INCLUSÃO ESCOLAR – Ser ou não ser? Eis a questão...

Esta semana me questionaram o tema da inclusão. Perguntaram-me se eu acredito ou não na inclusão escolar. Antes de responder com um NÃO categórico, lembrei-me do meu último paciente encaminhado pela rede municipal de ensino de minha cidade.

A clínica fonoaudiológica na área pedagógica tem-me permitido contato frequente com crianças encaminhadas pela rede escolar pública, com queixa de dificuldades quanto à alfabetização. De fato, algumas crianças apresentam uma certa dificuldade na aquisição de tais habilidades (leitura e escrita). Porém, o que mais frequentemente tenho visto é que essa dificuldade em questão, muitas vezes, não está centrada na criança mas sim na própria escola.

O sistema escolar não consegue conceber o “erro” como algo inerente ao processo de aprendizagem do aluno. Então, para se “livrar” do problema futuro, ela procura dar uma interpretação às alterações ou dificuldades ortográficas que a criança apresenta, encaminhando-a, passando a bola adiante.

A escola não consegue enxergar o indivíduo com um ser PLURAL, que vive em contextos diferentes, com culturas diferentes, oralidades regionalizadas, e que isso influencia a maneira de como a criança irá se apropriar do sistema alfabético. Para o sistema escolar, toda a aprendizagem da língua escrita depende única e exclusivamente de um conjunto de habilidades intrínsecas ao aluno. De acordo com essa perspectiva o fracasso escolar do aluno está centrado em sua habilidade de aprender ou não.

Entretando, esse conjunto de habilidades que o sistema julga ser inerente à cada aprendiz, não lhes assegura sucesso acadêmico. As habilidades de leitura e escrita de uma criança ganha sua dimensão e significados a partir dos usos e funções à ela atribuídos, ou seja, para uma criança aprender a ler, escrever e compreender os mecanismos dessa linguagem, ela precisa vivenciar situações reais que lhe dêem o verdadeiro sentido desta linguagem. Então se uma criança crescer e viver em um contexto no qual a língua escrita faça parte do seu dia-a-dia, onde a leitura de livros infantis seja uma constante, onde ela tenha a oportunidade de viver ao lado de pessoas que lêem e escrevem, de modo a compreender o como se escreve e o que se pode escrever, com que objetivos e para quem se escreve, isso lhe garantirá um conjunto de conhecimentos que são fundamentais, e com certeza, será um fator determinante para o sucesso da sua aprendizagem.

Como esperar então o mesmo perfil de aprendizagem para os vários aluninhos de uma instituição de ensino? Como poderei exigir que fulano aprenda no mesmo tempo hábil que o sicrano, só porque os dois tem a mesma idade cronológica? Posso exigir a mesma velocidade de aprendizagem para uma aluna que faz as quatro refeições do dia com sua família, mora numa casa confortável, tem acesso a internet, televisão; enquanto que o outro aluno do seu lado, dorme no chão com mais quatro irmãos e nem mesmo sabe nos dizer o que é um jornal e qual a sua finalidade, simplesmente porque em sua casa nunca se teve acesso ao mesmo?

Esse fato ganha uma enorme dimensão quando falamos em INCLUSÃO dentro das escolas. Como podemos falar em diferenças individuais se o sistema não consegue enxergar diferenças de ritmos de aprendizagens?

Não foi diferente com meu último paciente, encaminhado pela rede municipal de ensino. R., 09 anos de idade, sexo masculino, queixa: Criança não aprende nada, muito distraída, dispersa, agitada, erros na fala, péssima compreensão e incapacidade de escrever e ler.

Conversei com R sozinho, sem a mãe por perto, para ter minha primeira impressão. No começo, um pouco tímido; mas depois começou a me contar sobre sua vida. Disse-me que veio há pouco de outra cidade do interior de São Paulo. O pai trabalhava no corte de cana e sofreu um acidente com sua foice, decepando o pé direito. Essa foi a justa causa de estarem aqui em Minas, vieram morar com um tio – irmão da mãe, que conseguiu uma vida nova à família: empregos, moradia, etc.

Expressou-se muito bem, com coerência em tudo que me contou e com vocabulário próprio para a sua idade. Seu conhecimento de mundo é restrito ao seu meio; conhece o nome de todas as ferramentas agrícolas possíveis e o que se faz com cada uma delas, todas as plantas e seu uso comestível, combustível, óleo, etc. Internet é uma coisa bem distante, ouviu falar mas nunca usou. Sua fala tinha marcas profundas do regionalismo de onde morou (variação linguística) e lógicamente, é a língua materna que ele está acostumado a ouvir e ter como referencial e isso não pode ser considerado como erro. Se a criança vive em um meio onde todos os adultos falam “framengo e pobrema” , temos que levar em consideração que o referencial acústico e articulatório dela está programado para falar desse jeito. Temos que ter tato e intervir junto à ela, dizendo-lhe que há variações do português no Brasil, que são determinados pela influência da colonização e com isso, há maneiras melhores de nos expressarmos e que isso nós aprendemos na escola. Perguntei à ele sobre as letras, se ele sabia os nomes de cada uma e seus barulhinhos. Desconversou; disse-me que essa coisa de escrever é muito chata, muito complicada.

Em conversa com a mãe, a mesma me disse que vieram para Minas por causa do acidente do marido. Como ambos são analfabetos precisavam de um padrinho para arrumar um emprego longe da lavoura. Tem mais três filhos menores que estão na creche, diferente de R que nunca pisou em uma escola antes, por causa da distância (moravam na zona rural). Não possuem televisão em casa, pois, como moram de favor (no fundo da casa do irmão), não podem se dar ao luxo de gastar muita energia elétrica.

Então eu pergunto: como essa escola não conseguiu enxergar, em dois anos, o que eu enxerguei em 55minutos?

R. possui todos os pré-requisitos que o sistema teima exigir das crianças: coordenação motora e visual, lateralidade, discriminação e memória visual, noções espaciais e temporais, atenção e interesse, mas não aprende a ler e escrever, e sabem porque? Porque em toda a sua vida de menino, antes de entrar na escola, nunca ouviu falar em escrita, nunca leu nada, nunca leram nada para ele ouvir; não andou pelas ruas olhando paisagens e propagandas de refrigerantes, coca colas e mac donalds; ele nunca vivenciou a escrita. Como pode ele aprender no mesmo ritmo, como as outras crianças que tiveram acesso à isso?

Por essa razão, eu NÃO ACREDITO NA INCLUSÃO. Eu não aceito limitar a aprendizagem de um sujeito a um conjunto de habilidades; eu não consigo compreender como o sistema não consegue enxergar que a simplicidade e a ignorância do meio, determina padrões de oralidade que influenciam a escrita do sujeito; e que se esse sujeito estiver distante da leitura e da escrita, se isso for algo irreal, onde ele não possa compreender seus usos, funções e significados, a escola sempre lhe será algo hostil e os efeitos nessa criança poderão ser prejudiciais, para toda a sua vida acadêmica. Se já é difícil para a escola aceitar as diversidades da criança dita “normal”, imagina então a especial?

Fga. ELIANA BERTO

MIRAH
Enviado por MIRAH em 12/02/2012
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