"NUMERO ZERO', UMBERTO ECO E O DESPUDOR DA IMPRENSA

“–Não são as notícias que fazem o jornal

e sim o jornal que faz as notícias.”

(Umberto Eco; 1932 – 2016)

Uma pena, mas Umberto Eco faleceu sexta-feira passada, dia 19 de fevereiro de 2016.

Tenho aqui na minha biblioteca algumas obras dele, que li com prazer, em razão da sua sabedoria, que ele generosamente deixou registrada.

Pessoa sábia é para ser sempre consulta.

Na Itália é apelidado de "último pensador" e "pensador máximo".

Estudioso da nossa sociedade, dos nossos defeitos, matou a pau todo assunto em que se envolveu.

Terminei de ler o “Número Zero”, publicado no final do ano de 2015.

No Brasil pela Editora Record, com tradução de Ivone Benedetti.

Nessa obra o escritor narra história de um jornal criado com o objetivo de difamar, chantagear, prestar serviços duvidosos, extorquir, e outra coisas grotescas do mau jornalismo.

A história se passa em 1992, e outras datas anteriores, mas se parece muito com o jornal que ainda hoje você verá na banca da esquina.

No livro Eco disseca o submundo da imprensa, como num necrotério, cercado de cadáveres putrefatos.

Apesar da insinuação do editor do jornal de que distorce a verdade, (e onde está sempre presente a dúvida do leitor), ele nunca chega ao perigoso campo da mentira, sujeita crime e à indenização.

São pequenas histórias inventadas ou grandes verdades propositadamente esquecidas.

O romance utiliza fino sarcasmo nas relações entre a mídia e seus patrocinadores, a promiscuidade entre a propagada de utilidade pública, (que justifica boa parte do respeito e privilégios de imprensa) e os interesses diretos de seus financiadores e proprietários.

Vejam alguns trechos:

“A esperteza está em por entre aspas uma opinião banal

e depois outra opinião, mais racional,

que se assemelhe muito a opinião do jornalista.

Assim, o leitor tem a impressão

de estar sendo informado de dois fatos,

mas é induzido a aceitar uma única opinião,

a mais convincente”;

“saber por juntas quatro notícias diferentes significa

propor ao leitor uma quinta notícia”;

“exercitem-se em fazer a notícia aparecer onde ela não

estava ou onde ninguém conseguia enxergá-la”.

É a distorção nossa de cada dia.

Um pronome, um verbo ou um adjetivo não rigoroso correlato com a interpretação popular, faz a grande diferença.

Quer um exemplo prático e quase diário:

Publica-se que o ministério público convocou “fulano” a prestar esclarecimentos, com a advertência de que “ELE NÃO ESTÁ OBRIGADO A COMPARECER”.

Ora, o MP pode fazer o que quiser; mas se não tem a autoridade de "obrigar", qual a utilidade da "notícia"?

Este factóide, tão comum nos jornais (e nas TVs) de hoje, é só um fato plantado para confundir o leitor e criar constrangimento ao convocado.

Qualquer cidadão tem o direito de "convocar" uma autoridade ou homem público a comparecer em determinado endereço e a tal hora “para prestar esclarecimentos”.

Desde que acompanhada da advertência de que não está "obrigado".

Obrigar é prerrogativa do Judiciário;

ministério público, na Constituição Federal,

enquadra-se no rol dos órgãos do poder "executivo".

Dai a não obrigatoriedade.

Ministério público e procuradores não são autoridades!

Mas a nota, publicada, cria um fato e o fato gera a desconfiança.

Da hipocrisia diária dos jornais, Umberto Eco deixa receita:

“Portanto, todas as nossas indiscrições

terão gosto de coisa inédita,

ouso dizer oracular.

Ao cliente nos deveremos dizer:

veja como teria sido o “Amanhã”

se tivesse saído ontem. Entenderam?”

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UMBERTO ECO nasceu em Alexandria (Itália) em 1932 e morreu sexta-feira, dia 19 de fevereiro de 2016, aos 84 anos, em Milão.

Foi escritor, filósofo, medievalista, semiólogo, midiólogo e publicou vários livros:

“O nome da rosa” (1981);

“O pêndulo de Foucault” (1988);

“A ilha do dia anterior” 1994,

“Baudolino” em 2000;

“A misteriosa chama da rainha Loana” (2004);

“O cemitério de Praga” (2010);

“Tratado geral de semiótica” (1975),

“Os limites da interpretação” (1990);

“Kant e o ornitorrinco” (1997);

“Da árvore ao labirinto: estudos históricos sobre signo e a interpretação” (2007);

“Não contem com o fim do livro” (2009);

“Construir o inimigo e outros escritos” (2011);

“Escritos sobre o pensamento medieval” 2012);

“História da Beleza” (2004);

“História da feiúra” (2009);

“A vertigem das listas” (2009);

“Historia das terras e lugares lendários” 2013;

“Número Zero” (2015).

Os seis primeiros e o último livro eu li e os tenho aqui em minha biblioteca.

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Um último trecho do livro:

“No fundo a BBC prestou um ótimo serviço a eles. A partir de amanhã você poderia sair por ai dizendo que o papa degola ou que foi a Madre Teresa de Calcutá quem pôs a bomba no “Italicus”, que as pessoas diriam: “É mesmo? Interessante”, depois você se viraria para o outro lado e continuaria cuidando da vida.”; (página 203).

“A vida é suportável, basta contentar-se.” (página 207)

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Presto esta homenagem a Umberto Eco e

espero despertar no leitor a vontade

de ler esse grande escritor.

Muito obrigado pela leitura.

Fevereiro / 2016