PRAXEOLOGIA NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

Luiz Carlos Pais

 
O objetivo deste texto é analisar alguns elementos característicos da prática docente na Educação Matemática, articulando aspectos específicos do saber matemático com as diferentes maneiras de conduzir as atividades didáticas. A realização dessa análise é conduzida com base na Teoria Antropológica do Didático, proposta pelo educador Yves Chevallard. Uma análise qualitativa do tipo fenomenológico foi realizada a partir de um conjunto de sentenças significativas retiradas dos textos originais. Foi possível identificar a existência de uma estreita relação entre a prática docente e aspectos praxeológicos do estudo da matemática. Uma das características dessa relação é o fenômeno da matematização do processo de estudo, através da identificação das organizações matemáticas e didáticas, onde as estratégias metodológicas são confundidas com a formalização textual do saber matemático.
 
PALAVRAS-CHAVE: Ensino da Matemática, Educação Matemática, Praxeologias.

1. Tendências e Desafios atuais

Para abordar as condições de diálogo entre a pesquisa e a prática docente no ensino da matemática, partimos do pressuposto que é preciso considerar o local onde essa troca de experiências pode ocorrer. Esse campo de reflexão é formado pelas tendências atuais da Educação Matemática, onde convivem diferentes linhas de pensamento, cada qual abordando algumas dimensões da atividade matemática. Dessa maneira, tendo em vista a diversidade do fenômeno educativo, não podemos esperar que haja uma convergência absoluta no tratamento das questões próprias do ensino da matemática. Como acontece na área da Educação, na Educação Matemática também somos levados a conviver com as diferentes escolhas teóricas e metodológicas. Cada problema, ao ser analisado no quadro de uma referência, nem sempre tem a mesma solução dada por uma outra visão teórica. As categorias e métodos escolhidos esboçam uma solução específica cuja validade depende das referências.

Em vista das raízes positivistas do saber matemático, por vezes, somos levados a pensar que os problemas da educação têm uma solução única, como é usual ocorrer na ciência matemática. Mas, a evolução possível não ocorre dessa maneira em vista da diversidade e da natureza do fenômeno cognitivo. A expansão da Educação Matemática, nas últimas décadas, revela avanços que não devem ser esquecidos. O aumento do número dos cursos de pós-graduação redimensionou o panorama existente na década de 1980. A facilidade de acesso aos textos especializados, como acontece hoje, praticamente, não existia até pouco tempo. Essa facilidade expande as condições para levantar dados de pesquisa e também motivar a concepção de novas práticas.

O número de congressos aumentou de forma expressiva. As publicações representativas dos diferentes Programas de Pesquisas são também cada vez mais acessíveis. Assim, ficam ampliadas as possibilidades de repensar concepções e práticas. Livros didáticos atuais trazem aspectos inovadores quanto às organizações didáticas, aos recursos e sugerem estratégias diferenciadas. Esse tipo de material apenas induz a escolha das praxeologias a serem adotadas, mas trata-se, em sua maioria, de uma considerável fonte de referência da prática docente porque sintetiza resultados de várias frentes de pesquisas desenvolvidas nas últimas décadas.

Nos últimos anos, tem ocorrido um aumento expressivo das fontes de referências curriculares, pedagógicas e didáticas. A maioria dessas fontes resultou do trabalho integrado de educadores, pesquisadores e do poder público. Diante desse quadro, somos levados a indagar pelas implicações desse vasto material na prática docente, na realidade da sala de aula, nas distantes escolas do interior das regiões mais pobres, nas periferias das grandes cidades e nas condições de melhoria da educação pública. Há uma distância entre a potencialidade dessas fontes e a realidade educacional mais ampla. O educador engajado com a realidade não pode reduzir a dimensão dessa distância e os desafios existentes para a sua superação. Assim, somos levados a falar também de alguns desafios e obstáculos existentes nesse movimento.

O primeiro desafio a ser priorizado e tratado com todo cuidado, segunda a nossa visão, é o da formação docente, quer seja na vivência inicial realizada nos cursos de Pedagogia ou de Licenciatura, nos primeiros anos de experiência no magistério e no transcorrer da carreira. Embora os formadores dos futuros professores tendem a focalizar essa análise para as práticas externas ao domínio universitário, nossa experiência tem revelado a necessidade de repensar essa tendência porque o poder de influência exercido pelas práticas e pelos saberes acadêmicos é muito mais intenso do que se pode imaginar.

Quando trabalhamos com as disciplinas de Didática ou de Prática de Ensino, temos a oportunidade de perceber com mais clareza esse tipo de influência na formação dos futuros professores ou professores. As técnicas estudadas na formação inicial nem sempre são compatíveis para tratar das tarefas pertinentes ao trabalho docente. As praxeologias cultivadas no campo universitário, na vertente clássica da formação, não têm raízes nas atividades a serem conduzidas pelo futuro professor.

Por trás desse desafio antigo, há uma atitude conservadora, em termos de compromisso político, como se os efetivos problemas da educação escolar pudessem ser concebidos como uma referência distante das práticas e das teorias priorizadas na formação inicial. A solução para mudar esse quadro é zelar para que todas as forças convergentes possam ser somadas para ampliar as atuais condições de racionalização das práticas formadoras, aproximando o trabalho docente da natureza real das praxeologias pertinentes. Isso significa regular o foco da pesquisa para as atividades matemáticas e didáticas inerentes aos diferentes níveis da escolaridade prevista.

Como conseqüência desse problema da formação surge um segundo desafio relacionado à função didática das atuais fontes de influências da prática docente, como os PCN e as regras instituídas pelo PNLD, entre outras. A formação inicial é o momento ideal para também iniciar a compreensão do significado dessas fontes e da maneira de articular as suas orientações com a prática. Essa discussão toma corpo na medida em que os formadores se engajam de corpo e alma nessa missão, rompendo com a persistente separação entre conteúdos específicos e disciplinas pedagógicas. Em outros termos, trata-se de considerar os resultados já produzidos nessas últimas décadas e as experiências bem sucedidas. É preciso superar qualquer mal entendido quanto à finalidade das fontes orientadoras da prática que não é padronizar as ações didáticas, mas mostrar estratégias representativas para explorar a potencialidade educativa da matemática. Em vista da influência dessas fontes, existem algumas noções didáticas relativas ao ensino da matemática que revelam traços de uma prática docente idealizada. Um desafio a ser vencido na passagem dessa idealização para a prática é tratar a questão a partir das realidades institucionais envolvidas.

Quando defendemos a necessidade de envolver as diferentes instituições relacionadas à atividade matemática escolar, não podemos desconsiderar a presença marcante da visão clássica no ensino da disciplina. A prática usual inspirada nessa visão caracteriza-se por atividades concebidas e implementadas, quase somente, em torno dos conteúdos conceituais. Falar em conteúdos procedimentais ou atitudinais é algo estranho aos defensores dessa vertente tradicional do ensino da matemática, porque todas as ações e valores praticados por eles estão voltados para os conceitos matemáticos. Segundo nosso ponto de vista, essa concepção de educação ainda exerce uma influência considerável na condução da prática e nos fundamentos da formação de professores.

A tendência clássica presente nos programas de formação fundamenta-se no pensamento euclidiano, cujo pressuposto básico consiste em valorizar a sistematização do saber através da lógica dedutiva. De acordo com Gascón (2003), podemos tratar da visão clássica como uma linha de atuação onde as praxeologias são concebidas com base nesse tipo de pensamento. De acordo com a interpretação feita por este pesquisador, a visão clássica é conduzida pela articulação de outros dois tipos de organizações didáticas que são os referenciais tecnológico-teórico e tecnicista.

Trata-se de um tipo de prática onde há uma reduzida valorização da dimensão exploratória da atividade matemática, ou seja, o aluno não é estimulado a interagir mais diretamente com a atividade matemática, em busca de uma técnica ou do esboço de uma técnica para realizar uma tarefa. O traço mais relevante dessa vertente é a precedência dos conteúdos, métodos e objetivos desenvolvidos no território interno da matemática. Por exemplo, mesmo que a noção de contextualização do saber esteja presente entre os traços da vulgata contemporânea, não podemos desconsiderar a existência da vertente clássica, onde o contexto de ensino está circunscrito ao próprio saber matemático.

De modo geral, há sinais de mudanças no cenário mais amplo da educação matemática, como mostram alguns livros didáticos atuais, onde os conteúdos são usados como instrumento para resolver problemas, ao invés de serem tratados apenas como objeto de estudo. Propostas construtivistas originadas a partir do movimento da Escola Nova, no que diz respeito à valorização da dimensão experimental, estão presentes em muitas das estratégias atuais de ensino da matemática. Mas, por outro lado, sabemos também que as propostas construtivistas foram implementadas mais facilmente em nível das séries iniciais, tendo em vista as condições específicas da faixa etária envolvida.

A liderança exercida pelo educador matemático brasileiro Euclides Roxo, em torno da década de 1930, conforme analisa Valente (2002), aconteceu em um momento de particular crescimento da influência das idéias do movimento da Escola Nova no ensino da matemática. Mas, quando analisamos as práticas predominantes no Ensino Médio, por exemplo, percebemos que a visão construtivista não tem a mesma presença que tem nas séries iniciais. Por outro lado, a partir da influência do movimento tecnicista, predominante na década de 1970, ainda existem traços atuais dessa vertente pedagógica calcada na valorização do uso irrefletido do automatismo, da cópia e da repetição como estratégias de ensino, em detrimento das ações e dos argumentos que justificam a validade dos modelos e das regras presentes no estudo da matemática. Traços dessa prática de cunho tecnicista, de maneira geral, podem ser ainda identificados nos diferentes níveis da educação matemática escolar.

2. Práticas Docentes Reflexivas

Para analisar as relações entre prática e a pesquisa, é preciso ainda, cada vez mais, valorizar as bases teóricas das chamadas práticas docentes reflexivas, uma das linhas atuais de discussão da formação de professores. Como mostra a literatura pertinente, alguns teóricos que propuseram as primeiras idéias em torno do paradigma das práticas reflexivas não estavam pensando somente no caso da formação de professores, tinham a intenção de pensar em termos do profissional reflexivo. Mas, como estamos diante do desafio de ampliar as condições de profissionalização da carreira docente, três níveis se destacam em torno da questão: formar profissionais reflexivos; formar educadores reflexivos e finalmente formar professores que ensinam matemática de maneira reflexiva, onde os conteúdos possam ser utilizados como instrumentos para fazer matemática, sem perder de vista a especificidade do raciocínio pertinente. Portanto, não há como deixar de considerar a especificidade do estudo da Matemática porque, como sabemos, há um ciclo de interdependência entre os diferentes níveis educacionais.

A resolução de uma questão matemática pontual estudada em nível do Ensino Médio, por exemplo, pode envolver uma composição sucessiva de técnicas cuja compreensão inicial pode ter raízes nos conteúdos das séries iniciais. A quebra dessa rede encadeada de técnicas pode bloquear o estudo da matemática. Assim, ao falar de práticas reflexivas na educação matemática, devemos, inicialmente, considerar os resultados já sintetizados pelos pesquisadores que estudam a formação profissional e indagar como funcionaria essa prática no ensino da Matemática. É preciso estabelecer, além do diálogo interno à área, uma outra linha de comunicação com os desafios da formação do profissional reflexivo. Ao destacar esse aspecto, nossa intenção é contribuir na identificação das fronteiras comuns entre a Educação Matemática, os fundamentos mais amplos da Educação, sem perder de vista a especificidade do saber matemático.

Para analisar as condições de expansão das práticas reflexivas na Educação Matemática, precisamos indagar sobre o que pretendemos refletir, deixando claro qual é o objeto dessa reflexão. Em seguida, somos levados a estudar de que maneira essa reflexão pode ser realizada, ou seja, como o professor pode conduzir essa prática, sem perder de vista o poder das instituições envolvidas. Temos também a tarefa de compreender os motivos e os valores que sustentam essa reflexão e ainda o momento certo de exercê-la.

Em decorrência dessas questões interligadas, retornamos às diversas tendências atuais da Educação Matemática, onde podem surgir soluções nem sempre concordantes. Por exemplo, podemos dizer que não existe reflexão alguma em uma prática docente conduzida somente pelos conteúdos matemáticos? Por esse motivo defendemos a necessidade de se ter uma linha metodológica relativamente estabilizada e, partir dos valores envolvidos nessa posição, defender, com mais clareza, uma prática docente reflexiva. Mas, essa questão deve ser tratada a partir da formação inicial e não poderia estar reduzida a uma única linha paradigmática centralizada em torno da matemática.

Nossa intenção é fazer algumas articulações entre questões mais amplas da formação e da prática docente com a especificidade da Educação Matemática. Esse é um diálogo possível e necessário para ampliar a dimensão profissional do trabalho docente, de maneira geral, e em particular do professor de matemática. Além de pensar nos desafios da aproximação mútua da pesquisa com a prática de ensino, estamos também interessados em considerar os problemas já levantados no campo pedagógico mais amplo da formação. A nossa intenção é considerar a especificidade do trabalho docente no ensino de matemática e não perder de vista os desafios comuns a todas as disciplinas.

Todo esforço deve ser empreendido para aproximar tudo o que possa ser aproximado para superar os prejuízos acumulados e incorporar as sínteses que foram produzidas. Dois aspectos podem ser destacados na análise dessa questão. De um lado, parte dos formadores cultiva práticas conduzidas somente pelos conteúdos e a contextualização fica restrita ao território científico. Do outro lado, temos o desafio da formação nos cursos de Pedagogia, onde predomina, muitas vezes, uma insuficiência do tratamento conceitual dos conteúdos específicos. Nossa atuação como professor dos cursos de Pedagogia e de Matemática, tem nos proporcionado a oportunidade de tecer algumas comparações entre esses dois níveis de especificidade da Educação Básica.

Os elementos epistemológicos da atividade matemática estão articulados a um outro conjunto de elementos didáticos, constituído por objetivos, valores, métodos, estratégias de avaliação e dispositivos didáticos. Assim, não é suficiente saber como funciona um algoritmo. Além do domínio de conteúdo, o trabalho docente leva-nos a refletir sobre como irá funcionar o entrelaçamento entre as organizações matemáticas e didáticas, lembrando que não há neutralidade no saber científico. Segundo nosso ponto de vista, essa é a essência educacional da questão metodológica. O ensino tradicional faz opção por uma visão na qual predomina a parte estática das praxeologias matemáticas, sem considerar os valores que podem ser associados à utilização do saber científico.

3. Prática Docente e diversificação de recursos

Diferentes recursos tecnológicos da informática estão cada vez mais próximos da sala de aula e provocam a nossa imaginação para identificar ou pelo menos esboçar o estatuto a ser construído pelos educadores para o uso didático desses equipamentos. Se na parte administrativa os computadores estão auxiliando o controle da vida escolar, no plano didático, a discussão está apenas começando. Nosso interesse é compreender as possíveis alterações na parte mais específica do estudo da Matemática e também na prática docente, sobretudo, nas estratégias de organização da prática e na formulação de técnicas compatíveis com a potencialidade do recurso utilizado. Para abordar esse tema, descrevemos, nos próximos parágrafos, um exemplo relativo ao estudo da geometria.

Um dos aspectos associados ao uso dos computadores no ensino da matemática e capaz de provocar uma reflexão quanto às possíveis alterações na condução da prática, em termos dos objetos ostensivos utilizados, diz respeito à diversificação dos recursos visuais de comunicação. A princípio, essa ampliação envolve todas as disciplinas, mas podemos indagar a respeito das possíveis diferenças no caso do ensino da Matemática. Em uma pesquisa recente analisamos o caso de livros didáticos que mostram uma expansão do uso de recursos visuais de comunicação por meio de desenhos, fotos coloridas, perspectivas e esquemas gráficos, entre outros, associados ao estudo dos sólidos geométricos. Trata-se de dispositivos usados para ampliar o componente visual da tarefa a ser realizada pelo aluno e pelo professor.

Se por um lado esse aspecto envolve outras disciplinas, por outro, tais recursos redimensionam variáveis próprias do estudo da geometria, tal como a inserção de recursos diferenciados para representar um sólido geométrico por meio de uma figura plana. Mais especificamente, o uso das cores para incrementar as técnicas do desenho em perspectiva, pela qual fica ressaltada a terceira dimensão do conceito representado. Dessa maneira, essa diversificação de recursos visuais não é apenas a inovação de mais um dispositivo, como se fosse algo sem maiores novidades. Pelo contrário, se o uso desse recurso não altera a dimensão não-ostensiva do saber envolvido, provoca alterações potenciais nas técnicas e nos instrumentos de estudo.

Destacar a terceira dimensão de um sólido geométrico através de uma perspectiva é uma técnica fundamental para ampliar os tipos de tarefas estudadas no contexto escolar. Mas, com a incorporação do uso das tecnologias digitais, essa técnica está sendo ampliada por outras mais inovadoras, por exemplo, utilizando diferentes tonalidades ou reflexos para ressaltar a terceira dimensão do objeto. Há um suporte tecnológico diferenciado dos anteriores para diversificar a linguagem utilizada no estudo escolar. Esses aspectos mostram uma convergência na caracterização dos livros didáticos atuais, mas, por outro lado, revelam também uma possível tendência de padronização dos recursos sugeridos. Entretanto, no plano da formação docente, somos levados a refletir sobre os aspectos positivos dessa tendência, mas também pelos seus possíveis limites, no sentido de não pretender nenhuma padronização imperativa das práticas. Por certo, essa questão motiva-nos a estruturar novos objetos de pesquisa para melhor compreender o atual processo de textualização do saber escolar e das práticas docentes.

4. Relação entre Matemática e Didática

A abordagem antropológica defende o princípio da articulação integrada entre as organizações matemáticas e didáticas. Cada praxeologia é formada por tarefas, técnicas, tecnologias e teorias e cada um desses elementos tem, ao mesmo tempo, natureza matemática e didática. O conhecimento matemático resulta da atividade de estudo e o objeto da didática é esse processo de estudo. A elaboração do conhecimento depende do envolvimento das pessoas e das instituições em um efetivo processo de estudo. Assim, o ensino é concebido como um recurso para o estudo e a aprendizagem uma conseqüência das ações vivenciadas pelo estudante. A noção de praxeologia, proposta por Chevallard (1998) sintetiza esses dois aspectos integrados da atividade matemática. Portanto, ao estudar as práticas docentes, somos levados pensar em uma outra maneira de conceber as relações entre os conteúdos matemáticos e as disciplinas pedagógicas.

Como não existe uma separação absoluta entre os aspectos didáticos e matemáticos, não faz sentido conceber as disciplinas específicas de forma isolada dos aspectos didáticos, da mesma maneira como também não faz sentido idealizar as disciplinas pedagógicas desprovidas de vínculos com as raízes epistemológicas da matemática. Esse é um ponto nevrálgico de grande parte das atuais práticas de formação que insistem na vertente da separação, ao invés de lançar articulações em busca da expansão do significado.

Nesse sentido, a superação do modelo tradicional de formação, no qual os aspectos didáticos são, quase sempre, tratados de maneira separada dos aspectos matemáticos, passa pelo viés da prática reflexiva no sentido amplo do termo, isto é, incluindo aí as práticas dos formadores de professores. A realização dessa prática é possível a partir do estudo integrado dos diferentes fundamentos da atividade matemática: epistemológicos, antropológicos, didáticos, históricos, entre outros, além da própria dimensão científica.

D’Amore (2004), seguindo a vertente antropológica, destaca a necessidade de ampliar a reflexão em torno da formação de professores, quanto à valorização dos fundamentos da matemática. De modo geral, esse tipo de conhecimento não é estudado na formação inicial, talvez, com exceção da história da matemática, muitas vezes, estudada somente de forma centralizada em torno do território conceitual. Em suma, a especificidade do trabalho docente relativo ao saber matemático, ainda não é suficientemente analisada do ponto de vista de seus fundamentos. Além de expandir a compreensão do saber matemático na direção conceitual, o estudo das bases epistemológicas proporciona uma linha de reflexão, resgatando a localização da atividade matemática no quadro das institucionais que deram origem do conhecimento.
5. Aspectos Praxeológicos da Prática Docente
As pesquisas realizadas no contexto do Programa Epistemológico, desenvolvido a partir dos trabalhos de Guy Brousseau, iniciados na década de 1970, têm destacado a importância de se valorizar uma dimensão fundamental da prática docente que é a natureza da atividade matemática. Assim, se objetivo de uma pesquisa é desvelar um fenômeno didático relacionado ao estudo da matemática, a partir de uma teoria vinculada ao Programa Epistemológico, a consciência do pesquisador deve estar voltada para os elementos da atividade matemática, sem esquecer o peso considerável da especificidade resultante das instituições envolvidas.

Para aplicar esse postulado é preciso indagar a propósito da maneira como a atividade matemática é normalmente desenvolvida no contexto institucional no qual a prática está inserida, procurando identificar os aspectos mais valorizados, o grau de refino da dimensão teórica, o tratamento dado ao processo de argumentação e assim por diante. Em uma instituição especializada na preparação dos alunos fazer o vestibular de uma concorrida Escola de Engenharia, o peso atribuído aos conteúdos matemáticos e a própria natureza dos problemas estudados são diferenciados. O tipo de prova adotado no vestibular dessa instituição funciona como fonte de influência na definição das práticas docentes. Entre todos os tipos de tarefas existentes no universo mais amplo do saber matemático, em função das referências institucionais, são escolhidos alguns que passam a ser mais valorizados no contexto das praxeologias adotadas. Essas escolhas acontecem também em relação às técnicas, às tecnologias e às teorias associadas. Dessa maneira, em vista da realidade institucional, as práticas docentes são concebidas e implementadas em sintonia com esse quadro praxeológico no qual o professor está inserido. Esse vínculo entre os componentes da praxeologia matemática e a prática docente aparece também em outras noções mais amplas da abordagem antropológica como é o caso do gênero de tarefa que aparece na concepção do currículo em espiral, quando um mesmo tipo de problema volta a ser estudado, nos anos subseqüentes, com maior grau de abrangência. Por isso, a realização de uma prática reflexiva requer uma percepção dessa expansão crescente das tarefas.

6. Matematização do Estudo

A partir de uma análise epistemológica e didática do saber matemático, sem perder de vista as referências antropológicas do saber, o professor pode minimizar os efeitos não desejáveis da matematização do estudo, conforme observa Chevallard (1998). Para realizar uma prática reflexiva crítica é preciso identificar um problema persistente na vertente clássica que é identificação metodológica entre a maneira de organizar o texto matemático e conduzir as estratégias de estudo. Em um estudo recente, destacamos que entre os autores do início do século XX, interessados pela questão metodológica da matemática estava Júlio Rey Pastor (1888 – 1962) que na sua obra Metodologia de la Matemática, publicada em 1926, chama a atenção para o que teria sido o principal equívoco da vertente tradicional: confundir as estratégias de ensino com as condições exigidas na sistematização final do texto matemático.

Existe neste ponto uma verdadeira nebulosa epistemológica, uma nuvem na qual se perdem as estratégias tradicionais e os resultados dessa identificação são desastrosos. Mais especificamente, trata-se de adotar o método lógico-dedutivo, tal como é valorizado na sistematização do saber. A degeneração dessa vertente recai no formalismo, quando a sistematização é considerada como o objetivo mais importante do ensino. Considerando a abordagem antropológica, incluímos entre os elementos da matematização do estudo essa identificação entre a forma de redigir o texto matemático e as estratégias de condução do ensino.
 
7. Níveis do Saber Matemático

Para mostrar as relações existentes entre uma tarefa pontual da matemática e as práticas sociais, Chevallard (1998) destaca oito níveis de determinação do saber: social, escolar, pedagógico, disciplinar, domínio, setor, tema e assunto. Cada um desses níveis esboça um espaço da atuação docente e a partir do nível disciplinar a especificidade começa a ser mais destacada. A matemática das séries iniciais, por exemplo, é constituída pelos domínios: geométrico, aritmético, medidas, tratamento da informação. Cada um desses domínios é dividido em setores, os quais são compostos por temas e finalmente cada tema é formado por assuntos. A análise das relações decorrentes desses níveis fornece uma estratégia de refletir sobre a prática porque permite uma ampliação crescente da abrangência do saber matemático cuja fonte primária são as atividades sociais.

A pontualidade de um tipo de questão vai sendo transformada, envolvendo os níveis superiores, mais amplos do saber matemático. Entretanto, de modo geral, o nível disciplinar tende a ficar restrito ao espaço escolar, em vista de uma cultura produzida no território da instituição. Esse talvez seja um ponto de proximidade e também de fronteira entre a visão antropológica e a noção cultural escolar, na linha proposta por Chervel (1990). Um dos conceitos proposto por esse autor é a noção de vulgata, sintetizando o que existe de comum, em um dado momento, em torno das práticas usuais de uma disciplina, sendo formada por conteúdos, objetivos, métodos e problemas típicos que predominam como os elementos condutores da prática docente.

Uma parte significativa da vulgata aparece transcrita nos livros didáticos, fazendo com que, em dado momento, essas publicações possam apresentar muita semelhança entre si, mesmo existindo diferentes linhas de abordagem didática. Entendemos que há uma proximidade entre o viés proposto por Chevallard (1991), ao descrever a idéia de textualização do saber a ser ensinado e a valorização cultural dos livros didáticos como expressão publicada da vulgata.

A escolha de conteúdos, métodos e recursos resultam das fontes de influência que atuam na composição da transposição didática. Tais elementos encontram-se registrados em relatórios, teses, artigos, softwares, parâmetros, programas, em diferentes tipos de exame e em outras fontes, entre as quais os livros didáticos. São registros publicados para defender a validade do saber a ser ensinado e também delinear a forma como eles devem ser conduzidos. Entre os registros textuais do saber escolar, temos escolhido o livro didático para servir como fonte de dados de pesquisa. Um dos argumentos para justificar essa escolha decorre da influência que esse dispositivo normalmente exerce na condução da prática, como fonte de referência e de validação do saber a ser ensinado.

Todo momento de estudo caracteriza-se por uma tarefa a ser realizada pelo aluno e pelo professor, até mesmo quando se trata de apresentar um novo tipo de problema por meio de uma exposição oral. Nesse sentido, na análise da prática docente através da abordagem antropológica, o pesquisador deve estar atento aos níveis de argumentação decorrentes da posição de cada um desses dois atores do processo de estudo. Quando pensamos em uma organização matemática pontual, essas duas posições não devem ser confundidas porque isso reduziria a dimensão profissional do trabalho docente. São tarefas interligadas que conjuntamente definem uma maneira de organizar o estudo.

Desse modo, um desafio é buscar uma visão integradora entre os níveis de atividade matemática escolar, onde nem sempre a matemática social é reconhecida como ponto de partida para a elaboração do saber. Se existe uma cultura escolar instituída, defendendo a vulgata de um dado momento, nem sempre essa produção interna da escola está aberta para incorporar as produções pertencentes aos níveis sociais mais amplos. A ruptura com as práticas usuais de um determinado nível pode ter repercussões nos outros níveis. Os níveis de intervenção direta do professor são, inicialmente, aqueles do tema ou de um assunto, entretanto, esses níveis mais pontuais estão inseridos em um encadeamento mais amplo de saberes e práticas.

Na totalidade dos estudos previstos em uma faixa específica da escolaridade, o professor deve estar atento às articulações possíveis entre esses níveis mais pontuais e as referências antropológicas mais amplas. Muitas vezes, na vertente da formação tradicional, predomina dois enfoques extremos. No quadro das disciplinas específicas, predomina o estudo de questões circunscritas ao nível disciplinar, sem mencionar a dimensão didática na qual o professor irá efetivamente atuar. Do outro lado, por ocasião do estudo da disciplina de didática, quase sempre, predominam questões pedagógicas, sem considerar a dimensão conceitual do saber matemático. A síntese a ser feita entre os aspectos didáticos e matemáticos é deixada por conta do futuro professor.

A possibilidade de ampliar as condições de diálogo entre a prática e a pesquisa passa também pela superação dessas duas posições radicais. Certamente, não há solução mágica para fazer avançar esse problema, mas uma das linhas de atuação, é a construção de linhas de articulação entre as organizações didáticas e matemáticas, considerando os vínculos com as atividades humanas e sociais. Consiste em levar os professores a intervirem, com mais intensidade, nas questões pedagógicas, para modificar as condições de profissionalização da carreira docente. Mas, há uma dupla dificuldade a ser vencida que é a superação da crença de que a intervenção isolada ao nível do pedagógico possa determinar a parte essencial da prática docente, bem como a idéia igualmente redutora de que somente as referências oriundas do saber acadêmico possam determinar a natureza do trabalho do professor.

8. Rumo a uma convergência

O nível de determinação do saber pedagógico, em vista de sua generalidade, nem sempre contribui para ampliar, de modo significativo, as condições da prática de ensino da matemática porque não atinge a especificidade das questões didáticas, no sentido atribuído pelo programa epistemológico. Isso não quer dizer que haja uma enorme distância entre as questões pedagógicas e didáticas, mas a confusão instituída entre esses dois níveis, por certo, foi responsável por uma parte dos prejuízos acumulados na vertente clássica da formação. Por esse motivo, entre as competências docentes está a necessária disponibilidade para compreender, de maneira articulada, as características comuns a todas as disciplinas e o que pertence ao território da área específica. Essa ligação entre a dimensão pedagógica e didática pode ser interpretada, segundo nosso entendimento, a partir da observação feita por Shulman (1992) quando destaca a noção de compreensão do saber como uma condição essencial para o exercício da docência.

Ao destacar as idéias de Shulman (1986), Ponte (1999) relembra que uma das condições da atividade docente é a necessidade de se ter um profundo domínio conceitual na área de atuação. Porém, não se trata de confundir esse tipo de domínio com aquele que caracteriza o trabalho matemático. Talvez esse tenha sido um dos equívocos da vertente tradicional da formação, ao priorizar praxeologias nem sempre suficientes para o exercício da docência.

A partir dessa interpretação, a atividade docente realiza-se por um viés específico que não pode ser confundido com a natureza própria do saber acadêmico, no sentido de evitar que os conteúdos possam ficar circunscritos a um território fechado em si mesmo e distante dos desafios próprios da educação escolar. Pelo contrário, a compreensão dos conteúdos pelo docente envolve, além do plano conceitual específico, diversos fundamentos pelos quais a proposta educativa pode ser realizada, envolvendo, entre outros, aspectos epistemológicos, históricos, psicológicos e antropológicos. Uma tarefa docente consiste em compreender diferentes estratégias pelas quais o conhecimento pode ser elaborado e não reduzir, no plano escolar, a atividade matemática aos trâmites burocráticos de uma formalização textual do saber. O saber docente inclui uma dimensão específica caracterizada por diferentes tipos de tarefas e estratégias pelas quais o aluno pode vivenciar um contato direto com as obras matemáticas.
 
9. Referências Bibliográficas

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