Trançando histórias com valorização, respeito e representatividade

“Amarra esse cabelo, você deixa ele pra cima, tá me atrapalhando! Seu cabelo parece o dos homens das cavernas, não parece? Por que você não alisa esse cabelo? Faz uma touca! Eu também tinha cabelo ruim, mas fiz tratamento e olha como ficou bom!” Essas são apenas algumas frases que alunos e alunas negros já ouviram dentro e fora do ambiente escolar. São os típicos comentários pejorativos dispersados “enquanto muitos se apegam ideia de que, talvez, vivêssemos num país onde não existe qualquer contradição ou desarmonia, que descarta incidentes de discriminação por considerá-los insignificantes as vítimas, dedicadas a perturbar a paz social. (LIMA, 2023, p. 6).”

São injúrias raciais causadas por aqueles que alegam não serem racistas, os quais, quando confrontados sobre suas falas, justificam com o mesmo discurso: antes ninguém reclamava de nada, todo mundo falava isso antigamente, de primeiro a gente brincava com tudo e não tinha esse mi mi mi. “Ainda persiste em nosso país um imaginário étnico-racial que privilegia a brancura e valoriza principalmente as raízes europeias da sua cultura, ignorando ou pouco valorizando as outras, que são a indígena, a africana, a asiática [...]. Ainda vivemos em um país marcado por uma sociedade que, para discriminar os negros, utiliza-se tanto da desvalorização da cultura de matriz africana como dos aspectos físicos herdados pelos descendentes africanos. (BRASIL, 2004, p. 14-15).”

Por que algumas pessoas podem manter os seus cabelos assim como são, sem sofrer nenhuma discriminação, enquanto outras precisam lutar pelo direito de viver com o seu próprio, cabelo da forma como ele naturalmente é? Recoiled (2019), animação contendo oito minutos de vídeo, produzida por alunos do Programa de Artes Eletrônicas da Missouri State University, conta a história de duas irmãs negras, de cabelos crespos e os desafios vivenciados por elas todos os dias. Estes desafios diários provém do preconceito racial sofrido na escola. Em uma tentativa de ser “aceita” pelos colegas e não mais ser vítima de ofensas, a irmã mais velha resolve alisar seu cabelo. Contudo, esse novo visual provocou em sua irmã mais nova o desejo de também passar pela mudança. Percebendo o quanto a sua ação havia sido prejudicial a autoestima da mais nova, a irmã mais velha se uniu a irmã pequena em um ato exemplar de amor, empatia, respeito e valorização aos cabelos crespos.

O desejo de afirmar, representar e valorizar a beleza da mulher negra deu origem ao filme “Beleza da Noite”, exibido na Tela Quente, TV Globo, em 23 de Janeiro de 2023. O curta-metragem gravado na Bahia, é protagonizado por Michellini, mãe que levou sua filha Suellen para comprar uma boneca em comemoração ao aniversário de 8 anos da menina. Michellini encontrou nas prateleiras da loja uma boneca preta linda, contudo a filha preferiu levar para casa a boneca branca. “Será que ela não quis a outra boneca porque ela não consegue enxergar beleza na boneca preta?” A mãe sentiu que a filha carecia de referências que a fizessem reconhecer a sua própria beleza. A partir da descoberta de que poderia ocupar um espaço de valorização da beleza preta, Michellini reconheceu que poderia ser, ela própria, a maior representação de beleza na vida de sua filha. Ao ver sua mãe como Rainha do Ébano, Suellen pode deixar fluir todo o amor que tinha pela sua negritude, pois descobriu que o lugar da beleza também pertencia a ela.

No Reality Big Brother Brasil 23, no episódio do dia sete de Fevereiro, um momento intitulado “Histórias Trançadas” une a vida das seis mulheres negras da casa em menção aos suas tranças afro. Ao trançar, destrançar, deixar a coroa crespa brilhar, tomar forma, tomar vida Tina, Paula, Sarah, Marvvila, Aline e Domitila representam a força ancestral de cada mulher negra que assisti ao reality e sente-se parte da história trançada por elas. Também no reality show BBB23, em uma conversa no dia 14 de Fevereiro, Fred Nicácio se alegra em ter a oportunidade de participar de momentos nos quais estão reunidas diversas pessoas pretas, entre os quais há pessoas pretas retintas, pretas de pele clara e pretas marrons. Paula afirma ter descoberto ser uma mulher preta de pele clara durante a participação no programa. Fred acrescenta: “Saber que é preto, se reconhecer preto, salva vidas!”

Conhecer histórias protagonizadas por pessoas negras e suas vivências cotidianas propicia momentos para refletir com os alunos a respeito de quem deve partir a mudança em uma situação de preconceito, quem o comete ou a vítima? Será que aqueles que discriminam sabem quando e como o preconceito é manifestado? Será que cada indivíduo tem conhecimento para reconhecer as consequências de seus comentários na vida de seu colega? Mas como saber se suas falas reproduzem um preconceito, quando muitos ainda são educados acreditando que vivem em uma sociedade em total harmonia? Negando a existência do preconceito racial, quem o comete nunca saberá do seu erro, nunca compreenderá a dor que desperta no mais íntimo sentimento do seu próximo. O racismo permanecerá sempre sendo cometido pelo “outro”, que não se sabe quem é, que nunca sabe o que faz, que foi educado achando que seus atos não eram preconceito, pois, para ele, racismo não existe.

Mas como apresentar, em sala de aula, a existência do racismo nas relações entre os próprios estudantes? A partir do reconhecimento do que é verdadeiramente respeitar as diferenças para que todos sintam-se iguais. “Reconhecer exige a valorização e respeito às pessoas negras, à sua descendência africana, sua cultura e história. Significa buscar, compreender seus valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura de seus cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz africana. (BRASIL, 2004, p. 12).”

Uma fala ou mensagem escrita em preconceito ao cabelo do colega não deve ser tolerada e tampouco se deve esperar o dia da Consciência Negra para esclarecer o tema, visto que é preciso ter consciência todos os dias e a melhor ocasião para abordar a existência da discriminação não deve se restringir a uma data específica, mas ao momento em que a ofensa surgiu na própria convivência em sala de aula. O professor tem um papel fundamental na formação de cada um dos alunos, dado que sua profissão tem caráter social. Ele é um referencial para a formação das crianças que precisam aprender através de ações afirmativas, isto é, conjunto de ações políticas, educacionais e sociais dirigidas a formar uma nova consciência sobre o quão importante e presente é a cultura Africana e quão valorosa é a sua descendência desde seus traços físicos até as suas manifestações culturais.

Atos que gerem humilhação e negação do direito do indivíduo de ser quem se é, de valorizar as suas raízes e a sua estética natural não podem ser aceitos dentro da “escola, que, enquanto instituição social responsável por assegurar o direito da educação a todo e qualquer cidadão, deverá se posicionar politicamente, como já vimos, contra toda e qualquer forma de discriminação. A luta pela superação do racismo e da discriminação racial é, pois, tarefa de todo e qualquer educador, independentemente do seu pertencimento étnico-racial, crença religiosa ou posição política. (BRASIL, 2004, p. 16).”

Ações que visem afirmar a igualdade racial entre pessoas pretas, pardas, brancas, indígenas e asiáticas, podem reeducar a relação entre elas, frisando sempre a transmissão de informações confiáveis, fundamentadas na vivência da pessoa negra, visto que são elas a possuírem lugar de fala para identificar quais comportamentos violam o seu direito ao respeito e ao tratamento igualitário. As crianças precisam reconhecer o espaço da escola como ambiente seguro para compartilhar o que sentem e como são recebidas por seus colegas.

O que é racismo não deve ser medido pelo ideal da pessoa branca sobre as suas falas, mas sim pelo sentimento da pessoa negra em relação ao que ouviu, viu, leu, presenciou. É a fala negra que deve direcionar o entendimento social sobre o que são atos racistas e como eles maltratam e oprimem suas vítimas. A criança branca não compreenderá a dor gerada por comentários ofensivos ao cabelo de seu colega se não houver a mediação do professor. Para que cada criança seja sensível e capaz de corrigir de posturas, atitudes e palavras preconceituosas, é necessária a intervenção do professor em casos de preconceito racial, visto que as crianças brancas não são vítimas do racismo, e, portanto, nunca passaram pela dor sentida pela criança negra.

Uma nova consciência sobre seus comportamentos será formada quando a criança branca tiver a oportunidade de reconhecer o quanto suas falas machucam o seu colega. Para tanto, é preciso dialogar com os alunos sempre orientando a olhar para o colega e perceber se ele se sente triste, magoado, com medo. A partir do entendimento sobre o que o seu colega escuta, vê, lê e sente quando é alvo do preconceito racial, as crianças tomarão consciência do mal provocado pelo racismo e, a partir dessa nova consciência, sentimentos de empatia nascerão e construirão uma nova relação com base no respeito as emoções sentidas pelo próximo. Ao presenciar um ato de preconceito, a criança se lembrará de tudo o que aprendeu com o seu professor, refletirá sobre o que está presenciando, e, por fim, não reproduzirá a ação devido a sua nova consciência, pautada pelo dever não agir de modo a ofender e entristecer seu colega, em razão de todos possuírem o mesmo valor social e o direito de reverenciar as suas origens e admirar as suas diferenças.

Portanto, ao apresentar, em sala de aula, histórias movidas pela Pluralidade Cultural “é possível ensinar aos alunos o desenvolvimento de atitudes de empatia para com aqueles que sofrem qualquer tipo de preconceito. (LIMA, 2023, p. 19).” Assim afirma a Ubuntu, filosofia tradicional africana: “Eu sou porque você é”. Maju Coutinho citou a frase ao afirmar que ela e seus colegas são jornalistas porque Glória Maria abriu portais para eles estivessem ali. “Eu sou porque você é”. Em Recoiled, A irmã mais nova reconheceu o quanto seus cabelos são lindos porque a sua irmã mais velha foi o seu exemplo de amor, valorização e respeito aos cabelos crespos naturais: “Eu tenho cabelos lindos porque você tem crespos lindos!” No filme Beleza da Noite, Suellen, com sua mais nova boneca preta linda, se tornou a princesa do Ébano ao se inspirar em sua mãe, uma deslumbrante Rainha do Ébano: “Eu sou princesa porque você é rainha!” No Big Brother Brasil, Tina, Aline, Marvvila, Sarah, Paula e Domitila trançam suas histórias, sendo referências de beleza e poder com suas tranças afro e coroas crespas poderosas, que elevam a autoestima de milhares de meninas e mulheres telespectadoras do reality: “Eu posso ser livre para admirar a minha negritude porque você é livre!”

Vivenciando histórias sensíveis ao lugar de fala da pessoa negra, ao lugar de afeto, de admiração, de respeito, de encorajamento, de beleza, de inteligência, de cultura, as crianças negras e não negras sentirão o mesmo amor, participarão da mesma luta e nutrirão o mesmo desejo: “O amor está em cada um de nós, vamos juntos semear a paz, por um mundo novo de igualdade racial! (ROSAS DE OURO, CARNAVAL 2023).”

REFERÊNCIAS

ANCINE. GLOBOFILMES. Beleza da Noite. 38 min. 2022. (FILME). Disponível em: https://globoplay.globo.com/beleza-da-noite/t/yY8Cq6hrgv/. Acesso em: 26 fev. 2023.

BIG BROTHER BRASIL 23. Programa de 14/02/2023. (17min54s-19min32s). Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/11369414/?s=0s. Acesso em: 26 fev. 2023.

BIG BROTHER BRASIL 23. As tranças e conexões ancestrais no BBB 23. 4min. (VÍDEO). Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/11349482/?s=0s. Acesso em: 26 fev. 2023.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicos-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF, 2004. 35p.

FANTÁSTICO. Gloria Maria deixou um legado grandioso para jornalistas e comunicadores. 13 min. (VÍDEO). Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/11342119/?s=0s. Acesso em: 26 fev. 2023.

LIMA, Terezinha Bazé de. Relações Étnico-Raciais na Educação e Educação Indígena. Terezinha Bazé de Lima. Dourados: UNIGRAN, 2023. 54p.

MISSOURI STATE UNIVERSITY’S. Recoiled. 08 min. 2019. (ANIMAÇÃO). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Pp3AyxbN3zY. Acesso em: 26 fev. 2023.

ROSAS DE OURO. "Kindala! Que o amanhã não seja só um ontem com um novo nome". Desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial de São Paulo. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/11379926/. Acesso em: 26 fev. 2023.