Heróis: como os eleitores brasileiros sentem necessidade de formar ídolos

A política brasileira está seguindo uma díade Lula vs Bolsonaro e, dentro dessa mesma díade, observamos duas pessoas com personalidades distintas, ideologias distintas, mas que acabam atingindo o mesmo público: eleitores fanáticos que os veneram acima de tudo. No presente artigo, vou demonstrar que esse tipo de comportamento não se deve ao acaso, mas que existe um contexto dentro do âmbito filosófico, histórico e científico.

Mito: uma explicação antiga

Quando nós consideramos um ramo ou pensamento específico como sendo científico, nós automaticamente diferenciamos outros tipos de pensamentos e explicações como distantes da ciência ou da explicação científica. Mas essa reflexão, é claro, nos levará à gênese do pensamento científico; deste modo, se faz necessário compreender o motivo de existirem outras explicações para os mais variados fenômenos existentes. Boa parte dos historiadores defendem que o pensamento filosófico-científico nasce na cultura grega. O próprio Aristóteles, no livro I da metafisica, chegou mesmo a definir Tales de Mileto como o primeiro filósofo. Afirmar isso é compreender uma diferença nas observações trazidas pelos argumentos, portanto,nesse espaço, vamos trabalhar esse conceito distinto do científico, o mitológico.

Nas palavras de Danilo Marcondes:

"O pensamento mítico consiste em uma forma pela qual um povo explica aspectos essenciais da realidade em que vive: a origem do mundo, o funcionamento da natureza e dos processos naturais e as origens deste povo, bem como seus valores básicos".

Ou seja, autores específicos, que podem ser lembrados ou não, produzirão narrativas a cerca de suas observações dos fenômenos existentes: "isso aconteceu porque um deus assim o fez, isso foi feito por um guerreiro que aqui surgiu", entre outros exemplos. Vejamos que esse tipo de explicação está presente em todas as culturas existentes, portanto não se trata apenas de uma cultura ou indivíduo específico: os gregos terão uma explicação diferente do surgimento do mundo se forem comparados aos egípcios. Como falamos em eras arcaicas, nós podemos dizer que esse tipo de explicação ou argumento serve como uma espécie de conforto, pois é uma forma de explicar algo que não se compreende corretamente; afinal, não se obtêm recursos suficientes para uma explicação mais elaborada. O próprio termo para grego (mythos) significa algo como discurso fictício, imaginário ou até mesmo mentiroso. Portanto, podemos dizer que esse tipo de discurso não tem vinculo com a verdade, mas é só uma forma de interpretar um acontecimento como lhe é conveniente. Olhando deste modo, não parece existir nenhum problema, se pensarmos no que está relacionado com o nosso cotidiano, lendas urbanas, contos e narrativas que são tidas como parte de uma produção artística e concernentes à uma cultura. A problemática com relação ao argumento mitológico, consiste em sua recusa na aplicação de crítica, pois é tido como uma verdade absoluta - mesmo sem apresentar evidências para esse tipo de prática. Esse é o tipo de característica muito presente no pensamento religioso, por exemplo.

Inconsciente Coletivo: uma explicação junguiana

Para Jung, importante autor em psicologia, o inconsciente coletivo possui raízes no passado ancestral de toda espécie. Seria como se os conteúdos físicos do inconsciente coletivo fossem transmitidos, de forma hereditária, de uma geração para outra. Nesse caso, estariam inclusos conceitos como o de Deus, mãe, terra, água, entre outros.

"Portanto, os conteúdos do inconsciente coletivo são mais ou menos os mesmos para as pessoas em todas as culturas". (Jung,1934/1959).

Ainda, segundo Jung, o inconsciente coletivo é justamente o maior responsável pelos mitos, pelas lendas e pelas crenças religiosas. Deste modo, podemos dizer que o inconsciente coletivo se refere à tendência inata dos humanos, em termos de reação, para um determinado acontecimento. Por sua vez, essa reação ocorre de forma particular sempre que a experiência exigir esse tipo de comportamento.

Arquétipos: O herói

Os arquétipos são como imagens derivadas do inconsciente coletivo, portanto, imagens arcaicas. Assim como o inconsciente coletivo, os arquétipos também se dão de forma inconsciente. Para exemplificar isso, eu diria que algo mais próximo de nossa compreensão com relação aos arquétipos, está ligado aos esteriótipos. Normalmente, nós fomentamos esses esteriótipos sem perceber: todo velho de barba e cabelos longos é sábio, toda mulher que tenha cabelos loiros não é inteligente, entre outros exemplos.

O arquétipo do herói é representado de diversas formas, principalmente na mitologia. Às vezes são representados pelos próprios deuses, semideuses, humanos, entre outros exemplos. Quem de nós não teria um exemplo para esse arquétipo: um herói preferido, alguém que admiramos, seguimos. Como esse herói é apresentado? Alguém que combate o mal, que luta em nome do bem e da justiça, que sabe o que é certo e errado e, em alguns casos, até se sacrifica em prol da humanidade. No ocidente e em parte do oriente, talvez uma das figuras mais conhecidas com essas características seja a figura de cristo.

Nas palavras de Jung:

"A conquista da consciência foi uma das maiores realizações de nossos ancestrais, e a imagem do herói conquistador arquetípico representa a vitória sobre as forças das trevas".

Minha análise

Podemos considerar que o argumento mitológico parte da necessidade de compreender um fenômeno que lhe foge à razão. Portanto, para se manter confortável em desconhecer a origem ou existência daquele fenômeno, criamos uma explicação irracional. Podemos notar que se trata de uma prática antiga e cultuada muito antes da existência das civilizações modernas. A relação existente dentro do contexto político, se dá por meio do arquétipo do herói, como podemos afirmar baseado nos estudos de Jung. Trata-se da necessidade de criar um herói, uma figura bondosa que combate o mal, que atenderá os nossos anseios e desejos e, dentro desse mesmo conceito, para não existir qualquer problema com ligado à aceitação deste modelo, visto que o próprio arquétipo serve como uma espécie de espelho e padrão a ser seguido. Além disso, a ausência de crítica no argumento mitológico, pode favorecer o enaltecimento do arquétipo, nesse caso, o herói. Sendo assim, mesmo que o herói incorra em erro, o dogmático determinar-se-á pela necessidade em cultuar esse herói, visto que seus comportamentos tendem naturalmente à personificação de um ídolo. Jung chegou a dizer que :

"Ao derrotar o vilão, o herói está simbolicamente dominando as trevas da inconsciência pré-humana".

Nesse caso, podemos considerar que o arquétipo do herói está tão ligado ao inconsciente coletivo, que é quase impossível dissociar-se dessa ideia, pois seria como negar o próprio arquétipo do herói em sua gênese. A única solução possível para esse tipo de comportamento, no âmbito político, parece ser o ceticismo. O ceticismo pode servir de ferramenta política aos dogmas apresentados pelos argumentos mitológicos, sendo uma via mais racional em termos de direcionamento político. Como bem pontua Tocqueville:

"Tendo admitido sem exame prévio os principais dogmas da religião cristã, os americanos são obrigados a receber da mesma maneira um grande número de verdades morais que dela decorrem e a ela se prendem. Isso encerra em limites estreitos a ação da análise individual e subtrai-lhe várias das mais importantes opiniões humanas".

Encontramos no ceticismo uma negação dos dogmas e verdades morais impostas, seja pela religião ou qualquer outra via que se aplique da mesma forma. Além disso, como colocado no texto citado, o ceticismo parece exprimir nossa individualidade, quando recusamos algo que nos é imposto de forma arbitrária.

Conclusão

Podemos identificar que o comportamento de idolatria visto nos bolsonaristas e petistas, pode não estar ligado somente aos critérios singulares, mas também aos arquétipos e ao inconsciente coletivo, como já apresentado neste artigo. Ainda é inconclusivo saber se mesmo após evidências, esse comportamento pode ser modificado, ao passo que temos fatos em nossa história que comprovam que, mesmo que o indivíduo cometa erros e até crimes gravíssimos, ainda assim esses grupos sentem necessidade de segui-los. Como bem pontua Carl Sagan:

"Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar"

E também Tocqueville:

"As crenças dogmáticas são mais ou menos numerosas, conforme os tempos. Elas nascem de diferentes maneiras e podem mudar de forma e de objeto; mas não há como fazer que não existam crenças dogmáticas, isto é, opiniões que os homens recebem em confiança e sem discutir".

Talvez boa parte dessas ações se deva pela relativização da verdade, o que conjecturou o fator subjetivo como exame único.

Referências: Teorias da personalidade, Jess Feist, Gregory J. Feist, Tomi-Ann Roberts

Iniciação à história da filosofia, Danilo Marcondes.

A Democracia na América Vol II, Alexis de Tocqueville.