Justos, pecadores e ímpios

JUSTOS, PECADORES E IMPIOS

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Frequentemente, nos encontros e cursos que tenho assessorado por aí, as pessoas costumam me perguntar qual a diferença entre ímpios, pecadores e justos, revelando suas dúvidas, uma vez que, para elas ímpio e pecador é a mesma coisa. Será? Muitos confundem as palavras e não conseguem elaborar uma distinção adequada entre o sentido de cada uma delas.

Quando morei na Paraíba (1980-1985), tive um mestre em espiritualidade bíblica, Padre Manuel Lima, hoje afastado do ministério, que dizia que o pecador está a meio caminho entre o céu e o inferno. O ímpio, segundo ele, vive com um pé no inferno, enquanto o justo já estaria colocando um pé no paraíso. Exageros e simplificações a parte, o fato é que acho que deveria se estabelecer uma ordem, como que uma graduação, a partir dos justos.

A característica do ser justo é uma idealização, pois nesta vida todos somos pecadores, em busca da justificação. A justificação, como a conversão é obra de uma vida toda. Jesus veio para realizar um resgate escatológico dos pecadores (cf. Mc 2,17) e quem diz que não tem pecado (que não é pecador) faz de Deus um mentiroso (cf. 1Jo 1,8ss), pois ele deu seu Filho para nos livrar do império do pecado (cf. Jo 3,16). Considerando a advertência de São Paulo,

Quem pensa estar de pé cuide-se para não cair (1Cor 10,12)

é salutar que o ser humano estabeleça sempre, em sua vida, uma perseverança radical no bem e uma constante vigilância para não perder a condição de justo. Ao contrário do que afirmam algumas correntes evangélicas e milenaristas de fulcro calvinista, não existe uma predestinação radical ou irreversível: alguém nascer já destinado à perdição e outro à salvação. Não!

Homem algum nasce excluído da graça. Jesus veio para todos. O desejo de Deus é que o homem se santifique. Ninguém nasce antecipadamente condenado ou réprobo. Durante a vida, de acordo com a liberdade que todos tem, cada um faz sua escolha: com Deus ou contra Deus. É aí que se manifesta o justo ou o ímpio.

Só o amor, em todas as suas formas mais perfeitas é capaz

de cobrir, de apagar e erradicar o pecado (cf. 1Pd 4,8).

O verbete ímpio, no hebraico tem o sentido de transgressor; e aparece no Antigo Testamento (cf. Is 10,6) como evratîm, que trazido para o grego nos chega como anomós (sem lei). Considerando que pecado, na língua dos judeus é há’tat, pecador é referido como hata’îm (cf. Gn 13,13). Enquanto justiça é çedaqah, os justos são chamados de tsâdyqîm. É interessante notar que as três palavras enfocadas neste parágrafo, por grafadas com a terminação im, indicam um plural.

A teologia bíblica ainda cataloga, a partir do grego, alguns vocábulos que podem nos ajudar a entender melhor o assunto ora enfocado, como dikáios (justo), dikaiosyne (justiça), amartolós (pecador) e assebés (sem crença, herege, ímpio). No hebraico, aparece muitas vezes o verbete Kadoš (kadosh) que quer dizer santo. Os dicionários nos apresentam como antônimos o ímpio e o justo. Os justos são aqueles que seguem a Deus, aceitaram Jesus como Senhor e Salvador e obedecem aos mandamentos do Senhor, ou seja, são aquelas pessoas que buscam, nesta vida, o Reino futuro. Embora não exista uma predestinação para a justiça ou para a impiedade, a partir daquele conceito, somos capazes de entender quem são os ímpios.

Ímpio é aquele que segue ao diabo, suas pompas e suas obras, e sujeita-se a queimar no lago de fogo destinado “àqueles cujo nome não foi achado escrito no livro da vida (Ap 20,15). Os ímpios são aqueles que seguem o curso desse mundo entre os filhos da desobediência (cf. Ef 2,2). Se o ímpio segue o curso desse mundo ele segue uma vida de pecados e iniqüidades. Segundo o Salmo 1, o ímpio é como uma árvore seca, não produz frutos e é levado por ventos de doutrinas humanas, e o salmo conclui a respeito dos ímpios:

Por isso os injustos não ficarão de pé no Julgamento, nem os

pecadores na assembléia dos justos. Porque Javé conhece o

caminho dos justos, enquanto o caminho dos injustos perece

(Sl 1,5s).

Há outra classe de ímpios, perigosos, que pensam que são santos. São os chamados “religiosos”. Quem são estes? São os crentes tipo “Raimundo”, um pé na Igreja e outro no mundo, ou seja, é aquela pessoa que por tradição familiar, cobrança dos pais, imposição da sociedade ou até mesmo por medo do diabo, frequenta a igreja mas não com o intuito de ser santo, de viver a vida de Cristo.

São aquelas pessoas que continuam vivendo os costumes, hábitos e tradições mundanas: Mentem, se embriagam, são invejosos, egoístas e egocêntricos, explosivos, não perdoam, guardam mágoas e ressentimentos, entre outras coisas. Usam a Igreja para aparecer, para adquirir notoriedade, para ganhar dinheiro, para dominar, etc. Aos seguidores da divindade Baal o profeta Elias advertia:

Então Elias se aproximou do povo e disse: “Até quando vocês

vão mancar com as duas pernas? Se Javé é o Deus

verdadeiro, sigam a Javé. Se é Baal, sigam a Baal”

(1Rs 18,21).

Ímpio quer dizer não pio (não-piedoso), alguém que não pratica a piedade que é o somatório dos seis dons do Espírito (cf. Is 11,1s). Há maus cristãos, incircuncisos (cf. At 7,51), que falseiam os sinais da sua conversão. O justo por testemunhar uma conversão real, no Espírito, é um vencedor. O ímpio, por querer mostrar uma conversão falsa e ilusória, na carne, é um fracassado. O homem de Deus usa a Verdade de Deus, enquanto o homem do diabo usa a linguagem da falsidade. Temos que encher nossas igrejas de vencedores e não de fracassados.

Ao injusto, porém, Deus declara: “De que adianta você recitar meus preceitos e ter sempre na boca a minha aliança, se você detesta a disciplina e rejeita as minhas palavras? Se você vê um ladrão, você o acompanha e se mistura com os adúlteros. Você solta sua boca para o mal, e seus lábios tramam a fraude. Você se assenta para falar contra o seu irmão, e desonra o filho de sua mãe. Você se comporta assim, e eu devo me calar? Você imagina que eu seja como você? Eu o acuso e coloco tudo diante dos seus olhos!” (Sl 50,18-21).

Aqui, o “filho de sua mãe”, mais que um irmão carnal, é um membro da comunidade. Ora, se a Igreja é nossa Mãe, não podemos desonrar nem deixar de edificar a um membro dessa comunidade. Um pecado contra ele é um pecado contra a Mãe. De Deus ninguém se esconde, ele sabe o oculto que está nos nossos corações. Você até pode se esconder do padre, pastor, do ministro, do papa, mas de Deus você não conseguirá se esconder. Adão e Eva após desobedecerem a Deus e comerem do fruto proibido, tentaram se esconder.

Em seguida, eles ouviram Javé passeando no jardim à brisa

do dia. Então o homem e a mulher se esconderam da

presença de Javé, entre as árvores do jardim (Gn 3,8).

Eu, Javé, penetro o coração e sondo os pensamentos, para

pagar a cada um conforme o seu comportamento e segundo

o fruto de suas ações (Jr 17,10).

Deus sabe tudo o que fazemos. Davi, o rei-salmista reconheceu essa presença de Deus e a deixou bem clara para as gerações posteriores:

Javé, tu me sondas e me conheces. Tu conheces o meu

sentar e o meu levantar, de longe penetras o meu

pensamento. Examinas o meu andar e o meu deitar, meus

caminhos todos são familiares a ti. A palavra ainda não me

chegou à língua, e tu, Javé, a conheces inteira. Tu me

envolves por detrás e pela frente, e sobre mim colocas a tua

mão. É um saber maravilhoso que me ultrapassa, é alto

demais: não posso atingi-lo! Para onde irei, longe do teu

sopro? Para onde fugirei, longe da tua presença? Se subo ao

céu, tu aí estás. Se me deito no abismo, aí te encontro. Se

levanto vôo para as margens da aurora, se emigro para os

confins do mar, aí me alcançará tua esquerda, e tua direita

me sustentará (Sl 139, 1-10).

Mas afinal, qual a diferença entre um ímpio e um pecador? Não é tudo igual? Não, é diferente! Aqui me valho de mais uma lição do mestre Manoel Lima, que ensinava que pecador é aquele, como todos nós, que humanamente frágil, cai, mas sempre reconhece a extensão do seu erro, se levanta, recomeça, com projetos de não cair mais. O ímpio, o impiedoso, aquele que não desenvolve o dom da piedade, cai, gosta da queda, fica no chão chafurdando na sua lama e ainda procura trazer outras pessoas para conviver com ele naquele chiqueiro.

O pecado é passível de arrependimento e perdão. A impiedade não! A retribuição do pecado ensina São Paulo, é a morte (cf. Rm 6,23). O pecador que assume radicalmente sua opção pelo mal permanece morto para a vida da graça.

Mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Jesus Cristo,

nosso Senhor (v. 23b).

O povo pergunta: existe uma “fórmula” para sair da impiedade? Claro que existe! Ninguém, quando nesta vida, está definitivamente condenado e excluído. Sempre há uma oportunidade de retomar o caminho para a casa do Pai. Basta querer. No entanto, quanto mais profundo o grau de impiedade mas difícil se torna essa retomada. Vejam o que Javé nos diz através dos escritos inspirados do profeta Ezequiel:

O indivíduo que peca, esse é que deve morrer. O filho nunca

será responsável pelo pecado do pai, nem o pai será culpado

pelo pecado do filho. O justo receberá a justiça que merece e o

injusto pagará por sua injustiça. Se o injusto se arrepende de

todos os erros que praticou e passa a guardar os meus

estatutos e a praticar o direito e a justiça, então ele

permanecerá vivo, não morrerá. Tudo de mau que ele praticou

não será mais lembrado, e ele permanecerá vivo, por causa da

justiça que praticou. Por acaso, eu sinto prazer com a morte do

injusto? - oráculo do Senhor Javé. O que eu quero é que ele se

converta dos seus maus caminhos, e viva (Ez 18, 20-23).

No livro do Apocalipse o vidente alerta que no julgamento o Senhor virá para dar a cada um conforme as suas obras (cf. 22,12) Aí ficará definido quem é justo e quem é ímpio. Deus não castiga ninguém. As criaturas é que se excluem, de acordo com sua decisões.

Tudo o que o homem semear, isso também ele ceifará [Gl 6,8].

O Salmo 1, já falamos nele aqui, nos dá uma panorâmica sobre o comportamento do justo e do ímpio. O justo é apresentado como alguém que “não faz” e que “faz”. O que o justo não faz? O versículo 1 mostra que:

O justo não anda segundo o conselho dos ímpios; ele não se

detém no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos

zombadores.

Com isso o salmista quer dizer que o homem justo não adota para si os planos e nem o padrão de vida dos ímpios; não os acompanha em suas empreitadas pecaminosas. O que então o justo faz?

O justo é aquele que se ocupa, usando o seu tempo e a sua mente, em apreender a lei do Senhor, tendo, obviamente, como objetivo, andar segundo essa lei. Ele é um makários (bem aventurado) e é comparado a uma árvore frutífera plantada junto às margens das águas (v. 3)

O termo grego makários, empregado na Bíblia, significa “bem-aventurado”, “feliz”. Seu correspondente no hebraico é ashrei. Quem é fiel a Deus é feliz tanto interior quanto exteriormente. Sua felicidade não é produto das circunstâncias. Ela provém de Deus, e, portanto, é um dom gratuito do Pai das luzes.

A metáfora da árvore plantada junto às margens do riacho indica prosperidade. Uma árvore assim plantada conta com um suprimento abundante de água. Da mesma forma, o justo, por estar junto a Deus e à sua Palavra prospera, conta com o suprimento que Deus dá. O Senhor não deixa faltar o suprimento material e nem o espiritual. Como Jesus deixa claro, podem vir os ventos, a chuva, os rios, enfim, venha o que vier, essa pessoa não cai porque sua vida está edificada sobre uma Rocha (cf. Mt 7,25). O fruto produzido no justo vem do Espírito Santo.

Os ímpios, em contraste com os justos, não podem ser comparados a uma árvore bem regada e frutífera. Antes, são como a palha que o vento dispersa. O ímpio pode até “se dar bem” por algum tempo. Esse tempo até pode ser, ainda que não necessariamente, toda a sua vida terrena. Mas quando o juízo de Deus se abater ele não poderá resistir. De outro lado, sabemos que Deus conhece os justos que lhe pertencem, os abençoa, os faz triunfar e viver com ele nas moradas eternas. Enaltecendo a atitude fiel do justo, Deus diz, pela boca do profeta (cf. Hab 2,4) e pela pregação do apóstolo (cf. Rm 3,28; Hb 10,38):

O justo viverá por sua fé

o autor é Biblista com especialização em exegese, Escritor e Doutor em Teologia Moral.