Sujeitos da história e das lutas históricas: a conquista da representatividade negra e indígena nos livros didáticos

A história contada pelos livros didáticos até o início dos anos 2000 priorizou as narrativas conduzidas pelo olhar e pela escrita de pessoas brancas. Por consequência, a história dos Povos Indígenas presente nos materiais didáticos limitou-se a visão do europeu dominador: os indígenas foram apresentados como pessoas escravizadas, destoantes das regras de convívio social aceitas pelos colonizadores e como pessoas sem fé, que precisavam conhecer a Deus por meio de catequização religiosa. As imagens que ilustram presença Indígena na história do Brasil se resumiam aos momentos de opressão. Privilegiava-se as fotografias e pinturas de catequização e ficava omitida a existência de fotografias que apresentavam os Povos Indígenas em seus próprias manifestações culturais.

Quando retratada a fotografia da pessoa Indígena, não era destacado o seu nome, a sua etnia e o local de moradia. O tratamento desrespeitoso provocava o desconhecimentos por parte dos estudantes no que se refere a existência de variadas etnias, línguas, pinturas, esculturas, religiões e cultos Indígenas. “As obras perdem a sua dimensão de bens simbólicos (produzidos por e para alguém), já que a historicidade das imagens é omitida nos livros. A História ganha ares de realidade inequívoca e inquestionável, bem ao jeito positivista de fazer ciência. Por outro lado, o modo como muitas imagens foram utilizadas deixa a impressão de se tratar de acontecimentos passados, sem continuidade ou consequências presentes. (LIMA, 2023, p.29).”

As imagens que seguem abaixo estão presentes em um livro de História PNLD 2010 e ilustram um excerto da Carta de Pero Vaz de Caminha. (Não foi possível publicar a imagem)

Descrição: O menino Indígena, fotografado por volta de 1880, e o adulto Guarani-Kaiowá (Paulito Aquino, da aldeia Panambizinho), fotografado em 2000, usam no lábio o tembetá, peça semelhante à que foi descrita na carta de Pero Vaz de Caminha).

A legenda das imagens apresenta a identificação da pessoa por seu nome, sua etnia, aldeia na qual mora e ano de tiragem da foto. Nesse caso, as imagens surgem como construção de um acontecimento histórico, ademais, pela escolha de uma fotografia relativamente atual, é possível identificar a continuidade do fato no tempo presente, isto é, o aluno terá a oportunidade de reconhecer que a redação da carta de Pero Vaz de Caminha descreve um traço cultural indígena que se mantém presente até a atualidade. Como afirma BARBOZA: “As formas de representação podem revelar detalhes ricos da cultura de uma etnia como também passar conceitos de respeito à diversidade. (p. 362).”

À semelhança do descuido com a representação indígena, “a violência e o sofrimento marcam a entrada dos negros na narrativa visual dos livros didáticos. (LIMA, 2023, p. 27).” Pessoas negras foram exaustivamente retratadas em situações de escravidão e raramente estavam presentes em ilustrações a respeito da vida cotidiana, da família, das mais variadas profissões, entre outras imagens que não são parte da narrativa do período escravocrata. “Na década de 70 do século 20 a presença do branco nas ilustrações era visível. Os coletivos e multidões eram personagens brancos e eles também ocupavam posições de proeminência; eles eram diversificados e mostravam maior gama de atividades ocupacionais, denotando posições de prestígio e poder. (BARBOZA, 2020, p.370).”

As imagem abaixo está presente em um livro de Geografia PNLD 2010. Ao lado da imagem está escrito: A atividade retratada na fotografia faz parte do setor serviços.

(Não foi possível publicar a imagem)

A fotografia retrata um médico negro no exercício de sua profissão. No contexto atual, os Livros Didáticos apresentam maior representatividade em ilustrações da sociedade, garantindo a presença da pessoa negra como participante de variadas ocupações profissionais, entre elas, as que denotam posições de prestígio social.

No que diz respeito a Livros Didáticos do Anos Iniciais do Ensino Fundamental, as ilustrações por imagens gráficas são tão importantes quanto as imagens fotográficas, visto que as crianças possuem familiaridade com a forma de representação dos desenhos animados e seus personagens lúdicos que chamam a atenção e despertam a curiosidade infantil. Livros repletos de personagens que dialogam com a criança contribuem para melhor interpretação do conteúdo textual. Contudo, até o início dos anos 2000, os alunos eram apresentados exclusivamente a imagens que retratavam figuras de pessoas em tom “cor de pele”. Tal falta de representatividade culminou em um costume nada saudável entre as crianças: o entendimento de que imagens de pessoas sempre deveriam estar pintadas por aquela única cor, o rosa salmão, que caracteriza o tom de pele branco. Na série Encantado’s, Globoplay, uma senhora pergunta a dona do supermercado: “Tem lápis cor de pele?”, a resposta foi “Qual? Da minha, da dela, da dela ou da sua?”

A figura abaixo, presente em um Livro de Geografia PNLD 2013, exemplifica uma dinâmica muito presente em Livros Didáticos dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental: a representação de alunos por meio de personagens em imagens gráficas.

(Não foi possível publicar a imagem)

Na imagem, estão representados alunos de variados tons de pele, tipos de cabelo e até mesmo calçados, ilustrando a diversidade de perfis entre estudantes de uma mesma turma. Aqui, vemos pessoas que talvez sejam da cor da minha pele, ou da dela, colega ao lado, ou da sua, a colega a frente. A possibilidade de ver figuras de tons de pele em suas variedades interioriza na criança a compreensão de que é possível se representar em desenhos e pinturas com a cor de sua própria pele.

Os livros didáticos editados nos últimos 20 anos têm como referencial para a produção do seu conteúdo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que orienta a: “Edição de livros e de materiais didáticos, para diferentes níveis e modalidades de ensino, que atendam ao disposto neste parecer, em cumprimento ao disposto no Art. 26A da LDB, e, para tanto, abordem a pluralidade cultural e a diversidade étnico-racial da nação brasileira, corrijam distorções e equívocos em obras já publicadas sobre a história, a cultura, a identidade dos afrodescendentes, sob o incentivo e supervisão dos programas de difusão de livros educacionais do MEC – Programa Nacional do Livro Didático e Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE). (BRASIL, 2004, p. 25).”

A formação de comissões de educadores com diversidade étnico-racial entre seus membros, tal qual a presença de pessoas indígenas e negras nas Comissões Técnicas do PNLD, são indispensáveis para garantia de que os avanços no tratamento de pessoas negras e indígenas nos livros didáticos na atualidade se perpetuem. “Com o avanço dos direitos no país, ativistas e professores construíram juntos novas maneiras de repensar tanto a representação do negro e do índio em livros didáticos. Consequentemente, há maior preocupação com a apresentação da diversidade étnico-racial para as novas gerações. (BARBOZA, 2020, p.362).” Para tanto o coletivo Educação Já divulgou um documento intitulado “Equidade étnico-racial na educação: recomendações de políticas de equidade étnico-racial para os governos federal e estaduais”, no qual defende como meta: “Garantir a representação de profissionais negras, indígenas e quilombolas nas comissões técnicas do PNLD: Recomenda-se a criação de mecanismos de representação de pessoas negras, indígenas e quilombolas na composição da comissão técnica do PNLD, garantindo a presença desses grupos entre o corpo de especialistas pedagógicos do Ministério da Educação que acompanha todo o processo de seleção dos materiais pedagógicos. (EDUCAÇÃO JÁ, 2022, p. 95).”

À semelhança da exigência para os livros didáticos, as escolas precisam garantir a “Inclusão de personagens negros, assim como de outros grupos étnico-raciais, em cartazes e outras ilustrações sobre qualquer tema abordado na escola, a não ser quando tratar de manifestações culturais próprias, ainda que não exclusivas, de um determinado grupo étnico-racial. (BRASIL, 2004, p. 24).” Em eventos como Dia da Família na Escola, Dia dos Pais e Dia das Mães, as figuras que representam pessoas como alunos e seus familiares, deverão comtemplar um retrato da diversidade presente no ambiente escolar e na sociedade. Os alunos têm o direito de reconhecer a si e a sua família no painéis decorativos das reuniões escolares e nas lembrancinhas de datas comemorativas. Para tanto, as crianças precisam de acesso a lápis e gizes de cera que deem a possibilidade de retratar ao seu pai e a sua mãe nos seus próprios tons de pele.

As ilustrações são recursos imprescindíveis para elucidar a visão das crianças sobre o tema a ser estudado. “O livro didático, ao cumprir a sua função educativa de informar e formar gerações, contribui também para difundir e perpetuar determinadas ideias, valores, preconceitos e estereótipos. (BARBOZA, 2020, p. 366).” A partir das imagens do livro a criança pode mensurar qual a realidade vivenciada pelo texto, quais pessoas faziam parte do momento histórico narrado e como as pessoas participam da sociedade, ou seja, quais lugares possuem o direito de ocupar. O aluno dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental procura se identificar com as personagens que se fazem presentes nas instruções de apresentação das seções do livro, nas histórias que são contadas em formas de quadrinhos, e, em especial, nas ilustrações da sociedade, caracterizadas pelas situações de convívio cotidiano entre os diferentes sujeitos. Quando a criança se procurar entre as ilustrações e encontrar personagens que lembrem a si própria, ela se sentirá integrante do mundo escolar, sujeito da história, existente, presente e importante para a sociedade.

REFERÊNCIAS

BARBOZA, Rainiel Lopes. As representações do negro e do índio nos livros didáticos brasileiros (1970-2000). Revista Eletrônica Discente do Curso de História, UFAM, ano 4, v. 4, n. 1, p. 362-374, 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicos-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF, 2004. 35p.

EDUCAÇÃO JÁ. Equidade Étnico-Racial na Educação: recomendações de políticas de equidade étnico-racial para os governos federal e estaduais”. 2022. Disponível em: https://www.fundacaotelefonicavivo.org.br/acervo/caderno-equidade-etnico-racial-educacao/. Acesso em: 26 fev. 2023.

GLOBOPLAY. Encantado’s. (2022). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=vg3Y1GHJaGg. Acesso em: 26 fev. 2023.

GRESSLER, Lori Alice. História do Mato Grosso do Sul, 5º Ano / Lori Alice Gressler, Luiza Mello Vasconcelos, Zelia Peres de Souza Kruger. São Paulo: FTD, 2008.

LIMA, Terezinha Bazé de. Relações Étnico-Raciais na Educação e Educação Indígena. Terezinha Bazé de Lima. Dourados: UNIGRAN, 2023. 54p.

Mundo amigo: geografia / obra coletiva concebida, desenvolvida e produzida por Edições SM; editora responsável Renata Paiva. 1. ed. São Paulo: Edições SM, 2011. (Mundo amigo)

RAMA, Angela. Projeto Prosa: geografia, 4º ano / Angela Rama, Marcelo Moraes Paula. São Paulo: Saraiva, 2008.