DOM QUIXOTE: A BUSCA DO HERÓI PERDIDO NA MODERNIDADE

DOM QUIXOTE: A BUSCA DO HERÓI PERDIDO NA MODERNIDADE

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A produção literária nunca foi tão carente de herói como é a contemporânea. Depois do Modernismo, a figura heroica que procurava enfrentar o mal e organizar o caos existente na humanidade, passou a ser um herói que nega sua vulnerabilidade mergulhando numa enorme solidão.

Desde a antiguidade clássica greco-latina à era moderna, o herói era personificado como um ser invencível e imortal. Possuía e cumpria o papel que lhes era destinado: o de protetores e defensores dos fracos e oprimidos da humanidade. Para ele o mais importante era combater o mal, e neste contexto, vencia sempre o bem. Era assim que a justiça e a bondade prevaleciam e empenhavam-se em combater as forças do mal. O herói enfrentava o perigo com fé e disposição de vencer, ao contrário do pós-moderno, que se tornou amargurado por ter sempre que vencer ou provar a sua invencibilidade.

Percebemos que na literatura contemporânea há um destaque maior para o anti-herói. Essa visão imaginária se dá pelo fato de que autores contemporâneos cultuam temas ligados à própria realidade. A existencial. Mário de Andrade, escritor da primeira fase modernista no Brasil, deu destaque ao seu anti-herói, ou ao seu herói sem nenhum caráter, Macunaíma. A caricaturização deste herói é a vanguarda de todos os anti-heróis da literatura brasileira. A partir daí a literatura passa a dar ênfase, não mais somente aos feitos heroicos, e sim aos relacionados com os personagens coadjuvantes e não aos protagonistas da história.

Na modernidade este tipo de herói entra em decadência. Marshall Berman (2007, p.172) em seu livro Tudo que é sólido desmancha no ar, afirma que o ponto crucial do heroísmo moderno emerge de situações de conflito que permeiam a vida cotidiana no mundo moderno.

Ao compararmos o herói clássico com o moderno, percebemos um distanciamento em sua composição e conceito de ser herói. Walter Benjamim (1994, p.73) observa esta questão em seu texto A Modernidade, o qual aborda a obra de Charles Baudelaire. Para ele, o herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Sendo assim, é preciso então que tenhamos uma constituição heroica para se viver na modernidade.

O heroísmo de Baudelaire está na forma como resiste ao mundo mesmo em situações adversas. Surge daí uma nova realidade inerente ao herói urbano, o flâneur, que vagueia pela cidade em busca de oportunidades, um sonho. E este herói baudelairiano está condenado a sofrer nesse mundo, pois não existe para ele uma função determinada, o que o aproxima do herói grego por terem uma existência trágica marcada pelo sofrimento. O herói moderno, neste sentido, não é o herói. Afirma Benjamim (1994, p.94). Ele “apenas representa o papel do herói”.

Para Benjamim este herói moderno não estaria deslocado no tempo nem no espaço, pois observa a sua decadência dando lugar a um herói urbano, ao homem comum que anda pelas ruas, observa as pessoas, as casas, e isola-se devido a sua insegurança em relação ao mundo, tornando-se um herói melancólico. Berman ainda afirma que um dos problemas fundamentais do modernismo do século XX é que nossa arte tende a perder contato com a vida cotidiana das pessoas. Com esse distanciamento a tendência é a separação do homem comum ao herói.

Na literatura, o herói épico é imortalizado nas obras de Homero, depois ganham destaque nas novelas de cavalaria. Obras como Don Quixote, de Miguel de Cervantes e A Demanda do Santo Graal, do organizador Heitor Megale, retratam fielmente a posição do homem/ herói. Todos são movidos pela honra e o desejo de tornarem-se heróis de suas próprias aventuras. A nenhum deles é atribuído superpoderes, diferentemente de outros heróis que saíram dos gibis para as telas de cinema em Hollywood. Percebeu-se a partir daí a necessidade de se criar um herói.

O objetivo era justamente preencher ilusoriamente a falta deste herói. Personagens como o Super-Homem, Batman, Hulk e Homem Aranha, surgiram numa época em que o homem já não tinha heróis nenhum. Perdeu-se o encanto, a magia da mitologia, para entrar em cena o herói que todo o homem pós-moderno desejava ser. O herói que resolve tudo por si só. Invencível e acima de tudo, imortal, que se utiliza de recursos tecnológicos, armas e às vezes, suas próprias mãos para combater o mal.

Do Barroco ao Modernismo esse herói literário desaparece por completo. Resta-nos apenas a presença marcante dos anti-heróis que compõem os romances e ganham destaque nas obras sobrepondo-se ao protagonista. De Shakespeare a João Guimarães Rosa, eles brilham ofuscando muitas vezes, o brilho que seria do personagem principal. E o resultado é exatamente o surgimento de grandes personagens como o fidalgo Dom Quixote de la Mancha em que o objetivo inicial de Miguel de Cervantes foi fazer uma sátira ao estilo do romance de cavalaria, ambientado em uma Europa que estava em transição entre a Idade Média e o começo do mundo moderno e sua mentalidade pseudoromântica, tornando-se uma obra símbolo, básica na literatura universal.

A concepção do anti-herói em Dom Quixote funde-se com o próprio conceito de herói: aquele que se sacrifica em nome de uma causa maior. Dom Quixote de forma cômica tem seus dotes semidivinos removidos para tornar aceitável para o leitor à realidade cotidiana do personagem. Um homem comum, cinquenta anos, magro e alto, de costumes rigorosos, que vivia numa pequena província espanhola chamada da Mancha e que de tanto ler histórias de cavalaria, passa a acreditar nos feitos heroicos dos cavaleiros medievais e decide incorporar a postura de um cavaleiro andante, distanciando-se da realidade, chegando ao ponto de não distinguir em que dimensão vivia.

Neste aspecto, este anti-herói não possui o estigma de ser um vilão. Pelo contrário, ele é dotado de características louváveis, que atua em sua própria causa e os valores que defende - a paz e a justiça - transcendem lendas e séculos, tornando-se atuais e universais. Cervantes apresenta desta forma um personagem que está voltado para a introspecção, à loucura e sonhos, que encanta e apesar de ser uma leitura arcaica, é também envolvente e permite ao leitor deslocar-se no tempo e conhecer um personagem que defende os ideais que até hoje nós defendemos.

Dom Quixote de la Mancha é rico em imaginação criadora, tornando-se referência para outros escritores, tais como, o inglês Daniel Defoe, cujo personagem náufrago Robinson Crusoe e o nativo Sexta-Feira têm muitos traços em comum com D. Quixote e Sancho Pança, como também inspiração para a literatura infantil do italiano Carlo Collodi e seus personagens Pinóquio e o Grilo Falante. Na literatura brasileira Mário de Andrade dá destaque ao seu personagem Macunaíma ao compô-lo sob a influência da obra espanhola.

Desta forma podemos analisar a sua estrutura através de sua composição: é, sobretudo, uma obra cuja narrativa é fechada. Ou seja, a história é apresentada por um narrador heterodiegético, interno, onisciente, interventivo, em terceira pessoa, conhecedor dos sentimentos mais internos dos personagens, que simplesmente conta o que acontece com Dom Quixote e das personagens secundárias sem participar da história. Outro tipo de narrador é destacado a partir das diversas histórias de encaixe que compõem a obra. É o narrador autodiegético, pois cada personagem narra sua própria história.

O tempo é determinante na compilação dos fatos. Observamos que há uma variação que enriquece de forma ilustrativa a narrativa: Primeiro o tempo cronológico. A obra é linear, possui um início, um meio e um fim, retratando a contagem dos dias e meses em que ocorrem os fatos.

A personagem Dom Quixote apresenta no decorrer da história uma oscilação na percepção do que seja real ou imaginário o que acaba construindo uma personalidade quase demente, representado pelo tempo psicológico. As anacronias e as anisocronias também ganham destaque na narrativa. A primeira por se tratar da diferença da história narrada de cavalarias que não se praticava mais na época decorrente, isto é, já não existiam cavaleiros andantes. A segunda pelo fato das digressões, ou seja, há em suas narrativas muitos comentários que tardam o relatar dos fatos.

Em relação ao espaço a obra divide-se em físico e psicológico. No físico destacam-se os lugares em que o fidalgo Dom Quixote vive suas aventuras de cavaleiro andante. Dentre eles podemos destacar: a casa, a aldeia, Campo de Montiel, Porto Lápice, venda, estalagem, Serra Morena, entre outros que se somam ao psicológico, que é a imaginação de Dom Quixote e a esperança de seu fiel escudeiro Sancho Pança em relação à conquista de uma ilha.

Cervantes apresenta Dom Quixote de la Mancha como uma novela realista composta por 126 capítulos, divididas em duas partes: a primeira surgida em 1605 e a segunda em 1615, distribuída respectivamente pela sabedoria, amizade, enternecimento, encantamentos, loucuras e divertimentos. Dom Quixote e Sancho Pança são personagens que representam valores distintos, embora pertençam ao mesmo mundo. O autor adota o processo da paródia apresentando contrastes através da deformação grotesca e pela deslocação do patético para o burlesco, numa visão irônica do mundo moderno. É justamente dessa visão que surge também o confronto entre o passado e o presente, assim como, o ideal e o real e o real e o social. Na contemporaneidade é considerada uma prosa épica de escárnio devido à ironia de Cervantes, que dá um ar sério e grave a compilação da obra.

O que marca a modernidade em Dom Quixote de la Mancha é justamente a apresentação do anti-herói associado a uma narrativa densa e enriquecida pela metalinguagem, em que o autor convida o leitor a pensar e não a sonhar como o próprio protagonista. É, portanto também considerado um meta-romance, eminentemente popular cujos elementos pitorescos e da paródia, influenciaram a autores brasileiros, dentre eles: Machado de Assis, Lima Barreto, Ariano Suassuna e Monteiro Lobato. Este último escreveu a versão infantil da obra.

Outras inovações aparecem no decorrer da narrativa, principalmente pelo aspecto simbólico e pela inadaptação do anti-herói e o mundo real. Cervantes mescla prosa e poesia, ideal e realidade, com elementos cômicos, inovando a forma de narrar, utilizando termos e jargões, assim como a linguagem rebuscada utilizada pelos cavaleiros, para satirizar o gênero das novelas de cavalaria. Essa linguagem utilizada por Cervantes é justamente cheia de lirismo metafórico semelhante a dos poemas homéricos, tornando-o o reverso do herói épico tradicional.

A concepção do herói moderno é justamente o que representa a posição de anti-herói em Dom Quixote. Ou seja, ele é problemático, é solitário, angustiado e vive em conflito com o mundo. Desta forma o anti-herói quixotiano é mais significante que o herói tradicional, pois ele surge para exatamente contestar os padrões pré-estabelecidos pela estética heroica. Em Dom Quixote de la Mancha, Cervantes desvirtua a imagem do cavaleiro idealizado, rebaixando o significado de herói, transformando-o em uma figura grotesca, fazendo da obra um clássico da literatura universal.

Segundo Ítalo Calvino (2007, p. 10), em seu livro Por que ler os clássicos, afirma que “existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente”. Para ele a obra para ser considerada um clássico é preciso que exerça uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis. É o que acontece em Dom Quixote de la Mancha, em que um personagem comum, um anti-herói, que não é um espelho voltado para a natureza, mas para o leitor, fascina por sua persistência, resistindo ao sofrimento e ao desprezo, conquistando a admiração do leitor, tornando-se em um paradigma universal.

Em Onde encontrar a sabedoria, Harold Bloom (2005, p.112) afirma que Dom Quixote de la Mancha é uma obra “cujo o tema autêntico é a própria literatura e a crônica de uma realidade nua e crua”. Esse anti-herói adentra o centro visionário da história em que ele figura, enlouquecido pela leitura, buscando um novo eu capaz de superar o istmo entre loucura e lucidez. Desta forma quanto maior é a sua urgência em busca do eu, mais ele se retrai numa luta contra o princípio da realidade em que vive. Bloom (2010, p.172) em O cânone Ocidental, ainda afirma que o “Dom e Cervantes juntos evoluem par a um novo tipo de dialética literária, que alterna em proclamar a potência e a futilidade da narrativa em relação com os fatos reais”.

Essa ausência do herói na literatura contemporânea é notada pela falta que o mesmo faz em uma obra. Mesmo se criando personagens esteticamente considerados anti-heróis, que agradam a seus leitores, e tem o seu espaço garantido, falta na literatura o personagem que nos permita voltar a sonhar com o heroísmo e a magia que a literatura medieval exercia sobre o leitor. O que é um grande paradoxo, quando esperamos que surgisse um herói num mundo tão desconstruído de sonhos, em que a realidade é fria e agressiva, cheia de individualismos e culto a violência.

Neste contexto então, é cabível que nos conformemos apenas com os heróis que ainda sobrevivem nos gibis ou os que são adaptados para o cinema, até que eles se percam no ostracismo que o tempo exerce sobre a figura de todos aqueles personagens que um dia também foram heróis. Em Dom Quixote de la Mancha ainda existe o fascínio de sua narrativa que transcende o tempo. Ela ainda exerce e influencia a novos escritores que sempre o remete em suas obras, fazendo do anti-herói exemplo e referência.

REFERÊNCIAS

BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 200.

BLOOM, Harold. Onde encontrar a sabedoria? Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

__________ O cânone ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

CALVINO, ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CERVANTES, Miguel de. Dom Quijote de la Mancha. Texto em português de Orígenes Lessa. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

ginaldo
Enviado por ginaldo em 03/12/2012
Código do texto: T4017435
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