Configurações Geométricas
Luiz Carlos Pais
 
Este artigo descreve os resultados de uma pesquisa cujo objetivo é analisar a noção didática de configuração geométrica, desenvolvida a partir de representações obtidas de livros didáticos e também de desenhos feitos por alunos do ensino fundamental. Trata-se do estudo de certas figuras particulares que têm um estatuto diferenciado em relação a outros desenhos de importância secundária e que por este motivo devem ser consideradas na aprendizagem da geometria. O interesse maior deste estudo é caracterizar as configurações geométricas como uma noção de natureza pedagógica, destacando tanto os seus aspectos positivos para o processo cognitivo, como a possibilidade de funcionarem também como um obstáculo epistemológico. Optamos por uma abordagem fenomenológica, priorizando aspectos de natureza educacional da noção. As conclusões evidenciam duas concepções igualmente redutoras para o ensino da geometria: uma consiste em conceber os conceitos como entidades abstratas puramente racionais, acessíveis somente através do método axiomático; a outra se expressa pela visão de que a aprendizagem pode ser resumida às atividades experimentais através da simples contemplação das representações planas. Finalizamos este estudo propondo uma interpretação dialetizada entre essas duas posições extremas.

Introdução

A origem desse estudo está associada à descrição dos resultados de uma pesquisa cujo objetivo é dar continuidade à análise da noção de configuração geométrica, desenvolvida originalmente em pesquisas realizadas junto ao Grupo de Geometria do IREM de Montpellier, França. Trata-se do estudo de certas figuras geométricas particulares que têm um estatuto diferenciado em relação a outros desenhos de importância secundária e que por este motivo devem ser melhor consideradas no processo de ensino e de aprendizagem da geometria. O interesse maior deste estudo é caracterizar essas configurações geométricas como uma noção didática específica da área de Educação Matemática e mais particularmente ao ensino da geometria euclidiana elementar.
Partimos da constatação que essa utilização pode, por vezes, restringir-se a uma atividade com tendências empíricas negando os valores formativos da geometria. Optamos por uma abordagem fenomenológica, priorizando uma análise de natureza epistemológica. As conclusões evidenciam duas posturas redutoras no ensino da geometria: uma consiste em conceber os conceitos como entidades abstratas puramente racionais, acessíveis somente através do método axiomático; a outra expressa-se pela visão de que este ensino resume-se às atividades experimentais através da simples manipulação de objetos materiais e de desenhos. Finalizamos propondo uma interpretação dialetizada dessas posições extremas. Trata-se do estudo de certas figuras geométricas particulares que têm um status diferenciado em relação a outros desenhos de importância secundária e que por este motivo devem ser melhor consideradas no processo de ensino e de aprendizagem da geometria. O interesse maior deste estudo é caracterizar essas configurações gométricas como uma noção didática específica da área de Educação Matemática e mais particularmente ao ensino da geometria euclidiana elementar.

Uma primeira definição

Uma configuração geométrica ou figura fundamental é um desenho que apresenta as seguintes características: ilustra um conceito ou uma propriedade importante; possui fortes condicionantes de equilíbrio e trata-se de um desenho que aparece frequentemente num certo contexto científico. No sentido desta definição uma configuração geométrica é, portanto, uma noção bem ampla abrangendo inclusive outros domínios científicos além das fronteiras da Matemática. Para os objetivos deste trabalho delimitou-se o estudo desta noção aos conceitos e proposições da geometria euclidiana elementar, pois, tudo leva a crer que exista um certo número de configurações básicas relativas a este nível de escolaridade. O conhecimento didático destas figuras significa uma contribuição importante ao ensino desta geometria. Neste contexto se faz necessário melhor precisar o significado das condicionantes do equilíbrio e dos critérios que podem definir a frequência de utilização destas figuras.

Em primeiro lugar é necessário destacar que não se trata de estudar os aspectos geométricos da representação plana. Uma configuração geométrica não é um conceito geométrico, é, antes de tudo, um conceito didático. Isto significa que o interesse de sua análise não é pertinente à própria geometria e sim a um corpo de conhecimento didático, visando melhor compreender sua aprendizagem e o seu ensino. Cada conceito geométrico pode ser representado, quase sempre, por uma diversidade de desenhos. Mas na realidade, quando se considera um conceito específico, existem alguns desenhos que são encontrados com uma freqüência bem maior do que outros. Entre esses desenhos podem-se identificar certas características que lhes são comuns e que por esta razão é possível diferenciá-los de outros que não são considerados configurações.

A configuração associada a um conceito geométrico pode não ser apenas uma única figura. Na realidade é possível, na maioria das vezes, identificar uma variedade de figuras que respondem aos critérios de equilíbrio e frequência. Todas elas podendo ser consideradas como configurações ilustrativas de um determinado conceito. Ao se trabalhar com este determinado conceito o que se faz é escolher um representante desta classe de desenhos que traz em si todas as propriedades características da configuração. Esta variedade de desenhos, possuindo características comuns, apesar de apresentarem pequenas diferenças a nível do grafismo utilizado na representação, foi considerada como configuração associada ao conceito ilustrado.

Conceitos geométricos

Além das configurações associadas aos conceitos da geometria elementar pode-se ainda destacar aquelas que ilustram as proposições e teoremas mais usuais. Um exemplo neste sentido seria o caso teorema de Tales que aparece frequentemente ilustrado pelo desenho reproduzido pela figura 1 (configuração clássica do teorema de Tales). Neste caso as condicionantes de equilíbrio são os traços paralelos que sempre aparecem na posição horizontal. Pode-se, desta forma, falar da configuração geométrica associada ao teorema de Tales. Mesmo no caso das noções fundamentais da geometria tais como o ponto, a reta e o plano suas representações gráficas se apresentam numa forma quase invariável. A reta, na grande maioria dos casos, aparece ilustrada por um traço na posição horizontal e a configuração associada ao plano por um paralelogramo não retangular com seus lados maiores na posição horizontal, conforme figura 2. (pano em perspectiva)

Equilíbrio da figura

O equilíbrio envolvido na noção de configuração deve ser entendido no sentido físico do termo e sobretudo associado à posição de estabilidade da grande maioria dos objetos encontrados no quotidiano. Assim, uma figura geométrica estará equilibrada quando for possível identificar um certo número de elementos gráficos que contribuem com a leitura desta estabilidade, tais como: eixos de simetria principalmente nas posições horizontal e vertical; ângulo reto, ponto médio, a base da figura na posição horizontal, segmentos paralelos, segmentos perpendiculares ou ainda outros elementos correlacionados ao mundo material que possam dar à representação uma maior estabilidade física.

Para ilustrar o equilíbrio encontrado na configuração do cilindro constatou-se que, quase sempre, é possível identificar, em sua representação, a existência de dois segmentos paralelos e de mesma medida colocados na posição vertical e pelo menos uma elipse com seus eixos perpendiculares entre si. Este desenho representa um cilindro apoiado sobre um círculo de base na posição horizontal. Ora, a maioria dos objetos de forma cilíndrica está colocada numa posição repousando sobre uma de suas bases circulares, que é uma posição bem mais equilibrada do que a outra na qual o cilindro repousa sobre uma de suas geratrizes. Neste caso, a posição do cilindro repousando sobre um círculo de base é uma das condicionantes do equilíbrio da figura.
Na análise das configurações geométricas um fato que merece destaque relevante é a constatação forte influência das posições horizontais e verticais tanto nos objetos do mundo físico como nos desenhos geométricos. Este é um dos elementos de equilíbrio mais freqüentes na grande maioria das configurações analisadas.

Freqüência de utilização e variedade gráfica.

Para que um desenho possa ser considerado uma configuração geométrica é necessário que ele seja freqüentemente utilizado no ensino e na aprendizagem da geometria quer seja por professores, autores de livros ou por alunos. Na análise de livros didáticos, verificando a existência destas configurações pode-se observar que, normalmente, em torno de três quartos dos desenhos ilustrando determinado conceito obedecem certas características de equilíbrio.

Há configurações geométricas que aparecem nos livros didáticos com uma frequência bem superior. Este é o caso do triângulo isósceles em que cerca de 95% dos desenhos aparecem com sua base na posição horizontal e com o vértice oposto a esta base para cima e ainda com uma altura um pouco maior do que a base. Ao considerar um certo conjunto de desenhos ilustrativos de um conceito geométrico pode ocorrer uma certa variedade gráfica que consiste em pequenas diferenças apresentadas por cada um desses desenhos. Apesar dessas diferenças, o conjunto como um todo, apresenta certas características invariantes que são essencialmente os elementos de equilíbrio da configuração geométrica. Observa-se, a título de exemplo, na figura 3, cinco desenhos representando o conceito de triângulo isósceles.

Em resumo, as configurações geométricas são desenhos que têm um status diferenciado no ensino e na aprendizagem da geometria. Este tipo particular de desenho contribui para formação de boas imagens mentais e assim possibilita um conhecimento muito mais operacional, seja na formação de conceitos ou na resolução de problemas. As configurações permitem uma manipulação de informações geométricas de uma forma muito mais rápida e eficiente. Através da resolução de problemas o aluno pode desenvolver suas próprias configurações para que estas sirvam como um recurso experimental à construção dos conceitos. Por outro lado, professores e autores de livros didáticos devem valorizar o processo de representação plana dos conceitos geométricos com tais figuras.

Movimento da representação de conceitos

O uso de uma linguagem dotada de movimentação, através dos novos recursos tecnológicos da informática, é um recurso completamente inovador e provocante para a dinamização do ensino da geometria. Se por uma lado, a geometria euclidiana não é dotada de movimento, uma vez que as suas figuras são estáticas no plano ou no espaço, por outro, através do uso de software especializados torna-se possível implementar uma animação das representações em si, tornando possível evidenciar determinados aspectos de natureza conceitual. Esta possibilidade abre espaço para inúmeros objetos de pesquisa voltados para uma interpretação mais científica da aprendizagem da geometria.
Para tratar dessa dimensão é necessário avançar na direção das múltiplas relações existentes entre a aprendizagem e as novas linguagens. É preciso falar da ideografia dinâmica como uma das alternativas decorrentes das novas tecnologias. A ideografia dinâmica envolve uma idéia audaciosa de se esforçar no sentido de servir como um modelo comparativo ao próprio sistema mental de seus usuários. Está implícito a concepção de que é possível aproximar-se do universo das imagens mentais, representativas dos mais diversos conceitos e conhecimentos. Seria uma linguagem cuja finalidade é também tentar aproximar o quanto fosse possível da estrutura mental do ser humano. Além de persistir nessa meta de aproximar-se de uma linguagem-cerebral a ideografia dinâmica também poderá servir como um instrumento de aprendizagem, muito mais próximo da forma natural do pensamento humano. Esta concepção de linguagem envolve a "tese da não separação entre os processos de produção e interpretação lingüísticas e os outros processos cognitivos" (PL 98, 50). Assim, essa linguagem pretende servir como recurso que trate de maneira indissociável a elaboração conceitual e a questão lingüística. Um dos principais aspectos dessa nova forma de expressão lingüistica, através dos modernos recursos digitais, é o fato de aprimorar a dialética entre a elaboração de conceitos e a linguagem.
A fronteira entre a linguagem e o pensamento é um tema debatido com freqüência pelas disciplinas voltadas para a compreensão do processo cognitivo. Perceber as complexas relações existentes entre palavras e idéias, signos e conceitos é abrir caminhos para a elaboração do conhecimento. O desafio nessa tarefa pedagógica, sobretudo em nível da educação básica, inclui a vigilância permanente para que os termos não percam o significado, principalmente para os que ensaiam dar os primeiros passos. Quando as palavras perdem sua vitalidade, quando nada mais representam para o aluno, fica difícil falar na construção de conceitos. Não há possibilidade de estabelecer nenhum tipo de correspondência biunívoca entre as idéias e os termos, sempre estará em pauta a questão da interpretação dos seus significados. Duas posições extremas podem ser aí identificadas: o uso fluído de expressões tal qual exige a criatividade poética, mas que não corresponde à construção do conhecimento científico; do outro, a crença ilusória de que as palavras em si mesmo resume a totalidade do significado das idéias, como uma pura expressão do pensamento positivo. Por certo, a alternativa adequada está no meio termo. A estratégia pedagógica é reinventar a cada dia essa constante volta em busca da elaboração do significado em estado de devir. A idéia nunca é data em sua totalidade, é fragmentária em sua essência. Por isso mesmo nos leva a retificações constantes, movimento, vetores.

Elementos de Síntese

Na análise epistemológica da geometria espacial é possível destacar três aspectos fundamentais do conhecimento geométrico: o intuitivo, o experimental e o teórico. A intuição é uma forma de conhecimento subjetivo, sempre disponível no espírito das pessoas, cuja explicitação não exige uma dedução racional. Um conhecimento baseado na intuição caracteriza-se por uma funcionalidade imediata quando comparada com o raciocínio lógico. A veracidade dos axiomas da geometria, que são proposições primitivas evidentes por si mesmo, pode ser aceita com base nesta forma de conhecimento. O aspecto experimental da geometria refere-se à manipulação de objetos materiais e de desenhos associados aos conceitos previstos da educação escolar. O aspecto teórico é constituído pelos próprios conceitos, noções, proposições e pela lógica axiomática com a qual os teoremas são demonstrados. A rigor, do ponto de vista educacional, não se deve conceber um desses aspectos isolado dos outros. É possível estabelecer uma correlação do aspecto experimental com as representações, que juntamente com os objetos materiais, funcionam como suportes à aprendizagem. A linguagem, o desenho, a imagem mental e os objetos são formas distintas de representação dos conceitos.
Em síntese, a representação plana é um fenômeno amplo concernente à elaboração do conhecimento geométrico e funciona como um importante suporte ao desenvolvimento do raciocínio lógico e dedutivo. Sua natureza experimental, juntamente com a intuição, contribuem na elaboração do aspecto teórico. As atividades de natureza experimental, usando representações ou objetos, requerem uma atenção especial do professor, pois, em determinados casos tais elementos podem tornar-se em obstáculos epistemológicos. Finalmente, na dimensão da prática pedagógica deve ser atribuído uma atenção especial ao uso correto das representações, priorizando as configurações geométricas, as quais desempenham um papel fundamental no ensino e na aprendizagem da geometria em nível da escola fundamental. O contrato didático, subjacente a essa prática, deve ser reavaliado no sentido de explicitar regras de desenhos compreensíveis em nível da escolaridade considerada. Finalmente, é necessário trabalhar com as regras básicas da representação do espaço pela perspectiva cavaleira, a qual é preferida pelos alunos.

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