UM HOMEM AGRADECIDO

UM HOMEM AGRADECIDO (091)

Antônio Mesquita Galvão

O texto para a iluminação

Indo para Jerusalém, Jesus atravessava a Samaria e a Galiléia. Quando ia entrar num povoado, vieram-lhe ao encontro dez leprosos. Pararam ao longe e gritaram: “Jesus, Mestre, tem piedade de nós”. Ao vê-los, Jesus lhes disse: “Vão e apresentem-se aos sacerdotes”. E aconteceu que, no caminho, ficaram limpos. Um deles, vendo-se curado, voltou glorificando a Deus em voz alta. Caiu aos pés de Jesus e, com o rosto em terra, agradeceu-lhe. E este era um samaritano. Tomando a palavra, Jesus disse: “Não eram dez os que ficaram limpos? Onde estão os outros nove? Não houve quem voltasse para dar glória a Deus senão este estrangeiro?” E disse-lhe: “Levanta-te e vai! Tua fé te salvou” (Lc 17, 11-19).

Os leprosos da Palestina

Dentro do espírito religioso que imperava entre os povos da antiga Palestina, todas as doenças eram um castigo de Deus por causa dos pecados das pessoas. Em alguns casos, essa visão distorcida de Deus enseja a suspeita de que o castigo a um pecador atingisse mais de uma geração de sua família. Na palavra lepra, vamos encontrar, em sua raiz hebraica, sãrat, que equivale a “ser ferido por Deus”. Há quem veja relação com nagah, ferida. Muitos duvidam que a doença da antigüidade seja a lepra de hoje em dia

Não só os escritos do Antigo Testamento, como de resto toda a cultura palestinense e do Oriente Médio afirmava que Deus, quando desrespeitado, feria as pessoas com ulcerações na pele (cf. Nm 12, 10s; Dt 28, 35; 2Cr 26, 20). Era uma cultura em que tudo dependia da causalidade divina. O termo lepra abrangia também o mofo em roupas e móveis, os fungos e as manchas de salitre nas paredes. Por ter uma conotação eminentemente religiosa, a declaração de doença ou de cura da lepra tinha que ser dada por um sacerdote (cf. Lv 14). Como atribuíam um caráter de castigo divino à doença, em geral não falavam em cura, mas em purificação.

Os leprosos, por impuros, física e espiritualmente, ficavam segregados, impedidos de conviver com o resto do povo. Hoje discute-se o contágio da lepra; naquele tempo, esses doentes eram segregados em colônias. Muitos estudiosos da cultura do Oriente Médio, afirmam que aquilo que os antigos atribuíam à lepra, nada mais era que simples problemas de pele, eczemas ou feridas mal curadas, tudo agravado pela falta de higiene e pela medicina incipiente, fatores característicos da época.

Na Palestina antiga excluíam-se os leprosos do convívio social, como aliás, até vinte anos atrás faziam nossas sociedades modernas, ainda imaginando que a lepra fosse contagiosa. Havia aí o ingrediente social da discriminação, bem latente. E também o econômico: os ricos, em geral por terem uma melhor higiene, eram menos propensos a contrair essas doenças de pele. Os casos de cura podiam acontecer através de uma higiene mais caprichada, tratamento com ungüentos e óleos adequados, pela purificação (do pecado) e através de uma intervenção taumatúrgica (milagre). Para a maioria das pessoas, acometidas por esse tipo de lepra, pela falta de higiene e tratamento inadequado, a doença era praticamente incurável. A cura dessas moléstias é sinal da presença do Messias:

Aquele que deve vir cura os leprosos (Mt 11, 5).

Embora muitas doenças, na antigüidade, fossem atribuídas aos espíritos maus, a última palavra, dentro daquele antropomorfismo que animava os escritos antigos, era de Deus:

É Deus que dá a vida (Eclo 38, 9ss.14), ... ele fere e cura (Dt

32, 29).

Jesus e os doentes

Jesus encontrou muitos xolé (enfermos) em seu caminho. Os evangelhos nos revelam muitas situações em que, desesperados, os doentes pedem ao Mestre o dom da cura. De todos, Jesus sente compaixão (cf. Mt 20, 34). Os grandes sinais (milagres) de Jesus resultam de curas de doentes. Diante da doença, Jesus sempre faz uma exigência: que os enfermos creiam nele, que tenham fé, pois a quem tem fé tudo é possível (cf. Mt 9, 28; Mc 5, 36). A fé em Jesus implica sempre em uma fé no Reino dos Céus, e esta é a fé que salva (cf. Mt 9, 22; Mc 10, 52). A cura antecipa o estado de perfeição do Reino.

No aspecto pastoral, o texto ora em questão, nos revela alguns pontos dignos de estudo. Primeiro, demonstra a fragilidade humana. O homem pode estar são hoje e cair doente amanhã. Depois, revela o grande poder curador de Jesus Cristo. A cura, mesmo a elaborada pelos médicos, tem origem no desvelo paterno de Deus. Há, igualmente, que se considerar a necessidade de sermos gratos a Deus pelos dons que ele continuamente dá, entre eles, a vida, o perdão, o amor, a cura de nossos males, a esperança. Por último, o gesto de gratidão do samaritano curado, que volta para agradecer, revela a aceitação do evangelho. Por outro lado, aqueles que, mesmo curados, dão as costas a Jesus, mostram os tantos que rejeitam o conteúdo da boa notícia. São todos os interesseiros e oportunistas da história humana.

A caminho de Jerusalém

Há aqui um interessante aspecto histórico da vida de Jesus, onde se dá o inverso do episódio do encontro com a mulher samaritana (cf. Jo 4, 3). Lá, Jesus ia de Jerusalém para a Galiléia. Aqui, já no fim de sua vida pública, sabendo que seu tempo está se esgotando, ele se dirige à capital. Essa jornada, que tem início em Lc 9, 51, vai ser concluída em Lc 19, 28, onde ocorre a Paixão. São Lucas é chamado de “o evangelista dos samaritanos”, tamanho o número de narrativas envolvendo o povo da Samaria.

Há quem diga que o evangelista tem predileção pelos samaritanos porque na Samaria teriam lugar os primeiros núcleos de evangelização (cf. At 8, 5-8). Também há quem afirme que, sendo ele um estrangeiro, talvez tenha enfrentado a mesma discriminação sofrida pelos samaritanos. É possível...Nessa caminhada na direção de Jerusalém, ressalta-se, mais uma vez, a pedagogia de Jesus, convidando a todos que querem se unir a ele. Há conflitos, pois muitos não aceitam o convite e preferem continuar imersos em seus sistemas de vida. A caminho de Jerusalém Jesus ensina, curando o leproso, a necessidade de que a evangelização seja estendida a todos. Os discípulos ainda não desconfiam que a Samaria será um dos primeiros lugares onde eles serão chamados a testemunhar o Ressuscitado (cf. At 1, 8).

Um grupo de excluídos

Os leprosos eram os mais excluídos na sociedade palestinense. Por causa de suas chagas eram impedidos, por lei, de se aproximarem das pessoas. A distância máxima que era permitido chegarem perto dos demais era cem passos. A doença, como foi dito, era sinônimo de pecado. As autoridades entendiam que o leproso sofria conseqüências dos pecados que cometera. Hoje em dia, tantos regulamentos, manuais, restrições e discriminações igualmente mantêm as pessoas longe de Deus. Hoje, exclui-se os considerados “pecadores” (pelo establishment religioso), os pobres (pelo poder econômico), as mulheres (pela sociedade machista), os estrangeiros (pelos xenófobos) e os negros (pelo ódio racial).

O grupo dos dez leprosos, excluídos da sociedade por causa da doença (e do pecado), conforme a narrativa, era composto de nove judeus e um samaritano. Embora praticamente inimigos, sob o sofrimento da doença, os judeus e o samaritano andavam juntos. A miséria une as pessoas e dissipa os preconceitos. Amor próprio, orgulho e arrogância são melhor cultivados na opulência. Vendo Jesus, aqueles homens reuniram forças e gritaram:

Jesus, Mestre, tem piedade de nós ! (v. 13).

O ato de levantar a voz, clamando a Deus por sua intervenção é um momento forte, um ato de fé em que a pessoa, reconhecendo sua miséria, brada aos céus, pedindo socorro. Os profetas são unânimes em afirmar que Deus se move pelo clamor. Ele nunca deixa de atender o clamor de alguém, que no fundo de sua miséria clama por ele.

Vão e apresentem-se aos sacerdotes (v. 14).

Estava se encaminhando o milagre. De excluídos aqueles homens agora se tornavam incluídos. Pelo menos, se ainda não, nas rodas sociais e religiosas, pelo menos no amor de Deus. No caminho, antes de se apresentarem aos sacerdotes, eles ficam limpos, de corpo e de espírito. Estava feito o milagre, por causa do clamor dos homens doentes, Deus interveio e operou o milagre.

Muitos séculos antes, um general sírio, Naamã, que também sofria de lepra, foi curado pelo profeta Eliseu (cf. 2Rs 5, 15). Depois de sanado de seus males, o estrangeiro voltou para prestar homenagens e agradecimentos ao homem de Deus. Começava a delinear-se que a cura, prefigurando a universalidade da salvação, estava disponível a todos. Só busca a cura aquele que tem consciência de sua doença. Só procura a ajuda sobrenatural aquele que confia no poder de Deus.

Graças e louvores pelos dons recebidos

O samaritano, quando se viu libertado de sua doença, sentiu-se duplamente tocado. Pela cura, logicamente, e pela generosidade daquele que o livrou da enfermidade. Por isso ele precisa manifestar sua gratidão:

Ele glorificou a Deus em voz alta (v. 15).

Quantos de nós, agraciados, todos os dias, pela vida e por tantos dons de Deus, temos a gratidão de glorificar o autor de nossa felicidade? Não contente em glorificar a Deus, o samaritano fiel

Caiu aos pés de Jesus e, com o rosto em terra, agradeceu-lhe (v. 16).

O que fora leproso veio agradecer a cura do pecado, e da doença que a ele atribuíam. Ao clamar ao Senhor, ele foi curado e salvo pela fé. Os outros, que se esqueceram de dar graças a Deus, apenas ficaram limpos de seus males físicos. O samaritano ficou curado, não só fisicamente, mas também sua alma experimentou a regeneração, o dom que brota de Deus. Para caracterizar a condição de excluído deste homem, o evangelho usa uma frase simples porém reveladora:

E este era um samaritano (v. 16b).

A Escritura faz essa alusão, quem sabe para perguntar: E onde ficaram os nove filhos de Abraão? O samaritano, alguém considerado detentor de uma fé deturpada, visto por muitos como pagão, membro de uma raça considerada mestiça, inferior, voltou e agradeceu a Jesus pela cura efetuada. E os outros? Um entre dez curados, nos remete ao percentual de 10%. Teria sido uma profecia, em que apenas 10% dos contemplados pelos dons de Deus haveriam, pelos tempos afora, de prestar-lhe culto e ação de graças? A ingratidão por parte dos membros do “povo eleito” substitui-se pelo agradecimento dos excluídos?

E hoje, num tempo de graças, onde estão os cristãos, os batizados, os “engajados”? Na narrativa eram dez pessoas. Nove “fiéis” desprezaram o doador dos dons. Um pagão aceitou. É por isso que se diz que Deus não olha o espalhafato das atitudes, mas contempla o interior do coração. Agradecer é dar glória a Deus, é dizer que ele é aquele que cura e salva. O homem não tem poder absoluto de curar nem tampouco de salvar. A maioria das pessoas, enquanto atribui suas venturas à sorte, à ajuda dos outros ou à própria competência, debita o insucesso à “vontade de Deus”. O samaritano clama, glorifica, louva e agradece. Este é o papel que cabe ao verdadeiro discípulo de Cristo. Às vezes somos assim: as coisa boas creditamos a nós, à nossa capacidade; as ruins, à vontade de Deus. As palavras de Jesus são diretas e definitivas:

Levanta-te e vai! Tua fé te salvou! (v. 19).

A fé é um dom de Deus que nasce de outro dom, a esperança (vv. 12-13), cresce na obediência à Palavra de Deus (v. 14) e se completa com o louvor e a gratidão (vv. 15-16). A cura e a salvação são dons de Deus. Gratuitos e abundantes, frutos do seu amor e da sua misericórdia. Se a doença – embora não sendo coisa de Deus – é fruto do pecado, a cura e a salvação são obras divinas. No caso do samaritano a ação de Jesus é eficaz e completa:

Levanta-te e vai! (v. 19)

A ordem de se por em pé é um indicativo de que Deus está intervindo na vida daquele homem, caído e alquebrado pela doença, pelo desespero, pela discriminação e pela perda de referencias de vida. Ele não quer o homem caído, encurvado pelo peso de suas culpas e enfermidades, mas ereto, revestido de dignidade. O samaritano podia até fisicamente estar de pé, mas moralmente, por certo andava de rastos. Ao curá-lo Jesus restabelece sua dignidade física e espiritual, moral e social. A doença, que tem causa original no pecado, se manifesta na fragilidade humana e desestrutura toda a nossa vida. A pessoa enferma se deixa abater, é presa de revolta e remorsos, que lhe roubam a auto-estima e a esperança. A doença tem reflexos e características físicas, mentais, espirituais e de comportamento. Sintomaticamente, os outros nove, quem sabe até membros das hierarquias religiosas, alguns enfurnados nas sinagogas dos judeus, viram-se livres da doença, mas mantiveram-se cegos ao poder de Deus, permaneceram caídos na obscuridade de seu pecado. É a velha arrogância do ser humano: se estou mal, foi vontade de Deus; de estou bem, é pelos meus méritos. Além de mandar que o samaritano seja definitivamente curado e levante-se, Jesus lhe diz:

... vai! (v. 19).

Ora, esse ir não se aplica apenas ao ato de caminhar, de ir em frente. É como cantamos, “segura na mão de Deus e vai...”. Trata-se de uma atitude de confiança, uma projeção à vida plena e ao futuro garantido pela abundância dos dons de Deus. Sobre o valor de ser grato a Deus, pelos benefícios recebidos, encontramos em São Paulo alguns trechos bastante reveladores:

Tudo o que vocês fizerem através de palavras ou ações, façam-

no em nome do Senhor Jesus, dando graças a Deus por meio

dele (Cl 3, 17).Dou graças a Deus, a quem sirvo com pureza

de consciência como aprendi de meus pais (2Tim 1, 3).

Jesus deixa claro que o homem agradecido age impulsionado pela fé, independente de sua nacionalidade, hierarquia ou do status que ele tenha na Igreja ou na sociedade. Por isso, o samaritano escuta, da boca do Mestre, uma afirmação que nenhum dos outros nove, considerados “filhos de Abraão” escutou:

Tua fé te salvou! (v. 19b).

Neste particular, a cura operada por Jesus deu ao samaritano, em face de sua gratidão, um corpo são e uma alma renovada. O homem cumulado de dons de Deus, vive em constante ação de graças ao Deus da Vida. Sem a intervenção de Jesus na vida humana, somos condenados à doença física e à perdição do espírito. É preciso estar atento aos dons que Deus, constantemente, nos dá. Estar atento e, como o samaritano, dar graças a Ele.

Questões para orientar debate em grupo

1. Qual a importância da “ação de graças”?

2. Que relação existe entre doença e pecado?

3. Por que a sociedade exclui os doentes? Qual o dever dos

cristãos nesse aspecto?

4. O que temos a agradecer a Deus?

5. Você acredita no poder curador de Deus?

6. Você recorre a ele?

7. A que você atribui o fato de nove curados não voltarem a

Jesus para agradecer-lhe? Há remanescentes desse

comportamento entre nós, hoje?