HERANÇA MALDITA

HERANÇA MALDITA
Lembro-me ainda quando criança, em uma pequena cidade do estado de Minas Gerais onde morava, que minha mãe, assim como tantas outras mães, pais e o povo em geral se acostumaram com o que chamavam “fazer uma fezinha” no jogo do bicho. Essa prática inocente de um jogo clandestino que nunca ninguém considerou “contravenção” – para quem ainda não o conheça e se é que exista alguém no Brasil quem não saiba de que se trata – consiste em aproveitar o sorteio da loteria federal e sorteios diretos diários, para, através da simbologia de bichos como leão, macaco, urso e etc., efetuar apostas diárias. A credibilidade da seriedade do pagamento dos prêmios tomou forma e o “jogo do bicho” ficou famoso, institucionalizou-se em nosso país como um divertimento sadio que remunerava e remunera bem (até porque está mais forte do que nunca), tanto que as bancas estão espalhadas por todas as cidades do país, sem exceção, abertamente, sem que nenhuma autoridade se atreva a fechá-las. E nessas condições formaram-se verdadeiros impérios financeiros, de contraventores. Ora, em um país que abriga vários tipos de jogos amparados pela própria lei, como a loteria esportiva, a loteria federal e tantas outras modalidades, como entender que o Estado pode e o povo não! O exemplo é terrível!
Tomando como referência a cidade mais linda do mundo – se considerarmos suas belezas naturais – o Rio de Janeiro é o melhor exemplo do que vem ocorrendo anos a fora, em todo o Brasil. Do “jogo do bicho” saíram os recursos para tornar o Carnaval o mais belo evento popular do mundo, concentrando nas favelas as indústrias artesanais das confecções de fantasias e adereços, fortalecendo a economia informal e empregando um grande número de pessoas. E como não poderia deixar de ser, com recursos sobrando, os morros foram ficando dominados por meliantes, com leis específicas e alto grau de envolvimento da população. Assim, o domínio pela força foi-se tornando presente e códigos de ética da malandragem passaram a substituir as leis e a inocular a justiça.
As forças policiais do Estado, pelas dificuldades estratégicas de se fazer respeitar, seja pelos obstáculos de acesso aos morros ou altos níveis de corrupção em suas fileiras, se acomodou durante anos. O que não se acomodou, seja pela ganância do poder ou pela riqueza advinda dessas atividades ilícitas foi a própria contravenção, fortalecida por inúmeros grupos armados, confundindo-se com as milícias, instituídas por grupos rivais para proteção da população, onde a presença da polícia sempre foi inócua e sem qualquer expressividade.
A partir da década de 70 começamos a conhecer uma outra realidade de vida – a presença das drogas – e passamos a conviver com o maior mal de todos os tempos, corroendo a mente de nossos filhos – levando-os ao vício e as famílias ao mais completo desespero. Mas, ao mesmo tempo que essas organizações criminosas cresceram e se fortaleceram, pelo mal que espargem, acabaram fazendo com que os seus antigos aliados, a população, se colocasse contra eles. E assim, agora vemos, uma série de incursões da inteligência policial – apoiada pelas Forças Armadas – lograrem êxito no combate ao crime, restituindo a paz onde só existia dor e sofrimento. Mas tudo isso será em vão se não se combater a “causa” junto com os “efeitos”. O “jogo do bicho” continua sendo o elo de ligação e de apoio ao investimento em armas e em drogas no país inteiro. Assim, espera-se que se dê a devida importância também ao combate imediato do “jogo de bicho” com ação repressiva imediata, como forma de exaurir os recursos da contravenção, financiada pelo próprio povo, inadvertidamente.
Urias Sérgio de Freitas