Democracia racial

Tema que evoca discussões apimentadas e que sempre desaguam em um nome - Gilberto Freyre, que usou da comparação da sociedade segregacionista dos Estados Unidos em relação à sociedade escravista brasileira, totalmente construída na escravidão e de população constituída na sua maioria de mestiços e negros. Sociedade marcada por 300 anos de tráfico escravo continental. É uma sociedade racista em sua essência, e escravista de formação, desde o início tratou de reduzir a humanidade do negro em um tratamento de subjulgação, com punições aviltantes, castigos físicos, que atingiam sua integridade física e até lhe custavam a vida. Brancos eram senhores da vida e da morte de seus cativos (peças). Muito distante do tom romanceado do autor de Casa Grande e senzala, afirmou serem cordiais as relações entre brancos(senhores) e negros(propriedade dos senhores), sendo que na realidade, os primeiros davam ordens; os outros obedeciam ou eram “convencidos” a obedecer. Não pode existir cordialidade em uma relação em que um dos envolvidos não tenha voz.

Na dita democracia política americana os negros não tinham representação igualitária na sociedade.Mesmo por que são a minoria da população. Considerados raça inferior. A ‘Democracia racial’ brasileira nunca foi igualitária e não garantiu direitos iguais para negros e brancos, apenas essa “democracia” manteve o povo acreditando na igualdade da população e sob controle. Durante muito tempo a esquerda progressista endossou este discurso, deixando de fora as lutas raciais que se travavam e se travam em todos os âmbitos. Sem contraponto, a população negra viveu muitos anos, a hierarquização, baseada em uma pseudo-ciência, que privilegiava a raça branca em detrimento das demais. O que favoreceu a discrepância histórica entre as classes sociais brasileiras, e relegou aos negros a identidade de classe pobre. São mestiços e descendentes de escravos que no início do século XX, após a Abolição foram colocados à margem da sociedade que sonhava com o branqueamento da população trazendo imigrantes brancos de outros países para trabalhar em postos de trabalho assalariado e que em alguns casos receberam terras se se casassem no Brasil. Daí começa a se desenhar a sociedade mais desigual que se formava. Ao negro não era permitido ter propriedade e nem estudar. Além disso foram obrigados a viver nas periferias das cidades.

Florestan Fernandes afirma que a Democracia racial se trata de um mito quando esconde que existe uma classe da qual são mantidos os privilégios e outra que é explorada e até eliminada. Achille Mbembe fala sobre a necropolítica aplicada na sociedade e que define quem pode morrer (descartáveis) e os que devem viver.

O poder e as elites cria mecanismos que dificultam a ascensão social dos pobres e negros, que com raríssimas excessões alcançam projeção social. Em uma população de maioria negra e mestiços não se encontram advogados, médicos, juízes, oficiais das forças armadas negros. Nem mesmo na classe média são vistos. Desde o início são considerados como inimigos e se de algum modo clamam por direitos, ou fazem algum movimento como greve, são taxados de baderneiros e o braço armado da sociedade - a polícia ou exército é chamado para “acalmar” os ânimos. Em resumo, classe pobre foi convencida que as lutas por direitos são baderna e que deve se conformar por estar nesse lugar. Mas é um pensamento que não se sustenta e a história está aí para nos contar de várias sedições que provam que não somos um povo cordato como nos querem nos fazer acreditar.

No texto Racismo, Desigualdade e Violência critico a posição da elite e do poder, na figura que é conhecida como o “Pai da Independência”, José Bonifácio de Andrada, que em uma fala diz que o negro traz uma mácula, que é a cor. Já na sua “fundação” o Brasil dá as costas para essa parcela da população. A raça não é uma questão que apenas aos negros atinge. O povo nordestino é atingido pelo preconceito dos brancos do sul do país que os denominam “Os paraíbas”, “cabeças chatas” e por aí vai. Em uma leitura mais atenta do processo do ex- Presidente Lula, Luis Fernando Vitagliano fala:

“ Não tem provas, mas suas convicções mostram que um filho de retirante nordestina, que foi engraxate e se tornou torneiro nas fábricas do ABC não pode ter caráter de presidente, não pode desempenhar essa função corretamente. Por trás disso existe o preconceito sempre presente nas elites brasileiras de que Lula não pode dar certo e se deu, é preciso condená-lo e recuperar as rédeas da história.” (grifo meu).

O preconceito seja de raça ou de classe sempre pautou a política nacional e manteve seus “valores” com pulso forte e rédea curta. O preconceito de gênero mantém mulheres na posição de “escravas de luxo”, “ignorantes” dependendo da cor da pele. E outros tantos preconceitos de uma sociedade que faz “indigno” o existir por ser diferente.

Concordo com Gilberto Freyre, na busca da unidade, mas não devemos apagar as desigualdades forjadas ao longo da história. Muitos brasileiros nasceram da violência sexual de senhores que estupravam suas escravas e até mesmo as índias desde a invasão. Quiseram transformar uma convivência sangrenta, de ingredientes (usando uma metáfora) ditando uma receita indigesta. Receita essa, que, hora ou outra, terá suas consequências.

Os movimentos negros arrefeceram suas lutas após a Abolição e a Proclamação da República por que alguns perderam a motivação pois as causas das lutas foram “resolvidas” pelo alto e contentaram os poderosos da época. A escravidão foi abolida mas por pressões externas já não acontecia desde o fim do tráfico negreiro no Atlântico. O trabalho remunerado já acontecia e alguns ex-escravos se adaptavam à nova forma de trabalho. A Abolição aconteceu em um contexto que no mundo teorias que justificavam o racismo e alegavam a falta de inteligência dos negros. Portanto serviriam apenas para trabalhos que exigissem força física, não poderiam estudar porque não aprenderiam. Desta forma a educação foi negada ao negro e por conseguinte um futuro digno. Educação foi dada de forma elementar, com algumas restrições aos brancos pobres, porém de forma que nunca ameaçasse os privilégios da elite.

Em recentes governos progressistas, a percepção que algo precisaria ser feito para tentar diminuir as desigualdades que colocavam em cheque a “Democracia racial”, que não existe na prática. Foram viabilizadas em práticas de políticas afirmativas. Políticas essas que aproximavam a população pobre advinda de escola pública e que se declarasse negra, faria jus à uma cota racial. Sobre esse assunto tenho algumas considerações:A princípio fui contra essa política, com o argumento que se a prova é a mesma e se nela não era solicitada a informação “raça”, o que justificaria as cotas? Com um pouco mais de observação, percebi que as desigualdades incluíam morar distante das universidades, trabalhar o dia todo, ser responsável pela família, alimentar-se apenas na escola, não ter acesso à produções culturais, ser o primeiro da família a cursar o ensino superior e até mesmo o único a estudar.Ser filho de operário, ou de aposentado, vir de família numerosa. Olhando o ambiente universitário, era perceptível a pequena presença ou a ausência de negros e mulatos. Seria exótica a presença de um indígena. A maioria branca, “bem nascida”, pais bem colocados na sociedade, dedicação exclusiva aos estudos, interessados

por livros, eventos culturais. Nunca se preocuparam se faltaria o café da manhã. Por todas essas considerações, afirmo que nem todos nascem iguais. Nem todos têm as mesmas oportunidades, nem todos têm as mesmas condições ao começar. Pensando mais um pouco, se a maioria da população é negra ou mestiça, por que isso não corresponderia à maioria dos estudantes universitários? A maioria dos professores , a maioria dos advogados, a maioria dos médicos, a maioria dos juízes? A estrutura das instituições que falo no início do texto, responde à essas perguntas. Uma parcela da população não poderia ter esse acesso a lugares reservados para a elite. Esse é o lugar que fazem guerras para manter. De que importa que outros não possam alcançar. O prazer do sádico é chegar onde só ele pode chegar.Falávamos de que mesmo? De Democracia racial? Te enganaram mesmo.