A SEDUÇÃO DA DECOLAGEM

PLANO DE VOO 1

Imagine ser o interlocutor

Um primeiro plano de voo para um texto decolar com sucesso, segundo a professora Maria Aparecida Custódio, do laboratório do cursinho Objetivo, é colocar-se no lugar do público que receberá a mensagem.

- você continuaria a ler o seu texto a partir daquele primeiro parágrafo? – provoca ela.

Um exercício feito na Academia do Palestrante, escola de São Paulo que oferece treinamentos a quem deseja ministrar palestras, é pedir que à pessoa que introduza sua apresentação e, em seguida, ouça dos colegas o que entenderam daquilo que foi dito.

- muitas vezes o que se entende é muito diferente do que se quis dizer. Muitas pessoas são inteligentes, sabem muito do assunto, mas quando precisam expressar isso, é um desastre – conta Edmar Oneda, fundador da academia e especialista em programação neurolinguística..

PLANO DE VOO 2

Escolha o tom

Uma estratégia para iniciar textos é dar o tom do que está por vir, fornecendo uma “pílula” do conteúdo que se segue. Para o roteirista e escritor Ricardo Tiezzi, professor da pós-graduação em Roteiro da Faap e da academia internacional de cinema, os primeiros minutos (ou linhas de texto) devem dar o tom do resto da mensagem, seja ele um filme, um discurso oral ou um texto, apresentando um pouco daquilo que está por vir. Assim como o senso comum diz que um filme de ação precisa começar com uma boa cena de ação, demais textos seguem a premissa.

- Se um filme é mais contemplativo, não faria sentido começá-lo com uma sena bombástica. É um pacto imaginário que diz: veja aqui um filme de aventura, perseguição, etc...

Pedro Monteiro, da universidade de Princeton, considera memorável a abertura do romance Lolita, de Valdemir Nabokov. ”Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta.”

A adoração do redator em 1ᵅ pessoa pela sensualidade imberbe da enteada adolescente está toda contida no tom dado pelas primeiras frases do texto de Nabokov.

PLANO DE VOO 3

Procure a ação mais significativa

A escrita de um roteiro de cinema traz lições aplicáveis à literatura e a outros textos. O roteirista Ricardo Tiezzi ensina que é preciso encontrar a ação significativa para conseguir o primeiro impacto. É preciso perguntar-se: que informações sobre aquele conteúdo (no cinema, na trama, num texto, o assunto; etc.) precisam ser ditas logo no início? A resposta deve expor, de maneira menos óbvia e banal possível, as mesmas informações que serão em seguida desenvolvidas no mesmo texto.

- Expor escondendo significa dar a informação inserida em uma ação, sem ficar claro que ela está sendo dada. Uma abertura é como um xadrez: se for feita bem, você tem o jogo nas mãos.

O clássico do machismo moderno Kramer VS. Kramer (1979) começa uma sena de café da manhã. Sem que seja preciso explicar nada, o publico fica sabendo, por meio de pequenas ações, que o personagem de Dustin Hoffman não consegue lidar com a situação de administrar a carreira, ser abandonado pela mulher e cuidar do filho ao mesmo tempo.

PLANO DE VOO 4

... Mas não entregue tudo de início

Deve-se evitar colocar todas as cartas na mesa logo de inicio nem despejar muitas informações de uma só vez sobre o leitor. Pois isso não gera expectativa pelo que está por vir.

A técnica da “exposição” (apresentar uma versão condensada da ideia central que será desenvolvida) consiste em deixar o tabuleiro bem armado para a história. Não é. Necessariamente entregar o jogo inteiro.

- A arte dessa exposição é conseguir estabelecer o jogo e apresentar o assunto ou mundo em que os personagens vão se movimentar, sem destacar um caminhão de respostas. A ideia é plantar as perguntas certas - diz o roteirista Tiezzi.

O escritor Evandro Affonso Ferreira lembra, na literatura, da abertura de O Estrangeiro, de Albert Camus:

“Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei.”

É o protótipo do começo em que a indiferença do narrador é apresentada de chofre, com poucos elementos verbais, sem necessariamente esgotar a informação que virá, mas contendo o embrião do que virá.

PLANO DE VOO 5

Tenha conhecimento da causa

Para escolher a sua introdução em mensagens argumentativas, como uma redação de vestibular dissertativa ou um artigo, um passo é avaliar o tema proposto e qual o seu conhecimento e domínio sobre aquele assunto. É preciso organizar as informações básicas que devem ser discutidas.

Maria Aparecida, do sistema Objetivo, explica que, embora a maneira de se começar um texto seja inúmeras, uma forma indicada de demonstrar o domínio do assunto é contextualizar o tema historicamente.

- vemos muito isso nas redações nota 10. A contextualização é decidida, porque mostra que o redator tem repertório cultural diversificado, e remete o leitor a outra época.

Em Memórias de Um Sargento de Milícias, por exemplo, Manoel Antônio de Almeida dá uma lição: “Era no tempo do rei.” Como quem não quer nada, a frase contextualiza a ação, o tema, de todo o livro.

PLANO DE VOO 6

Use aberturas visuais

Aberturas “cinematográficas”, com descrição de movimentos e senas, são convidativas. Maria Aparecida Custódio, do Objetivo, sugere narrativas de abertura. Mesmo que o texto seja dissertativo, iniciar com uma breve narrativa ou ação, que situe um tema em uma história, pode ser um grande começo.

- No ano em que houve uma proposta de redação sobre a amizade, um candidato começou por contar a história do filme O Náufrago, em que o personagem de Tom Hanks cria um amigo imaginário, Wilson, que é na verdade uma bola. Tudo isso para provar que precisamos de amigos.

Maria Aparecida conta que aberturas narrativas são introduções clássicas, assim como dar explicação e descrição teórica de determinado fenômeno; emitir uma opinião; fazer uma citação (contextualizada, de alguém que confira credibilidade ao texto) e usar linguagem figurada (desde que comediante).

PLANO DE VOO 7

Contrarie a expectativa

Começar com fatos surpreendentes, contrastes ou estatísticas é uma maneira de interessar o leitor à medida que o informa. Isso quebra a expectativa de leitura tanto em textos informativos como ficcionais.

Maria Aparecida Custódio, do Objetivo, lembra que o início de um capítulo de Memórias Póstumas de Brás cubas, de Machado de Assis:

“Marcela amou-me por cinco meses e onze contos de reis.”

A opinião sobre a pessoa está dada já no contraste – ele mesmo informativo – entre tempo e valor de uma só linha, sem que seja necessária uma descrição detalhada.

Recurso ousado é contrariar o sentido comum ou a ideias dominantes da sociedade (a chamada dóxa dos gregos antigos). O escritor Evandro Affonso Ferreira exemplifica o tema com as primeiras frases de Anna Karenina, de Leon Tolstoi, em que a ideia socialmente dominante é contrariada pelo paralelo inusitado:

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”

Numa situação formal de leitura impessoal, a professora Maria Aparecida, não recomenda o recurso, pelo risco de uma redação de vestibular, por exemplo, ser lida por um examinador conservador.

Ainda assim, tem seu valor. Ela conta que no ano em que o tema da Fuvest, o principal vestibular de são Paulo, foi “Amizade”, um candidato surpreendeu a banca examinadora pela ousadia. Começou seu texto falando que a amizade não significa nada e embasou a tese ignorando os textos-base sugeridos pelo enunciado da prova. Sua redação teve nota máxima, mas foi na contramão do que era esperado.

PLANO DE VOO 8

Incomodo e deslumbramento

Os melhores começos de textos são os que incomodam, tanto quanto os que deslumbram, segundo professor Pedro Monteiro, de Princetion. A simulação de uma situação de desconforto ou a apresentação ao leitor de um cenário ou de uma imagem marcantes (potencialmente inesquecível) São os melhores inícios.

É o caso da abertura de A Metamorfose, de Kafka, ou de Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, cita Evandro Affonso Ferreira:

“Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, deus esteja.”

O jogo de palavras cria um ruído inicial contrariado pela clareza e pela riqueza expressiva.

Apresentar uma serie de fatos que deixe o interlocutor sem respostas imediatas também pode ajudar a criar uma sugestão que estimula a criatividade. Se bem realizado, o recurso pode fazer a pessoa interessar-se em saber o que aquilo terá a ver com o desenrolar do raciocínio.

Evandro Affonso Ferreira defende o gosto por mexer com tudo o que inquieta o leitor. Mas aquilo que inquieta alguns não tem o mesmo sentido para outros, por isso é necessário estar familiarizado com seu interlocutor.

PLANO DE VOO 9

Use referencias com cuidado

Pedro Monteiro, de Princeton, adverte: é preciso ter cuidado com as fórmulas.

- empregada à risca, uma fórmula costuma converter-se numa armadilha que engolfa o escritor, tornando-o escravo de um fantasma, que é aquele leitor que “só vai gostar do meu texto se eu agradá-lo”.

Monteiro sugere que se usem referencias para inspirar-se, mas sem se prender demais a elas nem apelar para inícios já existentes.

O ideal, segundo ele, é ficar entre a inspiração de uma cena inicial já vista e o desejo de inventar algo ainda não visto. Embora seja provável que o inconsciente domine e empurre para um início que já existe, é primordial que seja uma cena que marque um tom, “funcionando como uma espécie de diapasão que vai soar no ouvido do leitor páginas dentro”.

Sandra Ferrari Radich
Enviado por Sandra Ferrari Radich em 09/11/2015
Código do texto: T5443591
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