“Oh, capitão, meu capitão!”: livros didáticos e Educação Básica

A constatação de que os livros didáticos tornaram-se, acentuadamente, interlocutores dos alunos, sendo esses moldados e direcionados quase que exclusivamente pelos demonstrativos de aprendizagem que constam naqueles é o mote desse texto. O professor ainda é o mediador entre o seu conhecimento e o conhecimento de seus alunos? As ações diretivas das aulas em contexto de Educação Básica são ainda sustentadas pelo conhecimento do professor?

Estudei durante doze anos (1994 a 2005) na mesma instituição de ensino pública em um pequeno município (com pouco menos de três mil habitantes) do estado do Rio Grande do Sul. O ensino de Língua Portuguesa que recebi durante minha vida escolar na Educação Básica foi, prioritariamente, um estudo sistemático de regras da gramática, com teor, puramente, de memorização para as avaliações bimestrais.

Eu sempre fui um menino que percebia a linguagem com uma tonalidade distinta daquela que me era ensinada na escola. Mesmo sabendo que a pronúncia das pessoas do meu “povoado” era diferente daquela que eu aprendia na escola, instigava-me bastante o saber dos porquês dessa diferenciação que causava humilhação quando da saída para uma cidade mais urbanizada.

Sempre me interessei bem mais pela figuração da língua do que pelo modo tradicional como ela estava sendo ensinada em sala de aula. A língua com objetivos marcantes de expressão para a sensibilidade; foi assim que a tencionei em minha mente desde então.

Recordo-me de que na quinta série do Ensino Fundamental, foi adotado um livro didático que, a primeira vista, deixou-me exultante. Um livro no qual o conteúdo era, basicamente, o estudo de textos. Saliento que esses textos eram diversificados: anúncios publicitários, letras de músicas, reproduções de telas de pintores famosos, sinopses de filmes, etc. Hoje, como docente linguoliterário, sei que isso se refere ao trabalho com gêneros discursivos dentro da perspectiva de Mikhail Bakhtin.

Agradava-me muito aquele material, uma vez que eu ficava por longos períodos no meu quarto lendo aqueles textos e procurando encontrar no meu cotidiano alguma relação com eles. Eu tinha um caderninho em que anotava as sinopses dos filmes, na esperança de que algum dia eu pudesse assisti-los (por razões contextuais, meu acesso à bens culturais era restrito).

Parece estranho? Mas reflitamos: em uma cidadela interiorana, sem locadoras de filmes, sem acesso à internet (falo do ano de 1999), o que enchia meus olhos eram as páginas com conteúdo artístico daquele livro didático. O livro didático em questão foi utilizado em sala de aula apenas uma vez. Abriu-se certa página, na qual havia a reprodução de uma tela, de Cândido Portinari, chamada Os retirantes. Abaixo do texto não verbal, algumas notícias sobre a região nordeste do Brasil. Pensei que iríamos discutir alguma coisa referente à situação social do nordeste, sobre como aquela pintura relacionava-se ao uso da língua, etc. Para minha surpresa, a atividade proposta fora a de que desenhássemos em nosso caderno a reprodução da tela de Portinari.

Para meu deleite, nas minhas tardes “sem sal” dos meus onze anos de idade, aquele livro didático era como que uma louvação a tudo o que um dia eu sonhava poder ter conhecimento maior.

Tenho cadernos guardados em minha casa (ou melhor, na casa dos meus pais) e que podem se valer como argumentos de autoridade. Quando cursei a quinta série, quase nunca foi proposta a escrita de redações. Quando cursei a sexta série, produzidos alguns resumos de notícias de jornal e elaboramos algumas histórias em quadrinhos. Quando cursei a sétima série, ensinaram-me a produção de narrações, e apenas quando cursei a oitava série é que fui ensinado a produzir dissertações.

No filme Sociedade dos poetas mortos, de 1989, dirigido por Peter Weir, um professor de literatura, antigo aluno de uma escola de educação ortodoxa, passa a ensinar literatura a partir das individualidades dos seus alunos, crendo ser possível que a argumentação e que a sensibilidade funcionem como questionadoras e como reformuladoras do mundo (de si, dos outros e do que está posto como verdade).

Em uma das cenas, se não me falha a memória, a cena em que o professor Keating ministra a sua primeira aula de literatura na escola em questão, os alunos acostumados com a exigência de utilizar o livro didático, abrem as páginas do livro que usam para a aula de literatura e um dos alunos começa a ler as explicações de certo autor sobre o que é poesia.

Para surpresa dos alunos, o professor solicita-os que rasgarem a página que estão a ler e começa a instigá-los a formular suas próprias opiniões acerca do conceito de poesia. Sociedade dos poetas mortos era um dos filmes que eu li a sinopse naquele meu livro didático da quinta série. Apenas em 2007 é que tive acesso a ele e que pude assisti-lo.

Como docente, tento formular, com meus alunos, conceitos a partir das suas individualidades. Tento, também, fazê-los sentir mais profundamente a poesia que pulsa no cotidiano. Em suma, tento naturalizar o que eles já sabem para torna-los questionadores da realidade, observadores contumazes da realidade. Procuro despertar a consciência dos seus processos singulares de aprendizagem a partir da percepção de suas socioculturabilidades.

E talvez, um dia, os meus alunos poderão repetir a cena final do filme Sociedade dos poetas mortos: depois do professor Keating ser expulso da escola por fazer dos seus alunos muito mais do que simples assimiladores passivos de conhecimento e muito mais do que reprodutores de informações, eles, emocionados, ficam em pé em suas carteiras e exaltam o seu mestre dizendo em voz alta “Oh, capitão, meu capitão!”