A alfabetização como paradigma.

Abenon Menegassi

Desde que T. S. Kuhn trouxe à luz a obra A Revolução das estruturas cientificas tornou-se possível constatar que o que a maioria das atuais vertentes do conhecimento sobre alfabetização e letramento revela no interior de seus campos teóricos em suas fases como ciência normal (Paradigma), nada mais é que a descomunal capacidade de constituir-se enquanto processo de ultrassaturação de si.

Tal conceito revela-se como processo em que se dá a capacidade de aglutinação de repertórios teóricos que, uma vez compondo a nova ciência, seriam eficientes na promessa de resolução de certos problemas por ela identificados. A consequência direta que esta ciência normal busca com esta ultrassaturação é o alcance da capacidade máxima do paradigma em manter-se aparentemente válido por longos períodos no interior do campo científico.

Identifica-se este movimento por sua efetiva cristalização de conceitos que demonstram, num primeiro plano, estar satisfeitos com os resultados alcançados pelo paradigma cientifico a que pertencem. Resultados estes entendidos como capacidade de manterem-se coesos teoricamente em seu interior, ao mesmo tempo em que deixam para o segundo plano o questionamento acerca dos resultados externos que efetivam, de fato, em sua aplicabilidade prática quando executados no seio do mundo vivido.

Esta distinção entre satisfação enquanto corpus científico e satisfação enquanto ação prática é possível de ser realizada e, com ela, o questionamento sobre porque haveria um fosso entre uma e outra. Na contiguidade, caberia também a pergunta sobre o que suturaria este fosso uma vez que à primeira vista a testagem no mundo vivido e uma consequente anomalia com sua respectiva crise deveriam bastar para derrubar todo o corpo teórico e, com ele, o paradigma, efeito que não acontece em todos os casos.

Deve haver, portanto, algum modo de manter o paradigma vivo, imune aos ataques legítimos das crises, protegido por estratégias de defesa e contra ataque capazes de neutralizar as ações letais dessas crises.

Tal afirmação e questionamento é viável dado que o que se observa é que o que esses modelos teóricos realizam em sua fase tardia, fase em que os pilares do sistema passam a ser fortemente ameaçados pelas anomalias e suas respectivas crises, é produção de simulacros, abrigos em que se encastelam com o único propósito de veicular seus discursos a partir da coagulação de referenciais científicos que se auto canonizam.

Neste aspecto, Thomas Kuhn é preciso. O que caracteriza um paradigma é a sua permeabilidade para receber influências de aspectos históricos e sociológicos em seu interior mesmo enquanto ciência. Dessa forma, estes simulacros são erguidos a partir de interesses defendidos pela comunidade cientifica que envolve este ou aquele paradigma.

A que visam tais simulacros dos modelos teóricos em suas infinitas rotações de regulagem, alimentado pela fonte inesgotável da ideologia, é a eternização do prestígio que os paradigmas e seus defensores usufruem através da implantação de seus mecanismos de produção/reprodução da hegemonia sobre os territórios colonizados.

Desse modo, no interior desses microuniversos (micro discursos) fechados e autossuficientes, parece não caber qualquer disponibilidade de abertura com vistas à viabilização de reflexões que se proponham à permeabilidade a novos paradigmas teóricos que possam vir a contribuir tanto para a recolocação dos problemas existentes quanto para a construção de soluções conjuntas e adequadas para os mesmos. É o próprio Kuhn quem afirma não haver progresso científico, entendido este como avanço em continuidade histórica de um campo cientifico.

Como paradigmas científicos, na fase imperialista que são, abdicam de um enfrentamento positivo das crises para encerram-se em seus próprios horizontes negando, assim, qualquer via que leve a um contrapelo entendido aqui como ir de encontro às ciências vizinhas, comensuráveis aos pressupostos teóricos que sustentam enquanto paradigmas científicos.

No interior da educação como um todo e particularmente no que se refere formação de professores, práticas e reflexões, isso também acontece.

Nesta linha, fenômenos presentes, inclusive nos processos de alfabetização e letramento, como hiperatividade, indisciplina, déficit de atenção e outros, quando tomados como crises, como propõe Khun, crises que promovem alguma ameaça ao equilíbrio do sistema no qual emergem, ao invés de serem direcionados como críticas a serviço de testagem e ajustamento no interior do próprio paradigma são corretivamente, no mau sentido, ejetados para uma faixa periférica do sistema.

Isso se deve, sobretudo, ao fato de que estes fenômenos vêm a sucumbir enquanto crises às pressões estrategicamente elaboradas pelos discursos criados pelos modelos teóricos que compõem o paradigma.

É que na impossibilidade de responderem positivamente às exigências de soluções de quebra-cabeças impostas (pelas crises), impossibilidades decorrentes de sua própria insuficiência teórica original, esses modelos teóricos (no interior dos paradigmas) são obrigados a desistir de empreender semelhante tarefa e, consequentemente, são obrigados a ter que relegar aqueles fenômenos ao plano dos quadros morais (crenças, religiões, valores, etç), hipocognitivos (rebaixamentos), neuro, fisio, sócio e psicopatológicos (psicológicos psicoterapêuticos, psicodiagnósticos e psiquiátricos CID e medicação), que orbitam o sistema e desde os quais importam, num primeiro momento, seus saberes para uso próprio menor, mas, crucial no que se refere à necessidade de ter que estipular crenças, regras, savoir-faire`s a serviço de blindagem do sistema científico em questão.

De fato, o mecanismo funciona de maneira a não só importar dos campos das ciências compatíveis (consistentes) e comensuráveis esses saberes quando necessários e a serviço de formulação de crenças (defensivas e de ataque) como, quando necessário também, remeter as crises para os seus campos científicos específicos para que eles resolvam os problemas apresentados contribuindo, assim, para manter intactos e coesos os pressupostos internos do organismo.

Como disse, faz parte deste mecanismo, sobretudo, o parasitismo de gramáticas ideológicas que circulam em via de mão dupla já que podem transitar livremente pelos discursos que compõem o saber do sistema. Desse modo, essas gramáticas instalam-se no interior deste sistema através de discursos ideologizantes que oportunisticamente buscam sua adesão ao campo da educação.

Na mesma via, o que ocorre de fato é que o plano ou faixa de exclusão, para o qual as crises são ejetadas, é ocupado por essas crises que, agora absorvidas e neutralizadas por algum tempo, não podem mais, por enquanto, abalar suficientemente a estrutura do paradigma científico. Nesta faixa periférica em que vão sedimentar-se, tais crises, agora enfraquecidas, orbitam o sistema apoiadas em crenças constituídas exclusivamente para cumprirem a função de regular de forma conservadora a ação virulenta inicial dessas crises mantendo-as agora fora do alcance do núcleo duro do paradigma.

No fundo, o que este esforço imperialista de resistência procura a todo custo evitar é a possibilidade do paradigma vir a ser subsumido por outras disciplinas do conhecimento e, assim, tornar-se ele mesmo uma disciplina auxiliar secundária no interior da nova disciplina que a envolveu e subsumiu tal como procedeu com aquelas às quais mantém como subserviente.

Haveria, portanto, um quiasma gerado pela incompatibilidade (inconsistência lógica na verdade), entre a maneira como esses paradigmas se situam no interior do campo científico e o papel a que se propõe cumprir no campo de saber a que pertencem (no nosso caso a da educação).

Neste caso, a inconsistência reside no fato de que se o campo pedagógico é, e deve ser, por excelência aquele em que se dá uma ampla margem de abertura para o constante advento do novo, já que estamos falando de homem e da necessária possibilidade de sua constante construção e reconstrução como parte de um projeto de emancipação humanitária (libertária), difícil resta sustentar modelos paradigmáticos que se propõe a tratar o fator humano como fechamento e totalidade. E isto, ao mesmo tempo em que, enquanto campo científico, tal paradigma fecha-se, ele próprio como modelo e método científico, às possibilidades de sua própria reconstrução e ajustamentos imprescindíveis em sua aplicabilidade à tarefa de renovadamente compreender o homem e acompanha-lo em sua jornada.

A meu ver, todo paradigma que a priori exigir de si uma estrutura cientifica que não se permite auto regulagens constantes (regulagens cientificas e não ideológicas como meio de sustentar o campo) em torno do exterior, ou seja, do objeto sempre a ser considerado como fonte de saber, no caso da educação o homem, está de antemão condenando-se ao envelhecimento uma vez que mais cedo ou mais tarde não poderá mais ler o fenômeno humano em sua especificidade sem correr o risco de por em perigo seu próprio edifício conceitual e teórico.

Se proceder desta forma, tal paradigma está fadado a definhar e morrer tal como uma estrela que se alimenta de outros mundos e de si mesma, mas que um dia, cessados os recursos externos e da autofagia, não terá mais o que comer e, por isso, deverá desaparecer. Em constante transformação, o homem não se deixa apanhar por teorias fixas, elas mesmas - por força de seu status científico e pela necessidade de ter que mantê-los -, cristalizadas e centradas em si mesmas.

De fato, existe apenas um campo ao qual tais paradigmas se submetem sem riscos, antes, com promoção: o campo das políticas de Estado. Nesta via, não deixa de ser curioso perceber como as políticas de Estado consomem tais paradigmas de alfabetização e letramento. Sob o viés de uma questionável comensurabilidade lógica, que estabelece a cooperação mútua no âmbito da dominação, estes paradigmas (de Estado e de alfabetização/letramento), estabelecem entre si um comensalismo ou protocooperação que não oferece risco mútuo de submissão de um campo ao outro, ao contrário, se retro validam ao mesmo tempo em que se oferecem e são consumidos e fortalecidos um pelo outro como mercadoria no comércio de saber.

E aqui se apresenta uma primeira visada crítica ao flanco exposto desses paradigmas: fechar-se a novas propostas libertárias para, em troca de reforço fácil ao sistema, inclusive à comunidade científica que deles se beneficiam, abrir-se à infestação daquelas ideologias (inclusive as de Estado: leis, resoluções, políticas pedagógicas etç) que se imiscuem para dentro desses sistemas com a intenção de indução de seus valores e objetivos.

A hipótese aqui é a de que existiria um déficit teórico sobre alfabetização e letramento, marcadamente no interior dos paradigmas chamados construtivistas, sejam os de Piaget, Vigotiski, Ferreiro/Teberoviski etç. Este déficit teórico residiria no coração do arcabouço conceitual inicial necessário à construção dos paradigmas mencionados sobre alfabetização e letramento. Sua origem, encontra-se no uso dos modelos epstemo/desenvolvimentista importados de campos teóricos auxiliares externos tais como psicologia, filosofia, medicina, psiquiatria, sociologia, antropologia etç., amalgamados no interior do paradigma como modelo teórica non plus ultra acerca do que seja a criança e a sua forma de educação.

Aqui também dá-se uma via de mão dupla. Nesta via, a crítica estende-se a toda e qualquer reflexão que se baseie em teorias epstemo/desenvolvimentistas do que seja a criança, a pedagogia e seus métodos de aprendizado.

No inicio, o objetivo dessas incursões em outros campos é o de permitir a importação de referenciais teóricos que irão apresentar concepções de homem, de mundo, de sociedade e de educação que farão parte essencial do núcleo duro do paradigma.

Ao mesmo tempo em que esses campos do conhecimento servirão como apoio para a construção do paradigma em seu início, eles serão também mais tarde a causa de rachaduras caso não promovam 100% de coesão das teorias aplicadas em seu interior em resolver quebra-cabeças. E serão por isso, em seguida, rebaixados à função de depositários dos problemas que as teorias basais do paradigma precisam ejetar por não os terem resolvido. Como depositários desses problemas terão que desenvolver um discurso de cunho cientifico que seja capaz de promover tanto a explicação dos fenômenos ocorridos quanto prescrever receitas para as sua soluções tirando do núcleo tanto a responsabilidade pela causa do problema quanto mantendo-o incólume às criticas que poderiam ser-lhe direcionadas.

Assim, face ao problema colocado desta maneira, o que se trata de defender aqui é a ideia de que o referencial teórico voltado para a educação deve ser aquele que se pauta, sobretudo, pela primazia do objeto na via oposta de paradigmas que colocam a primazia do corpo cientifico a ser preservada.

O erro inicial e fundamental de Piaget, por exemplo, foi o de estudar a criança como objeto de onde ele poderia retirar as categorias racionais/epistemológicas necessárias para a construção de seu paradigma como se essas categorias estivessem de fato na criança e determinassem a essência dessa criança. Seu erro foi não perceber que tais categorias racionais são apenas um extrato cognitivo do pensamento da criança não consistindo em hipótese alguma na sua totalidade ou essência fundamental. A consequência deste erro, uma vez importado para o interior dos paradigmas de educação, foi o de desavisadamente tornar-se parte de uma leitura necessária de criança para que, em seguida, este paradigma pudesse constituir a sua paidea.

Vem sendo amplamente discutido que o modelo epistemológico de infância não é suficiente para dar conta dos problemas da educação. Contribuições recentes como as da psicanálise tem evidenciado isto.

Como vimos essa incompatibilidade faz surgir crises que terão que ser rechaçadas, crises que o próprio paradigma produziu e que agora tem a necessidade vital de combater.

Sendo assim qualquer método que tenha a ambição de se tornar legitimamente cidadão do campo pedagógico deve admitir a priori que seu eixo cientifico (teorias) deve se constituir enquanto corpo cientifico capaz de constante permeabilidade às objeções e criticas vindas de fora, de dentro do próprio sistema em suas testagens, pois o de que se trata é que não se deve perder de vista que é a primazia do objeto que deve ser colocada em primeiro plano e não o contrário, quer dizer, a fixação do corpo teórico. Isso deve se dar porque é o objeto o verdadeiro doador de direções na construção científica e não a eternização rígida do paradigma. Apenas assim o paradigma metodológico em pedagogia poderia readaptar-se constantemente ás exigências exteriores. Adaptar-se de forma progressiva e não conservadora, o que o impediria de desaparecer.

As consequências benéficas dessa guinada na metodologia cientifica em educação seriam amplas e duradouras indo desde redução do surgimento de inconsistências em seu interior até o correto reconhecimento e parceria com as disciplinas auxiliares que se aproximam num nível de igualdade, passando pela reformulação na maneira de tratar os fracassos surgidos no âmbito escolar.

Abenon Menegassi
Enviado por Abenon Menegassi em 08/01/2015
Código do texto: T5095520
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