A Síndrome de Raskólnikov

Para quem já leu o livro “Crime e Castigo” do magnífico escritor russo Fiódor Dostoiéviski é familiar o nome Raskólnikov, para quem não o conhece apresento-lhe de início: Rodion Românovitch Raskólnikov, personagem principal da trama de crime e castigo. Um jovem estudante atormentado por seus pensamentos e questões existenciais, e com isso, vive a angustiante crise de “achar que é, e não ser o que pensa ser, ou talvez por achar que é o que é, não ousa pensar que talvez não seja aquilo que diz ser”. Confuso? Sim. Bem vindo ao mundo de Raskólnikov.

Pelas ruas de São Petersburgo, Raskólnikov é apenas mais um dentre os moribundos russos e estrangeiros angariando um lugar ao sol, a diferença de Raskólnikov para os demais não está apenas no seu modo de ver o mundo, mas no modo de sentir-se parte dele. Dentre os diversos dilemas deste jovem, quero me ater somente ao dilema que este tem consigo e com a humanidade, Raskólnikov é atormentado pela angústia de ser extraordinário, num mundo repleto de seres ordinários, essa questão é de extrema importância para ele, já que disso dependerá toda a sua escolha, a questão social que ele carrega, questão essa que poderá ajudar outras pessoas, no entanto, terá que infringir uma lei, daí a importância da questão, para por em prática a sua questão social precisa escolher entre matar ou não a vida (quase finda) de uma senhora de “recursos”. Raskólnikov está neste dilema porque é atormentado pela crise do mundo dos privilegiados e dos não privilegiados, é atormentado pelas dívidas e pela falta de recursos para solucioná-las, é espremido pelo cubículo onde diz ser uma casa, é aprisionado pela idéia de que no mundo, alguns seres têm o direito de ultrapassar certos limites.

Raskólnikov deduz que a senhora de recursos é um problema para o “mundo”, que se ele acabasse com ela e usasse os seus recursos para o “bem”, ele estaria de fato, corrigindo uma falha teleológica da humanidade. Ele pensa isso, porque acredita haver entre a humanidade uma divisão hierárquica, acredita existir entre os humanos a classe dos que são predestinados a obedecer, cumprir ordens, regras, seguir rotinas e simplesmente aceitar o que lhes é dado, e numa outra camada, existem àqueles predestinados a fazerem grandes escolhas, escolhas tais que irão mudar a vida daqueles meros seres nascidos para obedecer, para eles estão autorizados ultrapassar os limites estabelecidos para os ordinários.

Para afirmar a sua tese Raskólnikov remete as guerras travadas por Napoleão Bonaparte e as milhares de mortes decorridas das grandes batalhas “necessárias” para as grandes mudanças da humanidade, tais mortes nestes casos não poderiam levar em conta se comparadas com o “benefício” maior que trariam para a humanidade, ou seja, para seres extraordinários como Bonaparte a quebra de leis é “permitida”.

Atormentado por essa questão Raskólnikov logicamente se coloca no rol dos extraordinários, e com isso, decide dar fim a vida “desnecessária” da velha de “recursos”, e, com isso, pensa estar fazendo algo “bom” para a humanidade. Não preciso dizer que ele estava errado, se quiser tirar prova recomendo a leitura densa deste belo romance.

Retomo esse personagem para diagnosticar um dos grandes males de todo Homem: “pensar demasiadamente sobre si”, chamo de “síndrome” de Raskólnikov porque como diz a própria palavra, “síndrome é um conjunto de sinais e sintomas observáveis em vários processos patológicos diferentes e sem causa específica” no caso do nosso jovem a causa era uma superioridade diagnosticada em si mesmo.

O mais cômico é que o personagem de Dostoiéviski é o retrato do Homem atual enclausurado e protegido em suas redes sociais. O “democrático” é aquele que aceita somente opiniões iguais as suas, o que pensa diferente é inimigo, e como todo inimigo, precisa ser aniquilado. O problema é que esse sujeito democrático é tomado por essa “síndrome” e não basta ser “democrático”, é necessário convencer o mundo que a sua causa beneficia a humanidade. Nunca se viu tantos seres extraordinários como o vemos agora, todos os avanços que grandes homens do passado nos legaram não se comparam com os “gênios” do século XXI, hoje, todos eles têm uma causa que beneficia a humanidade, e que se for necessário destruir reputações para isso, anular o outro, não tem problema, já que assim agem por uma causa maior, ou seja, estão autorizados a quebrarem os limites do bem senso e do bem comum.

O problema do mundo para estes seres extraordinários é sempre o outro, a causa do mal são sempre os ordinários que de forma presunçosa e egoísta “engordam” seus desejos mesquinhos e miseráveis. É necessário combate-los, destruí-los, e com isso, consertar uma falha no mundo, e dar continuidade a história humana de forma “justa” e “celeste”.

Talvez esteja aí o vírus do “ódio” que impera nas redes sociais.

Precisamos de um antídoto para a cura da síndrome de Raskólnikov.

Quem sabe a terapia não seja um caminho. Acho que todos eles poderiam dizer sem medo ao terapeuta: “Sou extraordinário me ajuda a mudar o mundo!”

O terapeuta usaria apenas a frase antídoto: “Comece a mudar a si mesmo...” Daí de duas uma: ou o paciente sairia dali direto para algum órgão responsável por receber reclamações, alegando que o doutor fora desrespeitoso com ele, e este sofrera danos morais, ou simplesmente sairia do consultório ciente de que ele estava convencido demais ao pensar sobre si mesmo. Seria tão bom para o mundo se fosse a segunda opção.

Ah! Que esperança!

Luciano Cavalcante
Enviado por Luciano Cavalcante em 11/03/2018
Reeditado em 31/01/2019
Código do texto: T6277257
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