Menos sangue por favor

Quando existe um limite para um bem, outras forças devem entrar em ação para compensá-lo. É isso o que acontece hoje em relação ao transplante de células sanguíneas, nome mais apropriado à realidade do que ainda é culturalmente conhecido como transfusão de sangue.

Por mais que se façam apelos aos doadores e mesmo com o reforço daqueles que atendem ao chamado, o número de doações patina em torno dos 2% da população em média, o que é insuficiente.

O ritmo acelerado de vida, uma legislação restritiva por motivos de segurança e uma sociedade cada vez mais individualista faz com que poucos dos potenciais doadores se disponibilizem para o gesto e menos ainda efetivem a doação que poderá ou não chegar ao final do seu ciclo, ou seja, ao transplante de células sanguíneas no paciente.

Por outro lado, o aumento da complexidade dos procedimentos médicos, os assustadores números da violência no trânsito, dos quais os motociclistas são o destaque negativo, dentre outros fatores, aumentam a pressão sobre os estoques que devem ser geridos com sabedoria.

Nesse novo paradigma, em que a doação está estacionada ou é, de certa forma, decrescente, o gerenciamento e a racionalização são a nova chave que nos permitem obter ganhos nos tratamentos.

Já não existe espaço para o improviso e qualidade é a palavra de ordem, mais que um modismo.

E é nesse novo contexto de crise que a hemoterapia luta para firmar-se como uma especialidade reconhecida de fato e não apenas de direito. Se a era científica das transfusões (para retomar o termo) iniciou-se no nem tão distante princípio do século XX, com a descoberta do sistema ABO por Karl Landesteiner, ainda se observa pouco mais de um século depois, certo empirismo na cultura médica relacionada às transfusões.

Ainda se decide pela utilização de hemocomponentes com base em mitos, como valor de 10 g/dl de hemoglobina para todos os pacientes em pré-operatórios, para citar apenas um de muitos exemplos.

Se crises são oportunidades de melhoria, a atual crise passa, obrigatoriamente pela multidisciplinaridade na qual o papel do serviço de hemoterapia é o daquele que não pinta, mas que segura a escada para que o pintor possa executar bem o seu trabalho. Sem a segurança das suas responsabilidades não há como alcançar plenamente os objetivos, por maior que seja a habilidade técnica empregada na execução.

Para qualquer um que tiver curiosidade em conhecer um pouco mais a história dos riscos transfusionais, legislação, pareceres e precedentes publicados pelos conselhos de classe, será fácil verificar a clareza com que é colocado o escopo e autonomias de um serviço de hemoterapia, mesmo em relação às decisões terapêuticas.

Não se trata de um intervencionismo gratuito e nem mesmo de um intervencionismo, uma vez que cabe à agência fazer cumprir as regras de um protocolo estabelecido pelo Comitê Transfusional, órgão colegiado, obrigatório por lei e independente que regula todas as questões relativas ao transplante de células sanguíneas, com base na literatura mais atual e nas observações, cientificamente embasadas do próprio serviço.

Reduzindo as transfusões ao mínimo realmente necessário e mantendo um rigoroso protocolo de transporte, preservação e uso de hemocomponentes, beneficiamos não apenas os pacientes que recebem menor quantidade de um elemento potencialmente perigoso, embora benéfico e preservamos estoques para os demais pacientes quando a transfusão ou transplante se fizer realmente necessário.

E sempre ajuda o reforço do médico e enfermeiros ao lembrarem aos pacientes e familiares a necessidade de se fazer a doação de sangue, esse bem escasso, delicado e difícil de trabalhar e que não pinga em torneiras.

Marcelo Froes Assunção