As múltiplas faces do sertanejo em Cordéis e Outros Poemas

A obra Cordéis e outros poemas foi compilada em 2006, por Gilmar de Carvalho, pesquisador da obra de Patativa, tendo como finalidade o vestibular da Universidade Federal do Ceará – UFC. Embora a obra de Patativa seja objeto de pesquisa de estudiosos do Brasil e do exterior, é a primeira vez que se torna objeto de estudo “permitido” por uma universidade para seu vestibular. Os poemas de Patativa já figuravam em livros didáticos, mas com um apelo de ver-se a oralidade. Essa publicação possibilitou uma tomada de consciência do potencial dessa literatura até então relegada a segunda plano no ensino básico.

Nessa obra, estão compilados alguns dos mais importantes cordéis e poemas de Patativa os quais trazem ao leitor um recorte da variedade de temas tratados pelo autor: A triste partida, O padre Henrique e o Dragão da Maldade, A História de Abílio e seu Cachorro Jupi, Saudação ao Juazeiro do Norte, Façanhas de João Mole, O Meu Livro, Vicença e Sofia ou O castigo de mamãe, Antonio Conselheiro, Emigração, O Doutor Raiz, Brosogó, Militão o Diabo, o ABC do nordeste flagelado, O Bode de Miguel Boato, Rogando Pragas, Glosas sobre o Comunismo Poema, Cante lá que eu canto Cá e A terra é Naturá.

Acreditamos ser pertinente apresentar ao leitor uma síntese desses poemas para que ele possa perceber a grandeza desse universo sertanejo. Levando em consideração que esses poemas abordam temas variados, procuramos subverter a ordem apresentada na obra e aproximá-los pelo tratamento dado ao sertanejo.

A triste partida é um cordel narrativo, distribuído em dezenove estrofes de oito versos. Ele pode ser dividido em duas partes: a primeira trata da espera do homem do sertão cearense por uma quadra chuvosa. Essa espera é marcada pelas experiências populares que começam em setembro e terminam em março com o dia de São José (padroeiro do Ceará). A cada experiência que não comprova a presença de inverno, ele vai perdendo a crença e sentindo-se amedrontado pelo fantasma da seca e da fome; a segunda parte é a constatação da seca e a fuga para o Sul. Lá se torna “escravo” das condições subumanas, sem possibilidade de voltar ao solo querido que o viu nascer. Nessa parte há uma multiplicidade de vozes poeta, pai e filhos, com isso agrava-se o clamor e o desespero.

Emigração é um cordel também narrativo, distribuído em quarenta e três estrofes com versos decassílabos no qual o poeta apresenta-se como detentor do conhecimento que vai narrar por ser do sertão e trabalhar na roça, em seguida ele aborda a emigração da família e mais da metade do poema apresenta a condição do homem no Sul, desde o desembarque até a cadeia.

O sertanejo chega com a família e mora na marquise, depois vai para um barraco, arranja trabalho, mas a família se “descaminha”, os filhos menores tornam-se delinqüentes e a filha prostitui-se. Podemos afirmar que em Emigração há um aprofundamento de A triste partida, tendo em vista que neste o poeta apresenta um quadro já bastante desumano, mas é com aquele que ele descreve de forma mais detalhada a miséria e a marginalização do nordestino/cearense no Sul.

ABC do nordeste flagelado está organizado em vinte quatro estrofes, com versos decassílabos. Nele o poeta apresenta um painel de vozes que compõem o quadro da seca no sertão, para isso ele vai de A a Z, mostrando o martírio e desespero do homem, da fauna e da flora. Todos se igualam na dor, na fome e na sede. No final do texto, o poeta apresenta um acróstico com o nome Patativa para testemunhar que conhece a dureza da seca e também sofre com ela. Podemos ver nesse poema uma espécie “de beco sem saída” para o nordestino/ cearense, isso porque, se a saída do Nordeste/Ceará para o Sul mostrou-se desastrosa, ficar no lugar seco também é um martírio.

Saudação a Juazeiro do Norte está organizado em nove estrofes com versos decassílabos. Nele o poeta exalta a figura de Padre Cícero como o protetor e bem feitor de Juazeiro, O Aposto do Nordeste. Desse modo, há um aprofundamento da presença da religião como forma de proteção dos flagelados, famintos e doentes. De forma velada poderia está aí uma solução para os problemas do nordestino/cearense, abrigar-se na religião através de líderes do povo sofrido.

Antonio Conselheiro está dividido em doze estrofes. Nele o poeta relembra a saga de Antonio Conselheiro e sua importância para o povo humilde que o seguia, bem como o progresso de Canudos. Porém, logo veio à derrota pelo poder instituído – Estado- e com a derrota o retorno do povo à miséria e a falta de quem o conduza à “terra prometida”.

Padre Henrique e o Dragão da Maldade é um cordel estruturado em sessenta e três estrofes de seis versos, feito por encomenda de Dom Aluísio. Nele o poeta narra à trajetória e morte de Padre Henrique, em 1969, no auge da ditadura. Em Recife, lugar onde o religioso ajudava os pobres e pregava verdades. Mais uma vez o poeta traz ao leitor a presença da religião, do Estado e da situação que impera nessa terra Nordeste.

A terra é Naturá está dividido em treze estrofes, com versos decassílabos. Nele há uma tomada de decisão do poeta, pois ele não mais apresenta os fatos como parte, mas vale-se do poder de “poeta popular/voz do povo”, para reivindicar o direito natural/ divino de a terra pertencer a quem nela trabalha. Em tom metafórico, dirige-se ao “Dotô” para afirmar que tudo que há na terra é coisa colocada por Deus, portanto pertence ao filho de Deus/ pobre.

História de Abílio e seu cachorro Jupi está estruturado em cento e cinqüenta e oito estrofes de seis sílabas. Faz intertextualidade com a história de José do Egito, centrado na questão do catolicismo como base para romper com as injustiças, pois a divina providência protege o mais sofrido. Abílio é bom e puro, mas os irmãos com inveja o abandonam para morrer no mato, lá ele fica e com a ajuda de Jupi se salva da morte. Em sonho, Nossa Senhora dá-lhe o caminho que deve seguir para encontrar a fartura. Ele fica rico e ainda acolhe os irmãos.

Brosogó, Militão e o Diabo é um cordel estruturado em sessenta e duas estrofes de seis versos. Narra à saga de Brosogó, homem honesto e religioso, que tem por hábito acender velas para todos os santos como forma de agradecer o progresso nos negócios. Cai em uma armadilha de Militão o qual quer cobrar um absurdo por uma dúzia de ovos que Brosogó lhe deve. Brosogó consegue um advogado que o salva da falência. Esse advogado é o Diabo que um dia recebera uma vela de Brosogó e como pagamento o livrou dessa enrascada. Desse modo, o Diabo não é tratado como o mal, mas como um “apoio” quando “Deus” falha.

Glosas sobre o Comunismo está estruturado, intercalando motes e glosas nos quais o poeta associa o Comunismo ao Diabo, não mais o Diabo bondoso que salvou Brosogó das injustiças, mas um Diabo que quer levar a todos para o inferno - Comunismo. Também associa os defensores do Comunismo aos discípulos do Diabo.

O Doutor Raiz está distribuído em quarenta e três estrofes, alternando versos de seis sílabas e decassílabos. Nesse cordel é traçada a saga do Doutor como um enganador do povo. O poeta diz-se negar o tratamento com ele e recorre a Deus para curá-lo das doenças, seguindo a linha do apelo religioso que perpassa toda a obra, mas negando a importância do conhecimento popular e da medicina, talvez nesse poema haja uma contradição do poeta em relação ao seu desejo de está ligado a terra e a tudo que vem dela, bem como do conhecimento que ele diz “brotar da terra”.

As façanhas de João Mole é um cordel estruturado em cinquenta e cinco estrofes. Narra a saga de João Mole no sertão. Este personagem sertanejo apanha da mulher e da sogra todos os dias, porém um dia resolve ir a fora e espanca as duas. Após isso ganha o respeito delas e dos outros que passam a temê-lo. É um poema que justifica a violência com outra. Talvez faça parte do imaginário de que para ser macho tem que mandar na mulher, ser capaz de bater e matar em nome da moral.

Vicença, Sofia ou o castigo de mamãe está estruturado em trinta e cinco estrofes decassílabas. Trata do preconceito racial. Vicença é negra e casa-se com Romeu, mas a mãe dele não aceita e faz de tudo para que ele não case. Sofia, sobrinha da mãe, case-se com o outro irmão de Romeu, mas o trai. A mãe descobre e passa a gostar de Vicença, reforçando assim a visão de que o caráter não está na cor, mas nas ações. De certa forma, esse tom moralizante acaba por criar outros preconceitos.

O bode de Miguel Boato é um cordel estruturado em quatorze estrofes decassílabas. Narra às trapalhadas de um vendedor de carne que sempre leva vantagem sobre os outros, mas acaba sendo enganado e comprando um cabrito como se fosse um bode. Com isso, ele perdeu o costume de ludibriar os outros.

Rogando praga é um cordel estruturado em oito estrofes decassílabas. Narra à condição do homem do sertão, abandonado que é roubado pelos vizinhos e sem ter o que fazer lança-se a rogar pragas terríveis a seus inimigos e ainda pede o apoio de Deus para conseguir seu intento.

O meu livro é um cordel estruturado em vinte e duas estrofes decassílabas. Trata da sabedoria do matuto que defende a ideia fixa de que tudo que aprendeu foi com o céu, a terra e o mar. Partindo dessa sabedoria, percebe que tudo que acontece está centrado na falta de fé de quem tem estudo. Não aceita o divorcio, por não ser coisa de Deus e estragar a paz e a harmonia. Esse cordel poderia sintetizar os outros, visto que estabelece uma relação com todos os problemas tratados nos outros e propõem como solução: o aprender com a natureza e a crença no Senhor.

Cante lá que eu canto Cá está distribuído em dezoito estrofes. Nele o poeta se diz detentor da verdade que conhece sobre o sertão, pois padece do sofrimento “pisando inriba de formiga” e que seu verso brota da terra. Segundo ele não precisa de estudo, nem invejar o Dotô, pois tudo lhe foi dado por Deus. Desqualifica a poesia da cidade/ Dotô e o aconselha a cantar lá, que o cá já lhe pertence. Com esse reagrupamento dos versos, procuramos aproximar o universo de Patativa não por uma sequência cronológica de suas obras, mas seguindo o principio de observar como se dá o processo dicotômico do qual brota sua obra e dentro dessa dicotomia o que o autor procura validar como positivo. Percebemos que o autor inclui-se como voz integrante de seus poemas, procura comprovar com a experiência de quem vive, não apenas de quem vê, pintando um painel de desencontro/encontro entre sertão/homem, marcado por uma forte religiosidade e um tom moralizante, conforme DEBS:

Este olhar sobre o mundo, numa perspectiva espacial, recupera também uma oposição passado/presente; tradição/modernidade. A situação do sertanejo obrigado a abandonar sua terra em função da seca, a ir em direção às cidades do litoral, ou então em direção às cidades do Sul, é uma posição delicada, na medida em que ele passa sem transição de um mundo rural à escala humana a um mundo urbano onde impera o anonimato. O encontro destes dois universos é, não raro, doloroso e acompanhado de um voltar-se para os valores tradicionais. As cidades, o progresso, a técnica são acusados de veicular os piores males da civilização: “Mas a civilização faz coisa que eu acho ruim” (O puxadô de roda). O sul, em particular, é tido como a sede da corrupção: “Nos centros desconhecidos Depressa vê corrompidos Os seus filhos inocentes, Na populosa cidade De tanta imoralidade E costumes diferentes” (Emigrante nordestino no sul do país). Assim, o universo descrito por Patativa do Assaré é percebido como um espelho da realidade. O aspecto quase documental da sua poesia foi salientado por certo número de críticos, entre os quais Luzanira Rego que afirma que sua obra: “reflete em seus poemas todo o mundo visionário e fantasmagórico do caboclo nordestino, pintando, em ácidas estrofes, a realidade de uma região, onde o homem e a terra se unem pela força do mesmo abandono. (DEBS, on-line)

Esses cordéis/ poemas trazem a síntese das múltiplas faces do sertanejo em um sertão domado pelo poder econômico-político no qual o ser menos favorecido serve de anteparo para justificar a questão da miséria e da desigualdade, cabendo a ele apelar para a providência divina como única solução para os descasos públicos que o obriga a viver de forma desumana abandonado a própria sorte.

valene
Enviado por valene em 23/11/2013
Reeditado em 04/09/2016
Código do texto: T4583805
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