um tempo confortável,

A vigilância cuida do normal;

Os automóveis ouvem a notícia,

Os homens a publicam no jornal,

E correm através da madrugada,

A única velhice que chegou;

Demoram-se na beira da estrada

E passam a contar o que sobrou.

Ê, vida de gado...

Povo marcado,

Povo feliz...

O povo foge da ignorância,

Apesar de viver tão perto dela,

E sonham com melhores tempos idos,

Contemplam essa vida numa cela,

E esperam nova possibilidade

De verem esse mundo se acabar;

A Arca de Noé, o dirigível

Não voam nem se podem flutuar.

Ê, vida de gado...

Povo marcado,

Povo feliz...

Zé Ramalho é um músico intenso. Sua poesia é profundamente nordestina e, ao mesmo tempo universal, pois gira em torno de questões que intrigam o ser humano de uma forma geral. Sua música está recheada de citações às suas próprias experiências pessoais: movimento hippie, a batalha pelo pão, a necessidade de arranjar dinheiro, a procura de uma experiência mística, a tristeza de um amor impossível, etc. Com letras impactantes, a maioria delas de caráter místico e social, constituiu-se num cantor eclético atingindo várias gerações. “Admirável Gado Novo” é um dos seus maiores sucessos.

Passaremos a analisar essa música de Zé Ramalho, composta no final dos anos 70, período da Ditadura Militar no Brasil, sob a ótica da Crítica Literária Marxista. Essa linha crítica “analisa a Literatura em termos das condições históricas que a produzem”, envolvendo a luta de classes e tendo como objetivo a compreensão das ideologias presentes em qualquer obra literária. De acordo com Marx, o aspecto material da sociedade condiciona o social, o político e, o que mais nos interessa, o intelectual e artístico em geral, ou seja, as relações sociais de uma forma geral dependem necessariamente das relações de produção. Dessa forma ele define o conceito de infra-estrutura como as relações e forças de produção que são sustentadas, isto é, legitimadas por uma superestrutura “que assegura que a situação em que uma classe social tem poder sobre as outras seja vista pela maioria dos membros da sociedade como natural ou nem mesmo seja vista”.

Para o Marxismo, a arte, e por conseqüência a Literatura, faz parte dessa superestrutura. No entanto, a Literatura, apesar de estar contida nesse aparato ou Ideologia que reflete os interesses da classe dominante, não é um “simples reflexo passivo da base econômica”. Isso implica dizer que a Arte Literária está contida na Ideologia, mas não está presa a ela, pois consegue distanciar-se ou até ir de encontro à visão da classe dominante, como é o caso da obra em questão. A contracultura e as vanguardas são exemplos da força crítica que tem a Arte Literária, bem como do seu poder de denúncia social e de exposição e mimetização da realidade. Terry Eagleton assim se expressa sobre a arte literária, na concepção materialista de Marx:

A teoria materialista da história nega que a arte por si só possa mudar o curso da história, mas insiste em que ela pode constituir um elemento ativo dessa mudança. (1978: 22).

Assim temos em “Admirável Gado Novo” uma forte crítica social, tendo em vista que o Brasil passava por um dos períodos mais negros da sua história. Vemos expressados nela a luta de classes, tão discutida por Marx, e um aspecto imprescindível nesse contexto que é a manutenção desse modelo social através da alienação das massas, metaforizada na figura do gado.

Outrossim, Zé Ramalho compôs “Admirável Gado Novo” numa clara referência ao romance de ficção científica de Aldous Huxley “Admirável Mundo Novo”. Escrito em 1932, este romance descreve uma sociedade hipotética do futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e ordens sociais sem possibilidade de contestação e senso crítico. No entanto, nesse “futuro” criado por Aldous Huxley não há as regras sociais, éticas ou religiosas de hoje. Qualquer dúvida de algum habitante é dissipada com o uso de uma droga, sem efeitos colaterais chamada “soma”.

Vemos assim uma sociedade controlada, condicionada a viver em uma ordem estabelecida através do conformismo. Outro aspecto importante é que nesse “Mundo Novo” não há princípios morais e éticos. O controle se dá somente através da droga “soma” que surge como a representação dos instrumentos alienatórios da nossa sociedade, entre eles os meios de comunicação de massa como a televisão. Não há espaço para o questionamento, pois a “droga” elimina todas as dúvidas e continua a direcionar, é claro, de acordo a ordem dominante. É um mundo “admirável”, pois se apresenta como modelo exemplar de perfeição e ordem, contudo esconde as desigualdades e mazelas sociais.

Essa visão crítica transposta na obra huxleyana reflete a preocupação do autor, que viveu a maior parte dos anos 20 na Itália fascista de Mussolini, com a liberdade individual em detrimento ao autoritarismo tão bem retratado em sua obra-prima “Admirável Mundo Novo”. Com certeza sua estada no país europeu o impeliram consideravelmente na composição desse livro.

Mas voltando à música em questão, já vimos de onde se originou seu título e idéia e como ela contém diversos elementos do pensamento marxista sobre a sociedade. Dessa feita passaremos a detalhar alguns aspectos importantes na compreensão de sua ideologia, que como já vimos vai de encontro à visão da classe dominante trazendo uma crítica social que a caracteriza como uma obra que, mesmo estando na superestrutura como diz Marx, não se propõe a legitimar a exploração de uma classe sobre as outras.

A exploração do homem pelo homem é um dos pontos fortes sobre o qual se fundamenta a análise marxista da sociedade. E nesse sentido a expressão “massa” aparece como um forte indicador do anonimato, do tratamento não individual, essencialmente coletivo que o Capitalismo impõe aos indivíduos. Representa a necessidade da produtividade, bem como aquilo de pouco apuro, reflexão e qualidade, dada a falta de acesso da “massa” à educação e ao conhecimento de uma forma geral.

Essa condição massificada gera o problema de “dar muito mais do que receber”, característico do modo de produção capitalista que faz com que o trabalhador produza muito e receba pouco. No caso brasileiro, essa exploração se caracteriza desde o campo, com o trabalho semi-escravo, à cidade, com as altas cargas de trabalho e a constante supressão dos direitos trabalhistas. Assim, temos o quadro lamentável da nossa estrutura de classes. Apesar disso o autor enfatiza a coragem da “massa”, demonstrada “à margem do que possa parecer”, na manifestação de um povo que sofre com o sistema, mas não perde sua alegria.

Outra consideração importante a fazer é a referência a “engrenagem” que “sente a ferrugem lhe comer”. Tal expressão faz uso da metáfora e refere-se tanto à autodestruição do Capitalismo, pregada por Marx, quanto à derrocada do regime militar que vigorava no Brasil naquele período. Segundo o pensamento marxista, o Capitalismo carrega os germes de sua própria destruição, e seria suplantado pelo Socialismo onde os trabalhadores formariam uma sociedade baseada na propriedade coletiva dos meios de produção, pois, propõe a visão marxista, que todo sistema econômico traz no seu embrião as contradições que irão destruí-lo por meio da luta de classes

Uma outra faceta digna de maior discussão é a metáfora do gado. Afinal, que semelhanças podemos depreender, pela ideologia do compositor, entre o “povo marcado” e o gado? De fato não haveria um ser melhor para representar a submissão e o conformismo do que o gado, que se deixa ordenhar, direcionar e guiar pelos seus “donos”. A condição de manipulação e exploração a que se submete este animal ocorre desde a vida até a morte, na extração da carne para a alimentação humana.

A condição da classe dominada é semelhante, pois o aumento do lucro dos donos dos meios de produção é proporcional a degradação do trabalhador que quanto mais trabalha menos recebe. Além disso, existem mecanismos de alienação e direcionamento das massas para que essa situação de exploração não seja questionada ou sequer entendida. Tais mecanismos se constituem como importante instrumento da ordem estabelecida e favorecem àqueles que detêm o poder, pois onde não há contestação ou cobrança, a facilidade para o auto-favorecimento, a corrupção e a impunidade é muito maior. A conseqüência disso é o agravamento da desigualdade social e de todos os demais problemas sociais. Antônio Gramsci define a alienação na ótica marxista dessa forma:

O homem, através da alienação torna-se estranho a ele mesmo; não se reconhece a si mesmo; o trabalho o tornou estranho; aquilo que produz lhe é estranho; a atividade tornou-se massificante, penosa, desgostosa por que ela tornou-se exclusivamente um meio de subsistência.(2005: 15).

Temos uma massa que é manipulada ao bel prazer das grandes mídias, enquanto é guiada a caminhos que desconhece totalmente. Sob a justificativa de fugir dos problemas, assistindo a programas de baixa qualidade ou simplesmente recebendo sem questionar o que lhes é informado, acaba fugindo da realidade e adentrando num preocupante estado de alienação e descomprometimento social.

Outrossim, se levarmos em consideração a história do Brasil iremos observar que boa parte das decisões mais importantes do país (como a Independência e a Proclamação da República, por exemplo) não tiveram nenhuma participação das camadas mais pobres da sociedade, que ficaram à margem de todos esses acontecimentos.

A antiga tática romana do “Pão e Circo” é reinventada atualmente, porém mantendo o seu princípio de alienação através do binômio alimento/entretenimento. Os programas assistencialistas da atualidade, se trazem alguma ajuda, acarretam um enorme conformismo, transformando-se até mesmo em instrumento de promoção política. Aliado a isso nos deparamos com a mídia televisiva e fonográfica que, a pretexto de entreter, acaba por maquiar, esconder ou até deturpar a realidade, usando como instrumento a massificação dos seus produtos, onde a qualidade quase sempre é sacrificada em nome do rendimento financeiro. No caso da TV, encontramos um sem número de programas que em busca da audiência se prestam a expor exaustivamente a nova fórmula do IBOPE: Sexo e violência. Dessa forma, salvo raras e honrosas exceções, cumprem a função de componentes da superestrutura, dando um suporte imprescindível à manutenção da ordem estabelecida.

Levando em conta o contexto histórico em que se insere a música servi- nos lembrar que o Brasil vivia o auge da Ditadura Militar, período negro da nossa história em que milhares de intelectuais e oposicionistas foram perseguidos, mortos e exilados. Apesar disso, no início da década de 70 o país estava em êxtase devido à conquista da Copa do Mundo, fato amplamente utilizado como propaganda do Governo Militar de Garrastazu Médici. Acresce-se a isso o “Milagre Econômico”, proporcionado pela invasão das multinacionais ao Brasil, e a forte propaganda do regime, levando a “massa” ao entorpecimento quase total.

É justamente aos donos do poder que encontramos fortes críticas, pois é para eles que “lá fora faz um tempo confortável”, procurando cuidar do normal e manter a “ordem” das coisas. Em relação a isso, o autor faz uma menção simbólica à perseguição aos opositores do regime e a forma como esse sistema era mantido com o “gado” à margem da realidade da situação. É utilizando a arma do simbolismo, da metáfora, da duplicidade de sentido que Zé Ramalho empreende sua crítica a esse estado de coisas e aos que mantêm essa situação.

Essa condição de alienação e entorpecimento vivida pelo povo faz com que ele “contemple essa vida numa cela”. Essa prisão nada mais é do que a ignorância, o assujeitamento, o conformismo que impossibilitam a visão crítica e transformadora da sociedade. Preso ao sistema e dirigido por vontades alheias, exatamente como o rebanho no curral.

No fim da música temos uma menção à religião, esta é caracterizada como uma fuga empreendida pelo povo em face dos problemas que vivencia: “E esperam nova possibilidade/ De verem esse mundo se acabar; / A arca de Noé, o dirigível...”. Essa concepção sobre religião demonstrada pelo compositor assemelha-se ao pensamento marxista, pois na visão de Marx a religião é uma droga porque apazigua os ânimos do explorado impedindo-o de reagir à situação em que se encontra ao aceitá-la como natural. O próprio Marx assim se expressa sobre a religião:

O sofrimento religioso é, a um único e mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo.(1844: 5)

Diante de tudo o que foi exposto podemos dizer que, na tentativa de compreender sob a ótica da Critica Marxista a ideologia da música “Admirável Gado Novo”, constatamos que ela apresenta diversos aspectos do pensamento de Marx sobre a sociedade tais como a luta de classes, a exploração do homem pelo homem, a alienação e a religião. Além disso, observamos que existem na mesma obra elementos de crítica ao regime ditatorial do período em que ela foi composta. Entretanto, essa crítica transcende o contexto histórico do autor e chega ao Universalismo por atacar também o sistema capitalista. Enfim, é uma obra rica, de densidade social muito forte e que serve como alerta para que o “povo feliz” e “marcado” deixe de ter uma “vida de gado”.