A MULHER RECÉM-INDEPENDENTE

OLHOS NOS OLHOS

Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
Cê sabe que casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz


 
     Os versos de “olhos nos olhos” não apresentam metrificação fixa, variando de quatro a três sílabas por verso e as rimas são emparelhadas e interpoladas, soantes, prevalecem as rimas agudas com exceção dos versos: nove, dez, doze e treze que apresentam rimas graves.
          O sujeito do discurso é uma mulher que narra o momento crucial da separação. Assim como em “Atrás da porta”, ela confessa o sentimento de desespero que a dominou: "Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci". Enquanto o eu-lírico da referida composição permanece insistindo em ficar perto do amado “Só pra provar que inda sou tua”, em “Olhos nos olhos”, a mulher resolve dar um novo rumo a sua vida, permitindo-se amar e ser amada novamente.
         Curiosamente, nas obras de Chico Buarque, o momento da separação é sempre dramático para o eu-lírico, seguido de um processo depressivo ou de uma crise de loucura que vai acalmando.
          Pelo discurso do eu-lírico, de “Olhos nos olhos” pressupomos tratar-se de uma mulher submissa, haja vista que após a constatação do abandono, ela obedece ao amado, como sempre o fez: "Mas depois como era de costume, obedeci". Enquanto a mulher de “Atrás da porta”, começa uma espécie de perseguição ao homem amado, caracterizando a vingança.
     É interessante observar que essa mulher resolve lutar para recuperar sua auto-estima , reconhecendo que sem aquele homem ela pode e deve refazer a sua vida: "Ao sentir que sem você eu passo bem demais..."O emprego do intensificador "demais" reforça a ideia de independência e liberdade conquistadas por ela. Visto que,  só a partir da separação, ela percebe ser capaz de fazer-se amada por outros homens que a realizaram não só como pessoa, mas como mulher, recuperando-lhe a juventude e a alegria de viver: "E que venho até remoçando /me pego cantando/sem mais nem porquê".
     A expressão “Olhos nos olhos” remete-nos a um teste de sinceridade, visto que não se consegue mentir, olhando dentro dos olhos do outro. Assim, ele constataria que aquele desejo manifestado no momento da separação, fora concretizado: ela passa bem e é feliz. O paralelismo nos versos "Olhos nos olhos, quero ver o que você faz"/ "Olhos nos olhos, quero ver o que você diz" sugerem uma certa curiosidade por parte do eu-lírico, em saber qual será a reação daquele homem, supostamente machista, ao constatar que ela não se entregara à tristeza , nem ficara esperando que ele voltasse um dia. Os intensificadores "demais" e "tão" e as formas verbais " faz / diz" reforçam essa ideia.
     A temporalidade é marcada principalmente, pelos verbos no pretérito perfeito do indicativo, caracterizando o momento da despedida, portanto um fato irreversível e pelo presente do indicativo, revelando o estado de completo bem-estar do eu-lírico.
     No que diz respeito ao nível fonológico, a repetição do fonema cons-tritivo fricativo alveolar /s/, em todo o texto, sugere um sussurro, uma confissão. A aliteração em "Cê sabe que a casa é sempre sua" ratifica essa idéia.
     Quanto ao nível morfológico, o emprego da parassíntese "enlouqueci" sugere a dor psíquica. Enquanto a substantivação (conversão) do advérbio "mais" e da conjunção "porquê" realça o estado de plenitude a que chegou essa mulher, capaz de alegrar-se mesmo sem motivo aparente "Me pego cantando, sem mais nem porquê".
     Nos sintagmas oracionais, prevalece a parataxe, dando ao texto um tom emotivo.
No nível semântico, destacamos o emprego da hipérbole "Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci", caracterizando a sensação de ser preterida pelo homem amado. Destacamos ainda, a homonímia:" meu bem" (substantivo) e "passar bem" (advérbio) em que o substantivo determinado pelo pronome possessivo "meu" revela a importância do homem amado para o eu-lírico, enquanto o advérbio revela a indiferença desse homem  ao desejar que ela “passe bem” longe dele.
     Do ponto de vista da língua, identificamos, além do tratamento em terceira pessoa, a próclise do pronome átono "me", a aférese do pronome de tratamento "você / cê", das expressões: "a casa é sua" e "quantas águas rolaram", marcando a opção do poeta pelo registro informal e caracterizando a linguagem afetiva do sujeito do discurso. Vale ainda comentar que, enquanto a mulher de “Atrás da porta” mescla registro culto com registro coloquial, caracterizando a explosão de sentimentos, esta última mulher revela-se calma e equilibrada, por meio do ritmo melódico e das escolhas lexical, morfológica, sintática e semântica.

Imagem google.

Bibliografia:
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ZAPPA, Regina. Chico Buarque: Perfis do Rio. 4ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 02/09/2013
Reeditado em 20/06/2017
Código do texto: T4463856
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